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2 A DIFÍCIL RELAÇÃO ENTRE RELIGIÃO E ARTE:

2.1 A literatura comparada – reflexões

Non addio, non buon viaggio - diceva Eliot nei quattro quartetti – ma avanti, viaggiatori. (BOITANI, 1998, p. 100).

Escolhi como embasamento teórico para minhas reflexões o referencial metodológico da Literatura Comparada. Por isso, nesse instante, acredito ser necessário apresentar alguns conceitos desse princípio de análise, que começarão a dar forma às idéias até aqui apontadas por mim.

Referindo-me ao conceito de Henry Remak, apresentado por Sandra Nitrini (1997, p. 28), tomo como ponto de partida a idéia de que a

Literatura Comparada31 é o estudo da literatura, além das fronteiras de um país particular; é o estudo da relação entre literatura, de um lado, e outras áreas de conhecimento, e da crença, tais como as artes (ex: pintura, escultura, arquitetura, música, filosofia, história, ciências sociais, religião, etc). Em suma, é a comparação de uma literatura com uma outra ou outras, e a comparação da literatura com outras esferas da expressão humana.

Eduardo Coutinho (2006, p. 41) diz, referindo-se à origem32 da Literatura

Comparada, que:

Surgida em contraposição aos estudos de literaturas nacionais ou produzidas em um mesmo idioma, a Literatura Comparada traz como marca fundamental, desde os seus primórdios, a noção da transversalidade seja com relação às fronteiras entre nações ou idiomas, seja no que concerne aos limites entre áreas do conhecimento.

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“ Na Roma clássica, autores como Macrobius e Aulus Gellius teceram diversos paralelos entre poetas romanos e gregos; e, na Renascença, o comparatismo chegou a tornar-se moda na Europa, devido, em grande parte, à doutrina de imitação, que exigia comparações e o estudo de influências. No século XVIII, a comparação entre obras literárias clássicas e modernas voltou a ocupar um primeiro plano, gerando inclusive a famosa Querela dos Antigos e dos Modernos, e, finalmente, após essa época, inúmeros foram os casos isolados de escritores ou críticos que, marcados por acentuado senso de cosmopolitismo, realizaram estudos comparativos de autores, obras, movimentos, ou até literaturas de maneira geral: Goethe, Herder, Lessing, Mme. De Stael, os irmãos Schlegel, Henry Hallam e Sismondi.” (COUTINHO, 1996, p. 26).

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“Existente também desde a Antigüidade, quando esteve, por exemplo, voltada para o estabelecimento de textos do Velho e Novo Testamentos a partir de uma infinidade de manuscritos distintos, a Historiografia literária sempre se instituiu como uma das principais searas de investigação da Literatura Comparada, tendo esta inclusive em seus primórdios sido freqüentemente confundida com ela, em decorrência do predomínio do método historicista à ocasião da configuração e consolidação da disciplina.” (COUTINHO, 2006, p. 53).

Para François Jost, segundo Coutinho (2006, p. 43), há aqueles que vêem a literatura “como uma espécie de dom muito especial e entendem o seu estudo, a Literatura Comparada, como uma verdadeira ‘filosofia das letras’, um ‘novo humanismo’.”

Mas se faz necessário entender que a comparação não é um método específico, ela é, na verdade, um processo mental, que favorece a aproximação ou o distanciamento de textos.

Assim, para Pichois & Rousseau (apud COUTINHO, 2006, p. 43), a Literatura Comparada seria a descrição analítica, seria uma comparação metódica e diferencial, uma interpretação resumida dos fenômenos literários interlingüísticos ou interculturais, que seria delineada através da história, da crítica e da filosofia, o que levaria ao melhor entendimento da literatura enquanto função específica do espírito humano.

Atualmente, aqueles que se utilizam da Literatura Comparada formam quase que um consenso entendendo que, como pela definição de Owen Aldridge, apresentada a nós por Coutinho (2006, p. 43):

[...] ela fornece um método de ampliação da perspectiva do indivíduo na abordagem de obras isoladas de literatura – uma forma de voltar-se para além dos limites estreitos das fronteiras nacionais, com o fim de discernir tendências e movimentos em várias culturas nacionais e observar as relações entre a literatura e outras esferas da atividade humana... Em suma, a Literatura Comparada pode ser o estudo de qualquer fenômeno literário do ponto de vista de mais de uma literatura nacional ou em conjunto com outra disciplina intelectual, ou até mesmo várias.

