O perigo existe quando a ciência se confunde com a realidade ao pretender explicá-‐la totalmente, e quando a realidade se confunde com a ciência ao ser reduzida apenas àquilo que é explicável. Assim, para elaborar qualquer teoria ou proposta de ação, é importante ter consciência dos pressupostos, a partir dos quais os limites da razão subjetiva (instrumental) se desdobram, assunto deste tópico. Da mesma maneira, é necessário também investigar diferentes estratégias de entendimentos, estabelecidas a partir de outros pressupostos e caminhos. É neste sentido que outras razões entram no contexto deste trabalho.
1.1.4 Outras razões
O racionalismo científico moderno, ao pretender o conhecimento total da realidade, ou seja, a substituição do caos pela organização das coisas que existem, deixa muito a desejar. Se ele demonstrou algo, foram os perigos intrínsecos à adoção de uma razão única (e limitada) para governar a vida humana. De forma que o homem, ao se apegar a um pensamento único, abdica-‐se de pensar e passa a ser um mero realizador de tarefas e seguidor de receitas prontas.
Para falar de outras razões, é importante reconhecer que a experiência e a realidade, ou seja, aquilo que o homem vive, é e sempre será maior do que as explicações que podem ser oferecidas sobre elas. No entanto, assumir a limitação do que é possível conhecer traz, ao mesmo tempo, medo e lucidez. O medo decorre, em grande parte, da necessidade de reconhecimento da finitude, que não está restrita ao que é possível conhecer, mas se estende também à ação e à existência humana (FEENBERG, 2013).
A lucidez deriva da necessidade de aprofundamento. Uma vez admitida a não possibilidade de um conhecimento verdadeiro ou total das coisas, decorre-‐se que, a qualquer argumentação, deve anteceder-‐se uma explicitação dos limites, das intenções e dos propósitos do que vai ser debatido. De certo modo, este movimento impede tanto a adoção inconsciente de valores quanto a impressão de que estes são dados a priori e, por assim serem, não carecem de análise.
Mais do que elaborar outros sistemas globais e estáticos de explicação do mundo, o importante é retomar a atitude racional, ou seja, “[...] o trabalho do pensamento para apreender, compreender e interpretar o sentido das coisas, dos fatos, das ideias, ações e valores humanos” (CHAUÍ, 2012, p.106). Atitude tal, como já foi analisado, desestimulada pelo pensamento instrumental. Assim, falar sobre outras razões significa, para o contexto desta tese, investigar outros movimentos estruturados do pensamento, de forma que a própria investigação que aqui se coloca possa ser compreendida como um movimento em si.
O pensamento de Horkheimer (1974), por exemplo, pode ser percebido como um movimento que parte de uma crítica direcionada à coerência interna da razão instrumental e vai até a reintrodução do que ela exclui enquanto razão válida. Inicia seu raciocínio com a diferenciação entre razão subjetiva e razão objetiva, analisa por que e como o pensamento científico descarta a segunda, e, após isso, define os dois tipos de razão não como opostas, mas, sim, como complementares e, consequentemente, necessárias. A análise da complementariedade daquilo que se pressupõe diferente e antagônico é uma das principais contribuições de Horkheimer (1974) para este trabalho.
Nesta perspectiva, continua o autor, um esforço autocrítico da razão engloba a compreensão tanto da separação quanto da interrelação. A separação pode ser vislumbrada, a partir do excesso de cada um dos conceitos: dentre outros desdobramentos, o abuso da razão subjetiva pode levar a um materialismo vulgar e ao niilismo, enquanto a razão objetiva, em demasia, pode conduzir à alienação da realidade material, à defesa de significados que se revelam ilusórios ou mesmo à criação de ideologias reacionárias. A interrelação reside no entendimento de que “[...] os dois conceitos estão entrelaçados, no sentido de que as conseqüências de cada um não só dissolvem o outro como também conduz de volta ao outro”. Assim sendo, a oposição é apenas uma aparência, mas que se faz necessária para o exercício do espírito crítico, cuja tarefa “[...] não é jogar teimosamente um contra o outro, mas promover a crítica recíproca dos dois conceitos, e assim, se possível, preparar na esfera intelectual a conciliação dos dois na realidade” (Horkheimer, 1974, p.185-‐186).
Entre as observações de Santos (2007) um movimento diferente pode ser identificado, de forma que sua crítica inicial encontra-‐se no âmbito da coerência externa da razão instrumental. Para Chauí (2012, p.107) , falar em coerência externa implica o seguinte movimento:
[Examinar][...]se um pensamento ou uma teoria contribuem ou não para que os seres humanos conheçam e compreendam as circunstâncias em que vivem, contribuem ou não para alterar situações que os seres humanos julgam inaceitáveis ou intoleráveis, contribuem ou não para melhorar as condições em que os seres humanos vivem.
