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Como dissemos antes, o ponto cantado tem valor performativo, ou seja, visa fazer algo, agir sobre a realidade e é partícula central no ato mágico umbandista. Além disso, identifica a entidade, pois cada espírito, da infinidade que incorporam a Umbanda, tem seu conjunto de pontos cantados. Muitas vezes a letra desses pontos também descreve características pessoais da entidade que canta. Características como sexo, idade, casta, ocupação que teve em vida... Daí o seu valor mnemônico de extrema importância na construção e permanência do panteão umbandista, pois cria uma identidade para o espírito e faz com que ela fique congelada no tempo.

Na condição de performativo, o ponto cantado precisa atender certas condições para que logre êxito em sua ação. A primeira delas, diz respeito às circunstâncias em que o proferimento é feito:

Deve existir um proferimento convencionalmente aceito, que apresente um determinado afeito convencional e que inclua o proferimento de certas palavras, por certas pessoas, e em certas circunstâncias; e além disso, que as pessoas e circunstâncias particulares, em cada caso, devem ser adequadas ao procedimento específico invocado. (AUSTIN, Op. Cit., 31)

Para existir tal consenso, é necessário a existência de um código comum e partilhado pelo grupo. Esse papel, não é preenchido totalmente pela gramática da língua oficial, mesmo que todos os envolvidos sejam falantes dela. Trata-se de um código utilizado para a comunicação na situação específica e que se adeque a esta. No caso da Umbanda, engloba todos os gestos e categorias nativas que são utilizadas para compor o linguajar ritualístico.

Quem fala/canta tem que ser referendado pelo grupo para isso. Ou seja, não se trata somente do “que” se fala, mas, principalmente de “quem” fala.

Cumprindo um ato ilocucionário, o locutor exprime um certo papel e designa ao auditor um outro papel complementar; o locutor exprime sua vontade de que o auditor siga uma dada conduta, colocando-se como possuidor de uma autoridade que deixa o auditor se conduzir de determinada maneira, simplesmente porque é vontade do locutor. O papel social assumido pelo locutor, quando emite uma ordem, é o de superior hierárquico institucionalizado (PORDEUS JR.., 2000, p. 12).

Situações de contrato social ritualizado, que para acontecerem, deve existir um exercício de uma competência social específica, a competência do locutor legítimo Portanto, “eu te batizo”, “eu vos declaro marido e mulher”, “eu aposto”, “faça-se luz”, “declaro aberta a sessão”..., não são proferidos ao acaso, senão por locutores cheios de autoridade, legitimados pelo seu Outro, ou seja, o grupo receptor. Caso contrário tais sentenças se esvaem de seu valor performativo.

Da mesma forma, o ponto cantado é “feito” para ser proferido pelo caboclo incorporado, de outra forma, terão um valor performativo diferente. É o que acontece, por exemplo, com as rezas aos orixás descritas acima: de acordo com o exposto, estão classificadas como louvações (como objetivo de enaltecer) e não conjurações (com objetivo de forjar realidades).

Portanto, o ponto cantado adquire o valor de discurso jurídico, na medida em que, lançando mão da infinita capacidade generativa da língua faz existir aquilo que enuncia e, para que logre êxito, necessita da aprovação entre locutor e ouvinte sobre suas posições dentro

do jogo performático. Austin (op.cit., p. 31) ressalta que “o procedimento tem de ser executado, por todos os participantes, de modo correto e completo”.

Para se falar de uma performance plena, esta deve ser pública aos seus participantes e as rotinas relacionadas à teatralização do proferimento precisam ser rigorosamente cumpridas.

Um exemplo disso é a expectativa depositada nos ouvintes... Quando o ponto é puxado pelo caboclo, precisa ser entoado várias vezes, como resposta, de forma repetitiva pela corrente. Todas de forma correta, sem errar palavra, para ser firmado. Caso o procedimento seja interrompido antes de sua conclusão, deve-se iniciar novamente a cantiga, pois aquela certamente não alcançará o objetivo desejado.

