Para complementar, vale destacar que esta série linear trata-‐se de um movimento retilíneo indefinido, porém que culmina, especificamente, na cultura ocidental10. Seguindo este raciocínio, ao pensar os estágios (termos) como necessários, fica implícito que as regras e o curso já estão determinados, o que torna o processo histórico algo inevitável de acontecer da forma como acontece, o que pode levar à conclusão que toda ação torna-‐se inútil. Essa idéia determinista é enfatizada com inclusão das “regressões” como parte do processo, como se a história realmente avançasse segundo leis próprias. Por fim, se o pressuposto é o de que cada passo significa um incremento de valor, torna-‐se desnecessário avaliar o que é o valor. Afinal, o incremento torna-‐se valor por si mesmo – mais é sempre melhor.
Elucidados os princípios do tipo específico de razão, que é utilizado como instrumento para o progresso, e qual é o lugar que o progresso ocupa no pensamento moderno, torna-‐se explícito o entrelaçamento dessas questões. Pode-‐se dizer, que o “casamento” entre razão (subjetiva), ciência e progresso, foi o responsável por grande parte do desenvolvimento tecnológico e social observado no século XX. Um fato, a princípio, de dado incontestável. Dentre os produtos deste avanço, destaca-‐se a tecnologia digital que incorpora e infiltra no senso comum grande parte das idéias exploradas até este momento.
1.1.2 Tecnologia digital como símbolo do progresso
Segundo Santos (1987, p.14), no que se refere à ciência moderna, não se trata de qualquer razão, mas, sim, da razão matemática, que permite o mais puro conhecimento. “A matemática fornece à ciência moderna, não só o instrumento privilegiado de análise, como também a lógica da investigação, como ainda o modelo de representação da própria estrutura da matéria”. Seguindo este raciocínio, a pureza da lógica matemática livra também o homem da ignorância, da superstição e dos males sociais, permitindo, assim, o desenvolvimento de um conhecimento neutro, livre de valores e independente da moralidade e da ética.
É por meio da matemática que são elaboradas as leis naturais, que consistem em um conhecimento profundo e, acima de tudo, rigoroso da natureza. Elas são resultado tanto da tradução dos objetos em quantidades, quanto de uma sucessão de divisões e classificações feitas com o intuito de organizar e conhecer:
A divisão primordial é a que distingue entre ‘condições iniciais’ e ‘leis da natureza’. As condições iniciais são o reino da complicação, do acidente e onde é necessário seleccionar as que estabelecem as
10 É este, por exemplo, o pensamento que valida a existência de sociedades desenvolvidas e subdesenvolvidas,
sendo que (coincidentemente) as primeiras são aquelas que justamente elaboraram e difundiram a idéia de progresso.
condições relevantes dos factos a observar; as leis da natureza são o reino da simplicidade e da regularidade onde é possível observar e medir com rigor (SANTOS, 1987, p.15).
Esta idéia de ordem e estabilidade do mundo, e de que estas podem ser conhecidas, transformadas em fórmulas e manipuladas para o bem humano, valida ainda mais a ciência moderna como o modelo de racionalidade hegemônica. Modelo tal que aos poucos expandiu do estudo da natureza para englobar também o estudo da sociedade11, e que, como aponta Alcorn (1986, p.14), tem contribuído para ampliar o domínio humano em todos os âmbitos do planeta terra:
Nós evoluímos rapidamente e evoluímos externamente. Nós usamos artefatos, ou seja, construções artificiais que copiam princípios naturais, para fazer trabalhos além das mudanças físicas. E por causa dessa diferença fundamental específica, nós temos sido capazes de conquistar todos os ambientes e todas as circunstâncias que o planeta pode oferecer, desde as profundezas do oceano até o frio dos pólos.12
Alcorn (1986, p.15) justifica a tecnologia e sua importância a partir do discurso evolucionista das espécies, no qual “[...] cada espécie luta para se adequar ao ambiente no qual age para sobreviver”13. Para o autor, a tecnologia nada mais é do que a forma que os humanos encontraram para tentar ganhar essa luta e dominar a terra. E ele conseguiu isso por ter algo que nenhum outro animal tem: a habilidade de pensar abstratamente. A partir deste raciocínio, afirma que “[...] somos uma tentativa por parte da natureza de procurar uma maneira melhor, mais eficiente de fazer as coisas. Estamos um passo no caminho para a ordem. Até agora, temos sido uma experiência muito bem sucedida.14 (p.15)
É preciso muito cuidado para entender os pressupostos que balizam esse tipo de raciocínio. Como foi mencionado, esta argumentação possui seu próprio conjunto de valores e métodos. Ao concordar cegamente com discursos pautados no progresso e não colocar em dúvida a natureza da tecnologia, fica latente como os pressupostos da ciência moderna estão enraizados na maneira de pensar, e leva a crer ser a única possível, ou a única eficiente e válida. Antes de abordar os limites deste pensamento e
11 Segundo Santos (1987, p.30), “Tal como foi possível descobrir as leis da natureza, seria igualmente possível
descobrir as leis da sociedade. [...] No século XVIII este espírito precursor é ampliado e aprofundado e o fermento intelectual que daí resulta, as luzes, vai criar as condições para a emergência das ciências sociais no século XIX. [...] As ciências sociais nasceram para ser empíricas”.
