• Nenhum resultado encontrado

LITERAMODA: A MODA QUE NASCE DOS POROS DA LITERATURA

No documento Grazyella Cristina Oliveira de Aguiar (páginas 99-108)

1. IMAGINÁRIOS COMERCIAIS DE MODA

1.5 LITERAMODA: A MODA QUE NASCE DOS POROS DA LITERATURA

“Não vendo roupas, vendo histórias” (Ronaldo Fraga)

Entretecer Moda e Literatura não é algo inédito. Ou pelo menos não deveria ser. Basta embrenhar-se nas obras de literatos brasileiros como Machado de Assis, por exemplo, para obter-se uma descrição tão detalhada da indumentária dos personagens, quanto um croqui de um estilista. A exemplo disso, apresenta-se uma passagem da descrição que Machado fez da personagem Margarida, no Capítulo II, do conto Miss Dollar:

O vestido de seda escura dava singular realce à cor imensamente branca da sua pele. Era roçagante o vestido, o que lhe aumentava a majestade do porte e da estatura. O corpinho do vestido cobria-lhe todo o colo; mas adivinhava-se por baixo da seda um belo tronco de mármore modelado por escultor divino. Os cabelos castanhos e naturalmente ondeados estavam penteados com essa simplicidade caseira, que é a melhor de todas as modas conhecidas; ornavam-lhe graciosamente a fronte como uma coroa doada pela natureza. (ASSIS, 1994, p.06)

No alinhavo entre Literatura e Moda, traz-se como exemplo, novamente, o estilista mineiro Ronaldo Fraga, para quem a literatura pode ser uma das maiores fontes de inspiração, para criar determinadas coleções motivadas por grandes literatos brasileiros, como Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Mário de Andrade. Partindo da literatura, Fraga cria coleções icônicas com uma linguagem cheia de lirismos e invenções.

Em entrevista para o programa Entrelinhas (2009), Ronaldo Fraga comenta que costumam perguntar para ele qual é o melhor estilista brasileiro, e ele responde:

Temos tantos, Machado de Assis é um deles, Drummond, eles constroem um personagem e na construção desse personagem a roupa ocupa um lugar tão importante, que para mim eu tenho que fazer o inverso. Na construção de uma narrativa de Moda, que a palavra, a letra, que a escrita também venha com a roupa.

Nos seus desfiles, Ronaldo apresenta narrativas poéticas visuais de moda, em que a roupa conta uma história, com a sua sequência lógica de início,

100

meio e fim. O estilista53, “contador de histórias”, comenta que: “Contar uma história através da roupa, contar uma história através da moda não deixa de ser um tipo de afago, não deixa de ser um tipo de carinho”.

Um exemplo do registro do tempo, e porque não, a materialização desse tempo, é a coleção do inverno 2005 do estilista Ronaldo Fraga: “Todo mundo e Ninguém”. O estilista posteriormente lançou um livro chamado: “Moda, roupa e tempo: Drummond selecionado e ilustrado por Ronaldo Fraga”, em que fez uma compilação de poesias de algumas obras de Drummond que retratavam, de alguma forma, a moda. Neste estudo, esta coleção foi analisada e é apresentada no quinto capítulo.

Ainda que o cotidiano não seja tão belo quanto o esperado, Ronaldo consegue transformar essas paisagens cinzentas em coloridos contos, com a sutiliza e a sensibilidade de um artista. “Ronaldo emociona e talvez seja essa sua qualidade mais latente: para ele, moda é linguagem. Sem subterfúgios, ele conversa com o público dos desfiles, com os tipos geniais que o inspiram e com o próprio tempo” (GARCIA, 2007, p.72).

Essa mesma conversa, em uma obra literária, o autor tem com o leitor. Sem esse diálogo que faz o leitor conhecer o autor, admirá-lo, não há obra literária que se sustente. Cândido (2002) diz que a literatura supre duas necessidades universais: a de ficção e a de fantasia. Tais funções, segundo o autor, são coextensivas ao homem por fazerem parte de sua vida, tanto individual quanto coletivamente. E fazem parte dos elementos de satisfação das necessidades mais elementares, independente de idade, cultura, classe social. Essa forma de comunicação, antes transmitida pela oralidade, hoje aparece também na forma impressa, aparece na imagem do cinema, da telenovela, da revista em quadrinhos, da publicidade e em qualquer outro veículo que se apoie “[...] em elementos de ficção, de poesia e em geral da linguagem literária”. (CÂNDIDO, 2002, p. 81)