De tal forma, comparar poderia ser entendido como um procedimento natural que faz parte da estrutura de pensamento do homem e de sua organização cultural. “Seguindo a expressão de Posnett, ‘quando Dante escrevia seu De vulgari eloquentia, marcava o ponto de partida de nossa ciência comparativa, colocando o problema da natureza da linguagem’.” (COUTINHO; CARVALHAL, 1994, p. 29). Por isso é tão comum vermos várias áreas do conhecimento humano sistematizando-se em torno da comparação.

As literaturas, por sua vez, não possuem um limite preciso, elas se entrelaçam, penetrando umas nas outras.33

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“Embora Julia Kristeva tenha querido desvincular a questão da intertextualidade do estudo de fontes, na verdade o conceito contribuiu para que ele fosse renovado. Principalmente porque ele abala a velha concepção de influência, desloca o sentido de dívida antes tão enfatizado, obrigando a um tratamento diferente do problema. Como adverte Laurent Jenny em seu ensaio ‘A estratégia da forma’, a intertextualidade ‘designa não uma soma confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado por um texto centralizador, que detém o comando do sentido (p. 14)’.” (CARVALHAL, 1986, p. 51).

Há como uma matéria fluida que escorre sucessivamente em formas diversas, sob modos infinitamente variados, em cérebros inteiramente diferentes e que, passando de um a outro, leva consigo cada vez um elemento novo e um princípio ativo. (COUTINHO; CARVALHAL, 1994, p. 37).

Considero a observação acima pertinente, principalmente por vir ao encontro da afirmação, reproduzida por Lauro Junkes (1997, p. 17), em seu livro Autoridade e

escritura, de que houve um tempo em que literatura, filosofia e religião existiam

indistintamente. Ou seja, houve um tempo em que nem mesmo as fronteiras entre literatura34,

filosofia e teologia eram possíveis de ser distinguidas, posto que

Se, por um lado, a obra artístico-literária tem sua autonomia, é inconcebível que ela se isole num autismo alienado do contexto histórico-sociológico. A manifestação artística não pode subsistir e desenvolver-se no puro nível de uma arte pela arte ou no eclipsamento do autor em si mesmo. (JUNKES, 1997, p. 16).

Este seria um princípio que nos levaria a pensar inclusive a própria crítica bíblica de forma diversa. No Guia literário da Bíblia, Alter e Kermode (1997, p. 12) fazem a seguinte colocação:

A força das narrativas do Gênesis ou a história de Davi, as complexidades e refinamentos das narrativas da Paixão poderiam ser estudadas por métodos desenvolvidos na crítica da literatura secular35. A eficácia dessa nova abordagem – ou abordagens, pois a obra prosseguiu por muitas vias diferentes – tem sido amplamente demonstrada. A crítica bíblica profissional foi profundamente afetada por ela: porém, o que é ainda mais importante, o leitor em geral tem agora diante de si uma nova concepção da Bíblia como obra de grande força e autoridade literária, obra sobre a qual se pode perfeitamente acreditar que tenha podido moldar as mentes e vidas de homens e mulheres inteligentes por mais de dois milênios.

O que Alter e Kermode procuram demonstrar é que a análise literária, principalmente a partir da Literatura Comparada, deve preceder qualquer outro tipo de análise, pois é ela que nos dará a dimensão do que o texto quer fazer ou dizer. Sem isso, segundo os autores, não seria possível acreditar que o texto tenha valor sob outros aspectos. De tal maneira, pode-se considerar a Bílbia somente como um texto literário e não teológico ou vice-versa, depende do sujeito que lê.

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Porém, é preciso não perder de vista que uma obra de arte não pode ser vista apenas como uma soma de fontes e influências.

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Prosseguindo, se poderia dizer que a análise literária, representada aqui pela Literatura Comparada, durante muitos anos, foi colocada em segundo plano em relação aos estudos dos textos bíblicos. Mas, desde a década de 70, este quadro tem sido alterado, trazendo um foco novo e importante para os estudos acadêmicos dos textos classificados como sacros. Este aspecto teórico parece ter feito com que a cultura bíblica fosse olhada com outros olhos e os textos bíblicos tenham recuperado seu lugar na cultura literária.36

È importante não perder de vista que a Literatura Comparada se utiliza de muitos instrumentos para efetuar sua análise comparativa. No caso específico de minha pesquisa, optei pela crítica temática e tomei como referencial o tema da viagem ao além para aproximar os textos aqui propostos. Ao contrário do que muitos acreditam o tema não tem nada de dogmático, não se desenvolve ao redor de uma concepção doutrinal, mas se dá como pesquisa a partir de uma idéia central. O ponto de partida da crítica temática é a rejeição a toda e qualquer concepção que perceba o texto literário como um objeto que se esgotaria após uma única e simples investigação científica. A idéia central deste tipo de análise estaria no fato de que a literatura, mais que objeto do conhecimento, é experiência humana, é essência espiritual.

