pouco mais a essência do computador digital, fica difícil (quando não impossível) fazer esta distinção. Sem um meio para existir, o software não existe. Ele é nada mais que um agenciamento de circuitos pelos quais transitam pequenos pulsos de energia (chamados de energia discreta).
Essa idéia é completamente estranha para grande camada da população, cujas vidas são totalmente influenciadas pela computação, mesmo sem saber exatamente do que se trata. Inclusive, não é raro o caso de programadores que não possuem idéia de como um circuito eletrônico funciona. A grande questão que se coloca é até que ponto as interfaces amigáveis amplamente utilizadas no campo computacional, contribuem para a alienação das pessoas, fazendo com que elas, assim, reproduzam um sistema ou modo de pensar sem saber exatamente as implicações que isso pode trazer. Nesta pesquisa, estas perguntas são feitas com o intuito de instigar uma apropriação crítica da tecnologia, afinal, como aponta Dupas (2000, p.16):
Não se trata de ir contra o desenvolvimento tecnológico, adotando um posicionamento reacionário. A questão é bem outra: a tecnologia pode e deve se submeter a uma ética que seja libertadora a fim de contemplar o bem estar de toda a sociedade, presente e futura, e não apenas colocar-‐se a serviço de minorias ou atender necessidades imediatas.
Vale ressaltar que a idéia, aqui discutida, não é a de ser contra o desenvolvimento tecnológico, até porque a arquitetura interativa pressupõe sua existência. Trata-‐se de nunca deixar de se fazer perguntas sobre seus custos, suas limitações e sobre a possibilidade de resolver os problemas de outras maneiras, a partir de outros pressupostos, lógicas e métodos.
1.1.3 Os limites da sociedade tecnológica
Se o progresso vai resultar em uma vida melhor para as gerações futuras, não é possível afirmar. Entretanto, apesar da grande evolução da ciência e da melhoria de vários aspectos da vida, vários são os indícios de sua limitação e de sua natureza estranha, isso não pode ser negado. A crueldade das duas guerras mundiais e a atual crise ambiental são exemplos frequentemente utilizados para ilustrar o lado perverso da sociedade moderna. Diante de tais acontecimentos, torna-‐se imperativo ao menos colocar em dúvida esse ideal de civilização e progresso que, depois de 300 anos em voga, foi capaz de justificar, dar suporte e se desenvolver às custas de tal destruição e crueldade.
Em uma primeira análise, estes acontecimentos são suficientes para apontar a existência de facetas antagônicas na sociedade tecnológica. Porém, para apresentar uma percepção aprofundada, é necessário um esforço no sentido de desvendar
possíveis aspectos contraditórios que deram origem a essas discrepâncias. Para exercitar esse ponto de vista, três aspectos serão aqui tratados.
O primeiro diz respeito à natureza do progresso que, como aponta Bury (1921), aproxima-‐se mais da categoria de dogma do que de um objetivo concreto a ser alcançado. O segundo questiona a ambiguidade do pensamento científico que, ao pretender explicar toda a realidade se esquece do caráter parcial de seu próprio método. O terceiro aspecto aborda a posição de alienação do homem em relação à sua própria razão, ou seja, de não compreender que aquilo que ele cria é, exatamente, o que o destrói.
Conceitos tais como liberdade, tolerância e igualdade, segundo Bury (1921), diferem-‐ se categoricamente daqueles tais como destino, providência divina e renascimento. Os primeiros estão ligados às aspirações e ações humanas, sendo que as análises sobre estes temas questionam suas qualidades enquanto bons ou ruins, úteis ou perversos. Os segundos fazem referência aos mistérios da vida independentemente da vontade humana, e a questão que se levanta relaciona-‐se com sua existência ou inexistência.