Dessa forma, pode-se perceber que as coleções de Fraga apoiam-se em elementos de ficção e de fantasia e encantam o público com a linguagem literária que veiculam. Seus trabalhos contam as histórias nascidas nas obras literárias, mas dizem de forma ampliada pelo olhar atento do leitor-criador que visita as

53Vídeo de Ronaldo Fraga: Cadernos de roupas, memórias e croquis. Disponível em: <

101

terras dos personagens, conversa com seus autores e pede licença para apresentá-los nos desfiles que todos os anos são aguardados por antigos e novos leitores.

Outro casamento bem sucedido entre a Literatura e a Moda é a coleção “A cobra: ri - uma história para Guimarães Rosa” de verão 2006, inspirada nas obras de Guimarães Rosa e seu livro "Grande Sertão: Veredas”. Ronaldo representa em sua coleção o mundo dos sertanejos, por meio de bordados, estampas, tecidos e cores. Simboliza o imaginário do escritor em suas peças com elementos imagéticos que permeiam a obra. No final do desfile (verão, 2006) o estilista aparece com um monte de livros e os joga para a plateia. Alguns elementos desta coleção foram analisados com o auxílio da teoria do imaginário, apresentada no item 6.3 da tese.

Ao ler o Turista Aprendiz, de Mário de Andrade, Ronaldo se sentiu inspirado para conhecer melhor alguns lugares do Brasil, e a partir do livro, criou três coleções. A coleção “Turista Aprendiz” de verão 2010/2011 retrata a cultura de Pernambuco, utilizando-se de uma cartela de cores que variava dos tons terrosos ao colorido das estampas. A coleção “Turista Aprendiz na Terra do Grão-Pará” de verão 2012/2013, foi inspirada e representa a cultura de Pará. A coleção “Carne Seca ou Um Turista Aprendiz em Terra Áspera” de inverno 2014, foi inspirada no sertão nordestino brasileiro. Nesta última, além de trabalhar com couro, cores terrosas e estampa digital de terra seca e árida que ele criou para contar a história do Rio São Francisco, Ronaldo estampou literatura em Cordel no forro dos casacos da coleção. As análises das coleções se encontram nos itens 7.1, 7.5 e 7.8 da tese.

Em 2011, Ronaldo Fraga expôs algumas peças da sua coleção inspirada nas obras de Drummond na XV Feira Pan-Amazônica do Livro. Ronaldo também fez parte da programação do evento com a palestra: “Moda e Literatura: quando se lê as roupas e vestem as palavras”.

Em julho de 2014, o estilista lançou sua exposição “Moda e Literatura por Ronaldo Fraga”, no Centro de Referência da Moda de Belo Horizonte (CRModa). A exposição conta com peças da coleção de inverno 2005 (inspirada nas obras de Drummond) e de verão 2006 (inspirada na obra de Guimarães Rosa). A exposição está prevista para ficar no CRModa até o dia 20 de dezembro.

102

Treptow (2013, p. 106) afirma que o tema da criação de uma coleção de moda “[...] pode surgir de qualquer fonte, cabe ao designer transformar esse elemento inspirador em uma proposta de moda, chocante ou comercial conforme o objetivo da empresa” ou do próprio profissional. Mas, acredita-se, a ousadia do criador deve ser o seu primeiro objetivo, e transcende-lo, quando necessário, quaisquer outros, como forma de gestar o inusitado, como faz Fraga, ao escolher temas diversificados, traduzindo-os de forma original. Neste sentido, Salles (2011, p.118) afirma que a tradução criativa denota conversões de linguagens “[...] que ocorrem ao longo do percurso criador, de uma linguagem para outra: percepção visual se transformando em palavras; ou palavras surgindo como diagramas, para depois voltarem a ser palavras, por exemplo”, tratando-se de tradução intersemiótica.