12 Do original em inglês: We evolve rapidly and we evolve externaly. We use artifacts, that is, artifical constructs
that mimic natural principles, to do the job rather than physical changes. And because of that one fundamental difference, we have been able to conquer every environment and every circumstance the planet can offer, from the depths of the ocean to the cold of the poles (ALCORN, 1986, p.14).
13 Do original em inglês: […] each species strives to match itself to the environment within which it operates in
order to survive (ALCORN, 1986, p.15).
14 Do original em inglês: […]we are an attempt on the part of nature to look for a better, more efficient way of
doing things. We are a step on the road to order. So far, we have been a very successfull experiment (ALCORN,
alternativas a ele, é necessário aprofundar sobre a forma como estes princípios penetraram profundamente na sociedade contemporânea: a tecnologia digital. De certa forma, ela contribuiu ainda mais para essa hegemonia do pensamento subjetivo, já que trouxe para o senso comum estes valores.
Segundo Vassão (2008, p.19), o computador pessoal possibilitou inserir no senso comum um discurso que “[...] afirma a pré-‐existência da tecnologia como dado fundamental da própria tessitura do universo”. Ou seja, é “[...] como se a existência de uma sociedade baseada na informação viabilizada por computadores interconectados fosse um dado a priori, um ideal a ser realizado”. Ideal este, totalmente ligado às idéias de progresso e evolução, mencionados no item anterior, que consideram avançadas e desenvolvidas aquelas sociedades (e pessoas) que possuem acesso à última tecnologia, e retrógradas e subdesenvolvidas aquelas que utilizam qualquer outro tipo de lógica.
Muitas vezes, alienados da ideologia que viabiliza a tecnologia digital, aqueles que possuem acesso à ela são iludidos por seu visível poder de transformação e seu impacto imediato. Segundo Dupas (2000, p.69) são os impressionantes resultados de alguns êxitos tecnológicos que dão a eles uma auréola mágica e determinista, e os coloca acima da razão e da moral. Neste sentido, o autor completa apontando que “[...] ficamos reféns de pseudo-‐sucessos que não se sustentam em valores e muito menos em uma opção consciente de uma sociedade que possa definir suas prioridades de maneira amplamente democrática”. Afinal, para o racionalismo científico moderno é justamente a subjetividade e seus valores agregados que devem ser evitados para garantir o desenvolvimento científico.
A matemática -‐ especificamente a álgebra binária -‐ é a base lógica sobre qual toda a computação digital tem sido construída. A capacidade de processamento tem aumentado e o tamanho dos componentes diminuído em uma velocidade surpreendente, e isso alimenta a idéia para o senso comum de constante mudança na tecnologia digital. Porém, enquanto não forem desenvolvidos computadores que operem sob qualquer outro tipo de lógica, que não seja a binária, pode-‐se afirmar que a essência da tecnologia digital continua a mesma, que ela não mudou desde que foi inventada, em meados do Século XX.
A visão desta tecnologia como neutra é, de certa maneira, consequência da premissa de que a matemática seria o único meio legítimo de atingir o conhecimento puro. De acordo com Vassão (2008, p.4), a informação, por ser produto da lógica, é, muitas vezes, considerada no discurso tecnológico como algo neutro. Assim, para aqueles que concordam com essa idéia, pode-‐se dizer que acreditam (mesmo sem ter ciência desta crença) também que sua pureza é, sim, sinônimo do conhecimento verdadeiro, ou
seja, livre dos valores, dos interesses e da moral humana. Neste sentido, Postman (1992, p.124) aponta:
Na verdade, o computador torna possível a realização do sonho de Descartes de matematização do mundo. Os computadores tornam fácil converter fatos em estatísticas e traduzir problemas em equações. E ao mesmo tempo que isso pode ser útil (como no momento em que o processo revela um padrão que de outra maneira não teria sido notado), também pode ser diversivo e perigoso quando aplicado de forma indiscriminada nos assuntos humanos.
