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Se o preto-velho preenche todos requisitos para ser enquadrado na alegoria do “negro bom”, o mestre juremeiro o faz com relação à do “negro safado” e do “negro feiticeiro”! Figuras irreverentes, fazem troça por tudo. Soltam altas gargalhadas de celebração à vida. Quando em terra, fazem o médium adquirir movimentos incertos e cambaleantes. Dados aos excessos do vinho e da bebida jurema, também são chamados de os bêbados. Sabem ser “camaradas”, prezando uma boa amizade; da mesma forma que sabem ser severos no castigo aos filhos que desobedecem seus desígnios. Quando em campo, mais de uma vez escutei histórias de médium que despertaram num estado lastimável, semelhante a uma embriaguez, com requintes de sintomas (como vômitos e perda de parte da noção da realidade), sem ter consumido nenhuma bebida alcoólica (às vezes bebiam água, suco, refrigerante ou mesmo nada bebiam). O estado era explicado como um castigo de seu mestre a alguma coisa que o médium tinha lhe negado.

Representantes maiores do “jeitinho brasileiro” dentro da religião, são conhecidos por “dar nó em pingo d’água” e resolver problemas que se apresentam como situações sem saída os olhos comuns. Ocupam um espaço liminar entre os rigores e responsabilidades da vida regrada dos “doutores” e dos “homens de bem” e os excessos da vida mundana, extraindo com destreza os brios e vantagens de ambas as esferas.

Acredita-se que tenham sido, quando em vida, pessoas que foram abençoadas com o dom da feitiçaria ao nascer. O dom precisou ser inato (e não aprendido) pois são dados demais aos prazeres mundanos para se submeterem aos rigores de qualquer instituição formal de ensino.

Fazem parte dessa linha também os marinheiros e os boiadeiros.

Todo mestre, quando é mestre Não discute com ninguém: Toca fogo na cachimba E a fumaça é pro além!

Se tu me queres como amigo Serei um bom teu amigo Se tu me queres camarada Serei um bom camarada Sou feiticeiro de nascença Trago meu corpo fechado A morte não é desculpa Orgulho não vale nada A morte não é desculpa Orgulho não vale nada Quer, quer, quer... Tudo mundo quer! Nêgo Chico Feiticeiro, Quimbandeiro de Guiné!

Tem gente que diz:

“Nêgo Chico não vale nada!” Trabalha com galo preto À meia-noite na encruzilhada!

Sou Nêgo Chico Feiticeiro! (Oi Sá Dona!)

Ai eu não sou de caçoar! (Oi Sá Dona!)

Eu pego o Nego é na encruza (Oi Sá Dona!)

E jogo na encruzilhada!

Essa noite eu vou sair para beber Eu vou beber até rolar pelas calçadas! Bebo porque é a minha sina,

Chiquita Preta do Reinado de Codó Quanto mais a nêga bebe,

Mais a nêga arroxa o nó!

Papai, mamãe me chama À meia-noite na encruzilhada! Saravá Seu nego Gérson À meia-noite na encruzilhada. Gérson é feiticeiro

Quando assim lhe convém Quem é filho de Gérson Não deve temer a ninguém!

Vem beber mais eu, meu mano! Vem beber mais eu, mano meu! Mano meu! Mano meu!

Se eu cair tu me segura! Mano meu! Mano meu! Se eu cair segura eu!

4.8 OS MARINHEIROS

Sérgio Buarque de Holanda chama atenção para dois princípios que se fazem presentes, combatendo-se e regulando-se, em toda atividade humana, em maior e menos grau, manifestando-se desde as sociedades mais antigas. Tais princípios se encarnam nas figuras do aventureiro e do trabalhados, como dois contrapontos éticos da vida coletiva.

Existe uma ética do trabalho, como existe uma ética da aventura. Assim, o indivíduo do tipo trabalhador só atribuirá valor moral positivo às ações que sente ânimo de praticar e, inversamente, terá por imorais e detestáveis as qualidades próprias do aventureiro - audácia, imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem - tudo, enfim, quanto se relacione com a concepção espaçosa do mundo, característica desse tipo. Por outro lado, as energias e esforços que se dirigem a uma recompensa imediata são enaltecidos pelos aventureiros; as energias que visam à estabilidade, à paz, à segurança pessoal e os esforços sem perspectiva de rápido proveito material passam, ao contrário, por viciosos e desprezíveis para eles. Nada lhes parece mais estúpido e mesquinho do que o ideal do trabalhador

(HOLANDA, 1995, p. 44).

Embora nenhum destes dois tipos exista de forma pura no mundo real, as narrativas locais estão aí a produzi-los a todo momento. O Caxias, Policarpo Quaresma e Selma Jezkova (a protagonista de Dançando no Escuro, drama assinado pelo dinamarquês Lars Von Tier) são exemplos de tipos trabalhadores: indivíduos de visão estreita, persistentes em seus ofícios, zelosos quanto às regras e à forma de fazer, mesmo que isso lhes custe um progresso lento e pouco compensador de suas ambições. De outra forma, Macunaíma, Zé Carioca e Ícaro são exemplos do tipo aventureiro: mais interessados nas recompensas imediatas que no esforço em alcançá-las.

Na esfera umbandista, o melhor exemplo do segundo tipo é o marinheiro. Símbolo por excelência das grandes odisséias, o marinheiro é movido nas águas pelo sentimento de curiosidade ante ao inexplorado. A personalidade audaciosa e desbravadora faz dos marujos figuras prenhes do saudosismo pela época das grandes navegações. O mar é um território selvagem, traiçoeiro e cheio de mistérios, pronto a ser conquistado pela jeito alegre dos marujos.

Quem tá na proa do navio é o Sibamba! Senhora Santa Bárbara

Levantou bandeira branca

Marinheiro é hora! É hora de trabalhar! É céu! É terra! É mar! Ô marinheiro,

olha o balanço do mar!

Quem ta proa do navio, marinheiro? É no balanço do mar, marinheiro! Agüenta o tombo!

É o tombo do mar!

Eu não sou daqui (Marinheiro só)

Eu não tenho amor (Marinheiro só) Eu sou da Bahia (Marinheiro só) De São Salvador (Marinheiro só) Ô marinheiro, marinheiro! (Marinheiro só)

Quem te ensinou a nadar? (Marinheiro só)

Ou foi o tombo do navio, (Marinheiro só)

Ou foi o balanço do mar (Marinheiro só)

Lái vem! Lái vem! (Marinheiro só) Ele vem chegando (Marinheiro só) Todo de branco (Marinheiro só) Com seu chapezinho (Marinheiro só)