Para entender melhor a relação entre moda e literatura na visão de Fraga, fez-se essa pergunta para o estilista em entrevista para coleta de dados para a tese (2013). O estilista responde:

Moda é a escrita pessoal de cada um, a roupa é uma página em branco que você compra na loja para poder criar a sua escrita, desenhar o seu personagem e, claro, é a escrita pessoal ou deveria ser a escrita pessoal também de quem cria, embora o último momento que a roupa vá me pertencer é na hora do desfile. Eu gosto de falar isso até porque é uma forma de me libertar, de pegar e começar a contar outra história, mas o que eu vendo para as pessoas é isso, é um estímulo à escrita pessoal. E a Literatura é isso. (FRAGA, 2013)

O estilista (2013) também comenta que uma coleção boa para ele é uma coleção que lhe dê livros para ler. Que ele possa ler e reler as obras inteiras, como Graciliano Ramos, para tentar abstrair determinada cor, peça, forma, presentes, de alguma maneira, nas obras. Elementos de criação que possam ser traduzidos novamente, de acordo com a época que se leia a obra, relendo em diferentes fases da vida, o que faz com que a leitura e a tradução sejam diferentes, como se percebe com a história da roupa: “[...] o que o tempo faz com a roupa, é o que o tempo faz com o seu entendimento da escrita do outro” (FRAGA, 2013). Depois dessa resposta, perguntou-se para o estilista se a literatura pode ser considerada uma das suas fontes principais de inspiração. Neste ponto, o estilista (2013) comenta que é o lugar mais confortável para ele, pois ele é o dono da imagem, já que na literatura o leitor visualiza o personagem

103

de acordo com a descrição verbal do autor, mas à imagem do leitor, de acordo com a imaginação deste. Dessa forma, o leitor se torna dono do personagem. Neste contexto, quando alunos de moda pedem ao estilista um conselho sobre criação, ele os adverte para fugirem de imagens prontas, imagens que foram produzidas e pagas para estar na mídia por alguém, o que não é o caso da literatura, que dá informações para que o leitor possa criar a imagem do personagem à sua maneira. O estilista (2013) cita, como exemplo, o escritor Machado de Assis, o qual descrevia muito bem seus personagens:

Machado de Assis fazia isso muito bem: ele vestia um personagem inteiro e te dava esse personagem vestido para depois ele contar a história. E aí essa coisa de você imaginar essa criação, de certa forma é o que eu faço para que uma coleção minha exista. Eu tenho que ter ela na ponta da língua, eu tenho que conseguir contá-la verbalmente para você, senão não vale. (FRAGA, 2013)

Em outro momento da entrevista, perguntou-se para o estilista sobre o motivo da escolha de determinados literatos para desenvolver suas coleções, como Drummond e Guimarães Rosa. Fraga (2013) responde que os dois escritores são universais: “Drummond e Guimarães Rosa são duas figuras que são brasileiras, são universais: Eu sempre tive o maior respeito por Drummond, sem dúvida alguma, é o poeta maior. Tento entender essa essência da marca de uma figura”. O estilista (2013) comenta que em entrevistas costumam perguntar para ele se ele escolheu Drummond por ser mineiro. Fraga comenta que escolheu Drummond pela qualidade da obra do poeta, e que até se esquece que Drummond era mineiro. Fraga (2013) explica que Drummond, além de imprimir o tempo em suas obras como ninguém, nas entrelinhas, fala de moda. Acrescenta que o poeta em suas obras tem sempre uma roupa escondida. O estilista percebe o poeta como um estilista que entende como ninguém das transformações que a moda sofre com o tempo.

Com as respostas de Ronaldo, nota-se que a literatura, a leitura de grandes literatos brasileiros é uma fonte de inspiração importante para desenvolver suas coleções, para entender a lógica da narrativa daquele autor e tentar transpor essa linguagem para produtos de moda. Pode-se dizer que Fraga entende a literatura como parte da formação do homem. Formação humana, cultural, artística, como formação de trabalho, como inspiração. Não foi à toa que

104

ele foi convidado para palestrar no XV Feira Pan-Amazônica do Livro, por exemplo, como foi comentado anteriormente.

Por meio de suas coleções ele também, de alguma forma, incentiva a leitura de renomadas obras da literatura brasileira, a valorização do que é produzido aqui e muitas vezes é esquecido.

Assim, com os exemplos dados, percebe-se a possibilidade de entretecer moda e literatura, por meio do desenvolvimento de coleções de moda inspiradas na literatura brasileira, as quais procuraram transpor a linguagem verbal presente nas obras lidas para uma linguagem visual, tecendo os diferentes tipos de textos: letras, tecidos, cores, formas, texturas, entrelaçando os códigos visuais e textuais. Esta abordagem pode evidenciar que a indumentária é formada por elementos textuais imagéticos como formas, cores, texturas, harmonia, proporção, ritmo, os quais, em sintonia com o usuário, formam um texto capaz de dizer muito sobre seu autor, que é também seu usuário.