Santos (2007, p.25) afirma que sua análise é construída a partir da incoerência do modo ocidental de abordar, entender e agir no mundo, ou seja, faz uma crítica profunda à ideologia cientificista eurocêntrica. E a faz, inicialmente, a partir da análise da racionalidade hegemônica nesta sociedade, que ele descreve como indolente e preguiçosa, já “[...] que se considera única, exclusiva, e que não se exercita o suficiente para poder ver a riqueza inesgotável do mundo”.
Seu movimento, segundo o autor, parte da identificação de duas formas de manifestação desta razão indolente que considera importantes para entender suas limitações intrínsecas e, quem sabe até, superá-‐las. A primeira está ligada ao reducionismo próprio a esta forma de pensar, que, ao considerar irrelevante o que não é capaz de lidar acaba contraindo o que existe, ou seja, o tempo presente. A segunda está ligada à crença em um progresso e desenvolvimento infinitos, o que em sua análise expande demais o futuro. Sua elaboração aponta a necessidade de movimentos opostos, ou seja, da ampliação do presente e da contração do futuro (SANTOS, 2007).
A contração do futuro é possível pela substituição deste infinito homogêneo do progresso eterno pela estudo e consideração daquilo que o autor denomina utopias realistas, “[...] suficientemente utópicas para desfiar a realidade que existe, mas realistas para não serem descartadas facilmente”. A Sociologia das Emergências, neste sentido, ocupa-‐se em dar sentido aos “[...] sinais, as pistas, latências, possibilidades que existem no presente e que são sinais do futuro, que são possibilidades emergentes e que são ‘descredibilizadas’ porque são embriões, porque são coisas não muito visíveis” (SANTOS, 2007, p.37). O ponto de partida seria, por exemplo, a ampliação simbólica de pequenos movimentos sociais e ações coletivas.
O caminho para a ampliação do presente parte da elaboração de uma Sociologia das Ausências, que “[...] tente mostrar que o que não existe é produzido ativamente como não-‐existente, como uma alternativa não-‐crível, como uma alternativa descartável, invisível à realidade hegemônica do mundo” (SANTOS, 2007, p.28-‐29). Esta seria responsável por instituir a superação do que o autor considera como os cinco modos de produção de ausências, ou seja, as cinco monoculturas18 responsáveis pela contração do presente, que faz com que tudo o que é ignorante, residual, inferior, local e improdutivo não seja válido ou digno de ser levado em consideração. A Sociologia das Ausências ocupar-‐se-‐ia, assim, daquilo que o pensamento hegemônico descarta e, a partir daí, criaria seus modos de produção que substituiria as monoculturas pelas ecologias.
As cinco ecologias propostas por Santos (2007) criam a possibilidade das experiências ausentes tornarem-‐se presentes. 1) A ecologia dos saberes, parte do emprego contra-‐ hegemônico da própria ciência, usando seus instrumentos metodológicos para
18 Os cinco modos de produção de ausênica, para o autor, são: 1) a monocultura do saber e do rigor, na qual “o
único saber rigoroso é o saber científico” ; 2) a monocultura do tempo linear, na qual “a história tem um sentido, uma direção, e de que os países desenvolvidos estão na dianteira” ; 3) a monocultura da naturalização das diferenças, que ocultam hierarquias ao assumir que ela é consequência da inferioridade natural; 4) a monocultura da escala dominante, na qual o valor legítimo é o do domintante e a “realidade particular e local não tem dignidade como alternativa crível a uma realidade global e universal”; 5) a monocultura do produtivismo capitalista, na qual “o crescimento econômico e a produtividade da mensurada em um ciclo de produção determinam a produtividade do trabalho humano e da natureza, e tudo o mais não conta” (SANTOS, 2007, p. 29-‐30-‐31).
dialogar com outros saberes (laico, popular, indígena etc.). O objetivo é sempre “[...] conhecer o que determinado conhecimento produz na realidade”; 2) A ecologia das temporalidades parte do princípio de que “[...] embora haja um tempo linear, também existem outros tempos”. 3) A ecologia do reconhecimento incluiria “[...] descolonizar nossas mentes para poder produzir algo que distinga, em uma diferença, o que é hierarquia e o que não é”; 4) A ecologia da ‘transescala’ “[...] constitui a possibilidade de articular em nossos projetos escalas locais, nacionais e globais”; 5) A ecologia das produtividades consiste na “[...] recuperação e valorização dos sistemas alternativos de produção, das organizações operárias [...] etc., que a ortodoxia produtivista capitalista ocultou ou desacreditou” (SANTOS, 2007, 33-‐35-‐36).