Tais rotinas não se reduzem apenas à voz, mas também ao corpo dos participantes. Um Preto-Velho que realiza um ritual de cura em determinado indivíduo, por exemplo, deve, além de entoar seu ponto de cura, realizar uma série de movimentos corporais para que a performance produza o efeito desejado, como: banhar de perfumes a parte enferma do corpo; fazer sobre esta, movimentos repetitivos em cruz com as mãos (os passes); sacudir sobre o membro enfermo folhas plantas sagradas (como arruda, pião-roxo ou pau d’Angola); soltar baforadas de cachimbo ou charuto sobre a parte enferma...

As respostas dos ouvintes também são coreografadas. A primeira indicação para quem está na corrente é a de que se mantenha sempre em movimento, para que a energia que passa por eles também se ponha em movimento. Quando uma reza de caboclo falar em vencer demanda tirar os contrários, se espera que as pessoas que estão na corrente dêem uma volta completa em torno de seu corpo e parem com a fronte voltada para a porta da rua, encerrando com uma forte batida de pé no chão. Quando o ponto menciona o pedido de coisas boas, se coloca as duas mãos abertas, paralelas ao chão e com as palmas voltadas para cima, como que numa espera de agarrar as bonança, tão logo caiam do céu. Quando o ponto menciona vitória ou sucesso, se ergue o braço direito logo em frente à face, com o punho fechado e se bate com força o pé no chão, num gesto de triunfo. Mimetizando, desta forma, o que é dito na canção.

E é exatamente por serem cantados e não ditos, que os pontos reforçam a presença física daquele que canta, dando uma importância central a tais gestos/coreografias no acabamento da performance. Sobre esta oposição, escreve Zumthor (Op. Cit., p.188):

No dito, a presença física do locutor se atenua mais ou menos, tendendo assim a se diluir nas circunstâncias. No canto, ela se afirma, reivindicando a totalidade do seu espaço. Por isso, a maior parte das performances poéticas, em todas as civilizações, sempre foram cantadas; e, por isso, no mundo de hoje, a canção,

apesar de sua banalização pelo comércio, constitui a única e verdadeira poesia de massa. Portanto, é pela relação de oposição entre dito e cantado que defino o modo da performance.

Da mesma forma, a postura, os trejeitos e o timbre de voz assumidos pelo cavalo incorporado são componentes importantes dessa performance. Vão agir na construção da imagem que se tem daquela determinada entidade, de forma que se garanta que essa imagem possa perdurar ao tempo quando for transmitida de uma geração de iniciados à outra, mantendo-se, esta forma, a tradição a partir das memórias construídas no ritual.

Neste contexto, os sons percussivos que dão ritmo ao canto também são narrativas, pois são fonte e modelo mítico do discurso que configura a religião. Há um entrelace entre som e linguagem que forma um “estilo oral rítmico”, que faz com que os atabaques e maracás sejam componentes de um gênero poético particular. Os instrumentos são dotados de uma fala que se manteve ao longo do tempo em sua qualidade de música (idem).

É sobre este tripé que os pontos cantados tecem o panteão umbandista é construído: narrativas orais propriamente ditas, as narrativas orais percussivas e as narrativas corporais. De forma mais precisa, posso dizer que o ritual é o próprio panteão, inspirado por Leach, quando este diz: “O mito, em minha terminologia, é a contrapartida do ritual; mito implica ritual, ritual, implica mito, ambos são uma só e a mesma coisa” (LEACH, Op. Cit., p. 76). Contrariando, desta maneira, uma tendência clássica da antropologia social inglesa de tomar o ritual é como a dramatização do mito e o mito como uma justificativa do ritual (ibdem).

Ainda me detendo em Austin e as condições que se deve atender para que se formem performativos felizes:

Nos casos em que, como ocorre com frequência, o procedimento visa às pessoas com seus pensamentos e sentimentos, ou visa à instauração de uma conduta correspondente por parte de alguns dos participantes devem ter a intenção de se conduzirem de maneira adequada, e, além disso, devem realmente conduzir-se dessa maneira subsequentemente (AUSTIN, Op. Cit, p. 31).

Pode ocorrer que uma pessoa, agindo de má fé, durante a sessão, finja estar incorporada, de forma a convencer os outros membros da corrente e os espectadores do ritual da veracidade de seu transe. Tal feito é chamado ekê, no linguajar religioso e é visto de forma extremamente pejorativa pela comunidade de fiéis. Os atos concretizados por um indivíduo que esteja dando ekê não são dignos de crédito, nem deles se espera eficácia.