Por fim, com esse capítulo, notaram-se alguns métodos de criação que são utilizados na indústria de moda, no meio acadêmico e por renomados estilistas, em especial Ronaldo Fraga, tentando mostrar três vieses, se há relação ou não entre eles. Percebeu-se, também, que as pesquisas são fundamentais nos processos de criação de moda. É por meio da pesquisa que produtos originais podem surgir. A pesquisa pode ser um método aplicado na indústria; deve ser um método aplicado no meio acadêmico para formar profissionais mais reflexivos que, ao criarem produtos de moda, podem se aproximar mais da inovação do que da cópia. A pesquisa em processo de criação de moda já é um método empregado por estilistas renomados, o que se subentende que pode ser, também, seu diferencial. Desta forma, para aprofundar o olhar nos processos de criações autorais, o próximo capítulo, trata, exclusivamente, de apresentar alguns designers que atuam na área de moda e que, além de criarem coleções de moda autorais, possuem características de trabalho em comum, como a valorização cultural, diferenciando-se dos processos de criações mercadológicas abordados no início deste capítulo. Os processos de criações autorais representam o DNA do estilista, como poderá ser visto por meio da descrição do processo criativo do estilista Ronaldo Fraga. Portanto, o capítulo seguinte visa a refletir sobre elementos capazes de permitir

105

que se possa traçar um comparativo entre métodos comerciais, métodos acadêmicos e métodos autorais.

107 2. IMAGINÁRIOS AUTORAIS DE MODA

“Só Deus é original, o resto é tradução”. (Monges Medievais)

O significado da palavra autoral, conforme o dicionário Michaelis54, refere- se a algo “Que diz respeito aos autores de obras literárias, científicas ou artísticas”. O termo designa algo que dá indícios de alguém. Algo que seja original e único. Pode ser algo material ou imaterial, como uma comida, uma música, um quadro, o cheiro, dentre outros elementos que podem particularizar e remeter à determinada pessoa, a determinado autor. Pode-se citar como exemplo, na gastronomia, os pratos do chef Alex Atala, as músicas dor-de- cotovelo de Lupicínio Rodrigues, a estética dos quadros de Beatriz Milhazes, Romero Britto, o trabalho de Vik Muniz, o cheiro do perfume Chanel n° 5, a moda de Alexandre Herchcovitch e uma das figuras que o estilista utiliza para estampar seu trabalho, a caveira.

O imaginário autoral representa as influências recebidas e exteriorizadas por indivíduos que, mesmo “banhando-se” em imagens “enlatadas”, conseguem transcodificar e transcriar algumas imagens para novas edições, tramar transposições, justaposições, hibridizações, mixagens que dão um tom todo particular a sua trans(criação).

O objetivo deste segundo capítulo é evidenciar questões sobre processo criativo, por meio da análise de alguns aspectos que envolvem a originalidade em meio à era do consumo e da cópia, utilizando-se para isso alguns conceitos que se relacionam. Toma-se nesta análise, em especial, o estudo trazido por Salles que trabalha processo criativo, a partir da semiótica peirceana. Busca-se, ainda, evidenciar a linha tênue que separa o comum, a massificação, a reprodução, o comercial, presente no primeiro capítulo quando se abordam as tendências, o que está impregnado na sociedade de massa – intitulado na tese

54AUTORAL. Disponível em:

<http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues- portugues&palavra=autoral>. Acesso em: 22.set.2014.

108

como imaginário comercial – do que pertence à coletividade e consegue ser original, contextualizado na tese, neste segundo capítulo, como imaginário autoral.

Desta forma, este capítulo apresenta reflexões sobre conceitos que permeiam o processo de investigação criativa, tais como autoralidade, reprodução, cópia, inovação, moda autoral. Ao longo deste capítulo são apresentados alguns designers que atuam na área de moda e que, além de desenvolverem coleções de moda autorais, possuem características de trabalho comuns, como a valorização da identidade cultural regional/nacional do Brasil. Por fim, finaliza-se o capítulo apresentando alguns aspectos do processo criativo do estilista Ronaldo Fraga.

No documento Grazyella Cristina Oliveira de Aguiar (páginas 99-108)

Documentos relacionados