A grande questão é que a facilidade de uso dos objetos digitais, unida com sua (aparente) indiscutível funcionalidade ignora, também, toda uma cadeia de idéias e de produção. Segundo Zizek (2012, p.294):
O paradoxo, portanto, é que, quanto mais personalizado, fácil e “transparente” for o funcionamento do pequeno item (celular inteligente ou minúsculo) que tenho na mão, mais a configuração tem de se basear no trabalho realizado em outro lugar, num vasto circuito de máquinas que coordenam a experiência do usuário; quanto mais essa experiência é não alienada, mais é regulada e controlada por uma rede alienada.
Assim sendo, vale questionar até que ponto esta tecnologia liberta e até que ponto ela contribui mais ainda para a alienação das pessoas.
Uma outra premissa importante que é reafirmada pela computação digital é a da real existência das dualidades, uma idéia amplamente sustentada pelo pensamento moderno que, insistentemente, separa o homem da natureza, a mente do corpo, o bom do mau, o superior do inferior, etc. Para Vassão (2008, p.9), as metáforas, aproximações e analogias que são utilizadas para tornar o computador acessível são baseadas, ao mesmo tempo que reforçam estas distinções, diminuindo, ainda mais, o espaço para seu questionamento.
Essa precedência sócio-‐cultural do software indica a atualização da dicotomia entre corpo (hardware) e mente/espírito (software). Ela afirma continuamente a maior importância sócio-‐ culturalmente investida em uma entidade que é, na maioria dos discursos, descrita como imaterial, afeita ao espírito, ao pensamento, à cultura, à sensibilidade, e coloca em um patamar justificadamente inferior a parcela material, maquinal, técnica, corporal. (VASSÃO, 2008, p.9)
A partir de uma explicação física, por mais que se trate da passagem ou não de energia em fios, cabos e circuitos, convencionou-‐se a diferenciação entre o que é reprogamável (software) e o que é fixo (hardware). Para aqueles que conhecem um
pouco mais a essência do computador digital, fica difícil (quando não impossível) fazer esta distinção. Sem um meio para existir, o software não existe. Ele é nada mais que um agenciamento de circuitos pelos quais transitam pequenos pulsos de energia (chamados de energia discreta).
Essa idéia é completamente estranha para grande camada da população, cujas vidas são totalmente influenciadas pela computação, mesmo sem saber exatamente do que se trata. Inclusive, não é raro o caso de programadores que não possuem idéia de como um circuito eletrônico funciona. A grande questão que se coloca é até que ponto as interfaces amigáveis amplamente utilizadas no campo computacional, contribuem para a alienação das pessoas, fazendo com que elas, assim, reproduzam um sistema ou modo de pensar sem saber exatamente as implicações que isso pode trazer. Nesta pesquisa, estas perguntas são feitas com o intuito de instigar uma apropriação crítica da tecnologia, afinal, como aponta Dupas (2000, p.16):
Não se trata de ir contra o desenvolvimento tecnológico, adotando um posicionamento reacionário. A questão é bem outra: a tecnologia pode e deve se submeter a uma ética que seja libertadora a fim de contemplar o bem estar de toda a sociedade, presente e futura, e não apenas colocar-‐se a serviço de minorias ou atender necessidades imediatas.
Vale ressaltar que a idéia, aqui discutida, não é a de ser contra o desenvolvimento tecnológico, até porque a arquitetura interativa pressupõe sua existência. Trata-‐se de nunca deixar de se fazer perguntas sobre seus custos, suas limitações e sobre a possibilidade de resolver os problemas de outras maneiras, a partir de outros pressupostos, lógicas e métodos.
1.1.3 Os limites da sociedade tecnológica
Se o progresso vai resultar em uma vida melhor para as gerações futuras, não é possível afirmar. Entretanto, apesar da grande evolução da ciência e da melhoria de vários aspectos da vida, vários são os indícios de sua limitação e de sua natureza estranha, isso não pode ser negado. A crueldade das duas guerras mundiais e a atual crise ambiental são exemplos frequentemente utilizados para ilustrar o lado perverso da sociedade moderna. Diante de tais acontecimentos, torna-‐se imperativo ao menos colocar em dúvida esse ideal de civilização e progresso que, depois de 300 anos em voga, foi capaz de justificar, dar suporte e se desenvolver às custas de tal destruição e crueldade.
Em uma primeira análise, estes acontecimentos são suficientes para apontar a existência de facetas antagônicas na sociedade tecnológica. Porém, para apresentar uma percepção aprofundada, é necessário um esforço no sentido de desvendar