Por meio de uma análise detalhada de como a idéia de progresso histórico penetrou no pensamento moderno, Bury demonstra porque esta se encaixa na segunda categoria e, sendo assim, só é válida enquanto objetivo de vida na forma de um dogma, ou seja, imposta como uma doutrina verdadeira e incontestável. No final, trata-‐se de acreditar ou não na sua existência. Assim, explica Bury (1921, p.2),
Nós, agora, tomamos tanto como dado, nós estamos tão conscientes do constante progresso no conhecimento, nas artes, na capacidade de organização, nos serviços de todos os tipos, que é fácil olharmos para o Progresso como um objetivo, tal como a liberdade ou uma federação mundial, que apenas depende dos nossos próprios esforços e boa vontade para alcançar. Mas, por mais que todo o aumento de poder e conhecimento dependa do esforço humanos, a idéia de Progresso da humanidade, da qual todos esses progressos específicos derivam seu valor, levanta uma questão definitiva de fato, que os desejos ou o trabalho do homem não podem afetar, mais do que os seus desejos ou seu trabalho pode prolongar a vida além-‐túmulo.15
Para o autor, por mais que a acumulação de conhecimento seja nítida, não há como ter certeza de que esta esteja direcionada para uma direção desejada. Até porque,
15 Do original em inglês: We now take it so much for granted, we are so conscious of constantly progressing in
knowledge, arts, organizing capacity, utilities of all sorts, that is easy to look upon Progress as an aim, like liberty or a worlds-federation, which it only depends on our own efforts and good-will to achieve. But though all increases of power and knowledge depend on human effort, the idea of Progress of humanity, from which all these particular progresses derive their value, raises a definite question of fact, which man’s wishes or labors cannot affect any more than his wishes or labors can prolong life beyond the grave. (BURY, 1921, p.2)
“[…] a fim de julgar se estamos nos movendo em uma direção desejável, teríamos de saber exatamente qual é o destino”16 (BURY, 1921, p. 2). Entretanto, a idéia de progresso na sociedade moderna pressupõe, como já mencionado, um avanço indefinido para o futuro, de forma que não há nada a ser alcançado a não ser cada dia mais avanço. A suposição de que existe um “progresso absoluto”, que quando alcançado levará à felicidade dos homens na terra, pode ser comparada como uma versão terrena da profecia cristã que prevê a ida das boas almas ao paraíso.
Sobre essa perspectiva, Schwartz (1971, p. 23) coloca que a crença no progresso nada mais é do que uma “[...] fé que destronou a fé”. A grande diferença é que, na ciência moderna, o homem não se dirige mais a Deus, e, sim, aos seus próprios imperativos, em especial, àquele que dá a ordem de ocupar e dominar a terra. A esse respeito complementa:
A ciência pretende ser livre de valores e, todavia, estabeleceu-‐se como o valor supremo da civilização ocidental. Um forte
establishment científico é considerado a base de todo o poder:
militar, industrial e intelectual. As escolas e universidades estão atreladas ao carro de guerra da ciência. Os negócios e a economia estão se tornando disciplinas científicas na sua procura de ordem e eficiência. Toda a humanidade é orientada para técnicas à imagem da ciência (SCHWARTZ, 1971, p.45-‐46).
Até certo ponto, o fato de que a ciência exerce uma grande influência no pensamento e na vida humana, não apresenta nenhum problema. O problema passa a existir, quando esta adquire uma posição totalitária, ou seja, “[...] na medida em que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que não se pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas” (SANTOS, 1987, p.11).
Por um lado, os princípios sobre os quais o conhecimento científico é construído excluem automaticamente, tanto aqueles problemas que não podem ser resolvidos, quanto os resíduos deixados por suas soluções. Por outro, seus métodos não incluem estratégias de autoreflexão, e como consequência tomam como irrelevante seu caráter parcial e dão, como certo, sua objetividade (ou a ausência de valores).
Schwartz (1971, p.66) aponta que “[...] uma solução tecnológica é sempre uma quase-‐ solução porque dá origem a um resíduo de problemas não resolvidos”. Segundo o autor, isso acontece, pois, os problemas a serem resolvidos são normalmente considerados isolados, por mais que pertençam a um sistema aberto. Quando a solução é analisada novamente dentro de um sistema maior, ela deixa de ser completa, já que, neste momento, “[...] descobre-‐se quase sempre que a solução do
16 Do original em inglês: [...] in order to judge that we are moving in a desirable direction we should have to know
problema específico engendrou uma série de novos problemas decorrentes das inter-‐ relações e das características finitas do sistema fechado”.