Apesar de a crítica temática ser vista, ideologicamente, como “filha do romantismo”, é possível dizer que a referência aos temas na literatura é bem anterior a esse período.

O termo é herdado da antiga retórica, que concedia grande importância ao ‘topos’, elemento de significação determinante num dado texto. Foi preciso, todavia, esperar os desenvolvimentos do comparativismo – lingüístico e literário – no início do século XIX, para que a noção adquirisse importância: o ‘tema’ fornece então um elemento comum de significação ou de inspiração, que permite comparar, a partir de um mesmo ‘índice’, obras de autores diferentes. (BERGEZ ET AL., 2006, p. 99).

A crítica temática busca vincular a verdade da obra a uma consciência dinâmica que se encontra ainda em formação. Por isso ela recusaria, mas não esqueceria tanto a idéia clássica de que o autor é dono de sua obra como a concepção psicanalítica que atribui a ela uma interioridade psíquica que lhe é anterior. A consciência do autor no ato da criação estaria vinculada ao pensamento da relação deste com o mundo.

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“Muitos pontos relevantes da teoria crítica de hoje tiveram origem no estudo hermenêutico da Bíblia. Muitas abordagens contemporâneas da crítica têm raízes obscuras numa síndrome do tipo Deus-está-morto, que também se desenvolveu a partir de uma leitura crítica da Bíblia.” (FRYE, 2004, p. 18).

Dessa forma, partindo da concepção de consciência do autor, torna-se possível dizer que a crítica temática tem, como um de seus principais conceitos, o da relação. “É por sua relação consigo mesmo que o eu se estabelece, é por sua relação com o que o cerca que se define.” (BERGEZ ET AL., 2006, p. 105). É dessa maneira que os estudos dos críticos temáticos alteram o jogo da caracterização, ou seja, a crítica efetivada por eles não se refere só a uma consciência, mas aos vários meios e modalidades das relações que os unem.

A crítica temática se opõe à idéia de que são o sentido e o valor fatores vistos sempre como diferenciais, de que são os desvios mais significantes que as semelhanças. Sendo o tema definido, essencialmente, por sua repetição, seria essa a lei à qual o procedimento temático obedece: a lei da conciliação pela identidade.

Para preservar esse movimento ao mesmo tempo espiritual e fisiológico que tenta seguir, a crítica temática aplica-se em separar o menos possível seu próprio discurso dos textos que comenta: ora se limita a seguir a cronologia das obras [...]; ora se empenha em multiplicar as citações, em tecer juntamente a palavra crítica e a voz da obra; ora, enfim coloca o crítico na mesma posição do autor que comenta. (BERGEZ ET AL., 2006, p. 116-117).

Para Bergez, J. P. Richard é um dos críticos que melhor define o que se pode entender por tema. Para ele, tema é, dentro do espaço da obra, uma de suas unidades de significação, é uma das categorias que podemos reconhecer como particularmente ativas. “Assim definido, o tema designa tudo o que, numa obra, é um indício particularmente significativo do ‘estar-no-mundo’ peculiar ao escritor.” (RICHARD apud BERGEZ ET AL., 2006, p. 118).

Visto de tal forma, o tema pode ser suscetível de nos remeter tanto a um conteúdo como a uma realidade formal. Isso equivaleria a dizer que toda e qualquer imagem não vale por si mesma, mas pela rede de sentidos e significações que ela inaugura ou desenvolve.

A partir do surgimento da crítica temática, parece ser possível dizer que a crítica reencontrou sua face criativa, afirmando a vocação espiritual das obras literárias e se apresentando como uma experiência que busca dar vida aos textos percebendo-os de forma generosa.

É partindo desse entremear de definições, culturas, ciências e textos que posso dizer se colocam os estudos da Teopoética, justificando-se pela solidez dos estudos comparatistas da literatura, pela questão levantada por Bakhtin (1988) de que nenhum texto se

constrói por si só, já que todos seriam absorção e transformação de um outro texto, e pelas concepções da crítica temática, que vê a literatura como uma forma de vocação espiritual que permite ao homem perceber-se inserido no mundo, através do refletir de seus temas.

A partir deste momento, então, deixo de lado provisoriamente as reflexões específicas sobre Literatura Comparada e suas várias vertentes para entrar especificamente no mundo dos estudos literários entrelaçados com a teologia.