A idéia de Santos (2007, p.39-‐43), parece produzir um contexto em que tudo é válido, e no qual o rigor e objetividade são descartados, mas não é esta sua intenção. Admite que sua estratégia irá criar muito mais realidade válida do que existe hoje e que esta será muito mais rica, fragmentada e caótica. Ao mesmo tempo não descarta os meios hegemônicos, já que “[...] não podemos pensar no novo senão com os conceitos do velho, da linguagem, do que temos, e ainda, quando queremos nomear coisas novas, devemos fazê-‐lo a partir de coisas que são velhas. Para isso, propõe o que denomina ‘procedimento de tradução’ para criar “[...] inteligibilidade recíproca no interior da pluralidade, que consiste em “[...] traduzir saberes em outros saberes, traduzir práticas e sujeitos de uns aos outros, é buscar inteligibilidade sem ‘canibalização’, sem homogeneização”.
Esse procedimento de tradução é um processo pelo qual vamos criando e dando sentido a um mundo que não tem realmente um sentido único, porque é um sentido de todos nós; não pode ser um sentido que seja distribuído, criado, desenhado, concebido no Norte e imposto ao restante do mundo, onde estão três quartos das pessoas. (SANTOS, 2007, p.41).
Vale ressaltar que estas reflexões sobre a coerência externa do pensamento científico moderno são extremamente relevantes. Além de desvendar a natureza colonizadora do pensamento hegemônico e as estratégias que utiliza para tal, alerta para os perigos e oportunidades daqueles que estão na condição de colonizados19, seja por outras sociedades, ideologias ou mesmo pela tecnologia digital. O que Santos (2007) propõe
19 Sobre o silêncio derivado do colonialismo ocidental e o desafio que consiste essa superação, expõe Santos
(2007) que “A cultura ocidental e a modernidade têm uma ampla experiência histórica de contato com outras culturas, mas foi um contato colonial, um contato de desprezo, e por isso silenciaram muitas dessas culturas, algumas das quais destruíram. Por isso, quando queremos tentar um novo discurso ou teoria intercultural, enfrentamos um problema: há nos oprimidos aspirações que não são proferíveis. Porque foram consideradas improferíveis depois de séculos de opressão. [...] E o dilema é como fazer o silêncio falar por meio de linguagens, de racionalidades que não são as mesmas que produziram o silencio no primeiro momento. Esse é um dos desafios mais fortes que temos: como fazer o silêncio falar de uma maneira que produza autonomia e não a reprodução do silenciamento”.
é o deslocamento do pensamento para uma perspectiva que conjugue o hegemônico com aquelas outras culturas que ele próprio descarta.
Ao final, o mais importante é a manutenção da vigilância e da autocrítica, ou seja, fugir de qualquer tipo de razão indolente e pensar em estratégias que incluam mais debates, ao invés de negar um pertencimento em detrimento de outro, bem como analisar sempre onde cada discurso se encaixa e evitar reducionismos mascarados de verdades. Neste sentido, a idéia de conhecimento passa a se relacionar muito mais com o movimento do pensamento do que com leis gerais e imutáveis. E o conhecedor é aquele capaz de utilizar o pensamento de maneira racional, e não aquele que apenas detém (ou intenciona) uma estrutura organizada na qual se encaixe toda a realidade. Falar em outras razões significa entender mais outros trabalhos de compreensão do que criar outras estruturas para o real. Entender esse movimento é o que previne o monopólio de razões específicas, ao mesmo tempo em que se pressupõe leituras críticas.
Neste sentido, a avaliação do que é racional ou mesmo a criação de outras razões acontecem, não pelo cumprimento dos requisitos científicos modernos mas, sim, pelo balanço da coerência interna e externa de pensamentos. Esta abordagem a respeito do que é o conhecimento induz a adoção de pressupostos temporários, a partir dos quais teorias podem ser elaboradas e entendimentos específicos alcançados, levando sempre em consideração suas potencialidades e limitações. Mesmo que o conhecimento da verdade não seja possível, pode-‐se almejar a racionalização, a partir de movimentos do pensamento que potencializem suas capacidades ativas e transformadoras.
As razões analisadas, até o momento, além de fornecerem elementos para diversos temas que ainda serão tratados, estabelecem a base a partir da qual outros pensamentos serão introduzidos. O que, de certo modo, é a principal característica do contexto ideológico do início do Século XXI, ou seja, a hegemonia de um pensamento único somada à pluralidade de outras abordagens periféricas que buscam criticar, reconstruir, atualizar, contrapor, expandir e/ou incorporar outros elementos ao conhecimento. É com este contexto de idéias que esta tese dialoga.