Como consequência, o processo tecnológico cai em um círculo vicioso no qual “[...] o resultado de cada desenvolvimento é mais desenvolvimento, e o de toda pesquisa é mais pesquisa” (SCHWARTZ, 1971, p.55). Isso faz com que a obsolescência apareça como um resultado inerente: novas soluções, atualizações e versões são sempre melhores e necessárias.
Uma vez que o senso comum passa a acreditar no sucesso da ciência, sem ter conhecimento de uma perspectiva mais ampla da situação, sua importância passa a perpetuar a partir da idéia de que sempre mais tecnologia é necessária para solução dos novos problemas. O que é deixado de lado pelos meios de divulgação científica (formais e informais), por mais que o caráter metódico da ciência confira a ela um aspecto autônomo, é que existe muito espaço em seu processo para a inclusão de valores, interesses e ideologias.
A ênfase dada às soluções e aos avanços mascara tanto os problemas residuais, quanto seu forte caráter subjetivo. “As disciplinas técnicas são influenciadas por tradições e interesses e, geralmente, contêm erros, apesar de todos os esforços de especialistas em depurá-‐los” (FEENBERG, 2013, p.6). É o que Schwartz (1971, p.54) também pondera ao declarar que,
Em considerável extensão, portanto, o processo tecnológico é um processo social que depende de outros aspectos da ciência e da tecnologia relacionados com qualquer problema dado e está sujeito a óbices, muitos do quais socialmente determinados. Pode fazer-‐se uma tentativa de formular esses óbices por meio de outros processos tecnológicos; entretanto, os critérios fundamentais dessas formulações são humanos e sociais e não tecnológicos. Desde que esses critérios se baseiam em considerações metafísicas, é a uma metafísica fraca e não a uma tecnologia autônoma que se deve culpar pelos excessos do processo tecnológico.
Se considerada a análise de Horkheimer (1976, p.12) sobre o império da razão instrumental (subjetiva) na sociedade moderna, ficam claros os motivos que tornam inviáveis a reflexão sobre o porquê das coisas. “Se essa razão se relaciona de qualquer modo com os fins, ela tem como certo que estes também são racionais no sentido subjetivo, isto é, de que servem ao interesse do sujeitos quanto à autopreservação”. Ou seja, se a finalidade é prática, não carece de reflexão, só o fato de ter uma função definida e de se encaixar nos métodos deste tipo de investigação faz com que ela seja válida. É como se a ciência fosse um aparato de olhar as coisas, porém separada do mundo: além de ela se considerar o único meio pelo qual o mundo pode ser
contemplado, ela não se reconhece como uma coisa e, assim, não volta o olhar para si mesma.
A ciência moderna, tal como os positivistas a entendem, se reporta essencialmente sobre fatos, e portanto pressupõe a reificação da vida em geral e da percepção em particular. Contempla o mundo como um mundo de fatos e coisas, e deixa de relacionar a transformação do mundo em fatos e coisas com o processo social (HORKHEIMER, 1976, p.92).
Assim, o autor dá um passo a mais em sua reflexão ao incluir aquele que observa. Se a ciência é um objeto flutuante, ela não flutua sozinha: inclui um comandante. Para ele, fica claro que a concepção de uma ciência que reduz a realidade a objetos de investigação é produto de um homem que se coloca assim em relação à vida e à natureza. É o homem e não a ciência que enxerga a natureza como uma presa, algo exterior que deve ser dominado. Ele não reconhece e aceita sua própria finitude e, como complementa Feenberg (2013, p.1) “[...] a tecnologia dá a ilusão de poder tal qual o poder de deus. Acreditamos poder controlar a natureza e submetê-‐las aos nossos desejos”.
Deste modo, a ciência pode ser também entendida como a formalização da renúncia do homem de utilizar sua capacidade racional de olhar para si mesmo. Afinal, como coloca Bateson (1986, p.32), “[...] aqueles que não têm a menor idéia de que seja possível estarem errados não podem aprender nada exceto conhecimento técnico”. Como consequência, da mesma maneira que a ciência não se reconhece como parte do conjunto de coisas que analisa, o homem não se reconhece nos resultados de suas ações, que inclui tanto os seus avanços assim como tudo aquilo que o reprime.
De acordo com Kuhns (1971, p.253), entender que a “[...] lógica e outros ícones do racionalismo podem obscurecer da mesma maneira que podem esclarecer”17, é reconhecer seus limites e o primeiro passo para a apropriação crítica da tecnologia digital. No lugar de uma visão apologética ou apocalíptica do desenvolvimento, leva o indivíduo a lidar com a complexidade da realidade sem dogmatismo e alienação.
Para isso, é preciso colocar a ciência no seu lugar, ou seja, como uma das maneiras possíveis de perceber e de investigar a realidade. “Como um método de percepção -‐ e isso é tudo o que a ciência pode ter a pretensão de ser – a ciência, como todos os outros métodos de percepção, está limitada em sua habilidade de recolher os sinais visíveis do que possa ser verdadeiro”(BATESON, 1986, p.36).
17 Do original em inglês: [...] logic and other icons of rationalism can obscure as much as they clarify (KUHNS,
O perigo existe quando a ciência se confunde com a realidade ao pretender explicá-‐la totalmente, e quando a realidade se confunde com a ciência ao ser reduzida apenas àquilo que é explicável. Assim, para elaborar qualquer teoria ou proposta de ação, é importante ter consciência dos pressupostos, a partir dos quais os limites da razão subjetiva (instrumental) se desdobram, assunto deste tópico. Da mesma maneira, é necessário também investigar diferentes estratégias de entendimentos, estabelecidas a partir de outros pressupostos e caminhos. É neste sentido que outras razões entram no contexto deste trabalho.
1.1.4 Outras razões
O racionalismo científico moderno, ao pretender o conhecimento total da realidade, ou seja, a substituição do caos pela organização das coisas que existem, deixa muito a desejar. Se ele demonstrou algo, foram os perigos intrínsecos à adoção de uma razão única (e limitada) para governar a vida humana. De forma que o homem, ao se apegar a um pensamento único, abdica-‐se de pensar e passa a ser um mero realizador de tarefas e seguidor de receitas prontas.
Para falar de outras razões, é importante reconhecer que a experiência e a realidade, ou seja, aquilo que o homem vive, é e sempre será maior do que as explicações que podem ser oferecidas sobre elas. No entanto, assumir a limitação do que é possível conhecer traz, ao mesmo tempo, medo e lucidez. O medo decorre, em grande parte, da necessidade de reconhecimento da finitude, que não está restrita ao que é possível conhecer, mas se estende também à ação e à existência humana (FEENBERG, 2013).
A lucidez deriva da necessidade de aprofundamento. Uma vez admitida a não possibilidade de um conhecimento verdadeiro ou total das coisas, decorre-‐se que, a qualquer argumentação, deve anteceder-‐se uma explicitação dos limites, das intenções e dos propósitos do que vai ser debatido. De certo modo, este movimento impede tanto a adoção inconsciente de valores quanto a impressão de que estes são dados a priori e, por assim serem, não carecem de análise.
Mais do que elaborar outros sistemas globais e estáticos de explicação do mundo, o importante é retomar a atitude racional, ou seja, “[...] o trabalho do pensamento para apreender, compreender e interpretar o sentido das coisas, dos fatos, das ideias, ações e valores humanos” (CHAUÍ, 2012, p.106). Atitude tal, como já foi analisado, desestimulada pelo pensamento instrumental. Assim, falar sobre outras razões significa, para o contexto desta tese, investigar outros movimentos estruturados do pensamento, de forma que a própria investigação que aqui se coloca possa ser compreendida como um movimento em si.