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2 A DIFÍCIL RELAÇÃO ENTRE RELIGIÃO E ARTE:

2.2 Tecendo comparações entre teologia e literatura: a teopoética

Assim, cada impressão que o homem recebe, cada desejo que nele se agita, cada esperança que o atrai e cada perigo que o ameaça, pode vir a afetá-lo religiosamente. (ALVES, 2004, p. 34).

Inicio este item de minha pesquisa fazendo a seguinte afirmação: a Bíblia é, assim como outros textos, objeto de interpretação. Caso alguém duvide disso, tente escolher uma pessoa que tenha sua formação baseada na cultura ocidental e pergunte se ela sabe o que as palavras gregas queriam dizer exatamente na época em que foi escrito o Novo Testamento, para que pudessem ser identificadas como a Palavra de Deus. Provavelmente ela responderá que não sabe grego, mas que leu a versão autorizada da Bíblia, o que, em princípio, segundo ela, seria a mesma coisa. Isso bastaria para nos evidenciar que mesmo os que dizem conhecer o texto bíblico não o conhecem realmente, no sentido que acreditam conhecer, pois o lêem após “interpretações” ou “releituras” feitas por tradutores.37

Partindo de tal constatação, coloquei-me a questão: em quais circunstâncias se daria o estudo da Teopoética? E descobri que estudar teologia e literatura, mesmo que orientados pela Literatura Comparada, não é seguir um caminho desprovido de riscos.

Karl-Josef Kuschel (1999) busca, com isenção e seriedade, entender as relações, muitas vezes conflituosas, entre a literatura e as tradições religiosas. Para ele, os autores devem ser lidos, entendidos e respeitados dentro de suas escolhas. Por isso, seria tarefa do homem-leitor apreender o que lhe cabe e interessa. Dentro dessa concepção, é que ressalto a posição do Concílio Vaticano II 38

, que se manifesta em função da literatura para a igreja e a teologia, explicando que a literatura e a arte, ambas a seu modo, significam muito

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“[...] apesar de seu compromisso com a palavra falada, a maior façanha de Lutero foi provavelmente sua tradução da Bíblia para o alemão. Ele começou com o Novo Testamento, que traduziu do texto grego de Erasmo (1522), e depois, trabalhando numa velocidade vertiginosa, completou o Antigo Testamento em 1534. Quando Lutero morreu, um entre 70 alemães possuía um exemplar do Novo Testamento vernacular, e a Bíblia alemã de Lutero tornou-se um símbolo da integridade alemã. Ao longo dos séculos XVI e XVII, reis e príncipes por toda a Europa começaram a declarar independência em relação ao papado e a instituir monarquias absolutas. O Estado centralizado foi parte essencial do processo de modernização, e a Bíblia vernacular tornou-se um símbolo da vontade nacional nascente. A tradução da Bíblia para o inglês, que culminou com a Bíblia do rei James (1611), foi endossada e controlada quase passo a passo pelas monarquias Tudor e Stuart.” (ARMSTRONG, 2007, p. 163).

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O Concílio Vaticano II foi o XXI Concílio Ecumênico da Igreja Católica. Foi aberto sob o pontificado do Papa João XXIII, em 11 de outubro de 1962, e encerrou-se com o Papa Paulo VI, em 08 de dezembro de 1965. Durante o concílio, foram discutidos e regulamentados vários temas pertinentes à Igreja Católica.

para a igreja, pois procuram entender o homem na sua essência e, assim, promovem a vida. É sob esse aspecto que Manzatto busca as possibilidades de relação entre a religião e a literatura. Segundo ele, a temática que envolve literatura e teologia foi amplamente discutida nos últimos anos, inclusive pela Igreja Católica, o que gerou vários artigos, estudos e trabalhos; e sua opinião é que:

Para chegar ao antropológico, à compreensão do que é o homem e do que ele significa, a teologia pode ser ajudada por vários tipos de mediação [...]. Ela pode fazer apelo à filosofia e às ciências em geral, com destaque para as chamadas ciências humanas. Mas ela pode também fazer apelo às artes. Estas, por sua natureza e por seu antropocentrismo radical, são também lugar de revelação do humano. Sendo assim, a literatura de ficção revela uma forma de compreensão do humano, uma antropologia. (MANZATTO, 1994, p. 5)

Partindo, então, do viés da Teopoética, a qual procura interpretar a visão literária de Deus39, me propus a estudar o texto dantesco, bem como o Livro dos Segredos de Enoch e o Livro da Ascensão de Isaías, ampliando o horizonte literário-religioso para além

das crenças ocidentais. Aqui, vale lembrar que, segundo Paul Tillich (2002, p. 24) “a distorção mais freqüente da fé consiste em considerá-la como um conhecimento que apresenta menor grau de certeza do que o conhecimento científico”. Para o teólogo:

A fé não confirma nem nega nada que faça parte do conhecimento pré-científico ou científico do nosso mundo, seja ele baseado em experiência própria ou de outros. O conhecimento do nosso mundo (inclusive de nós mesmos, que somos parte desse mundo) nos é dado pela nossa própria investigação ou pelas fontes em que confiamos. Ele não é uma questão de fé. (TILLICH, 2002, p.25-26).

E ainda:

Desde que a pesquisa histórica descobriu o caráter literário dos escritos bíblicos, esse problema se tornou cada vez mais consciente no pensamento popular e teológico. Mostrou-se que o Antigo e o Novo Testamento em seus trechos narrativos ligam elementos históricos, lendários e mitológicos, e que em grande parte é impossível separar esses elementos com segurança suficiente. (TILLICH, 2002 p. 57).

O que a Teopoética faz, então, é justamente isso, procurar Deus na literatura, que se utiliza da linguagem para representá-lo, sem querer explicá-lo ou conceituá-lo.

Essa situação é comentada por mim em um estudo que fiz sobre O Código da ____________

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“O falar sobre Deus tem nos escritores a função de um auto-esclarecimento realista do ser humano acerca de suas possibilidades e esperanças e acerca dos enganos a que ele mesmo se submete.” (KUSCHEL, 1999, p. 217).

Vinci, de Dan Brown, que resultou em um artigo40 no qual eu afirmei que várias publicações

surgiram querendo mostrar que os argumentos usados pelo autor eram ou falhos ou impossíveis, esquecendo-se de que a obra pertence ao território da ficção e não da teologia.

Seguindo assim a linha dos estudos que buscam envolver teologia e literatura, principalmente quando tratam da mesma temática, tomei como referência Salma Ferraz (2006, p. 236), que afirma que:

Quando falamos em teopoética – estudos comparados entre teologia e literatura - podemos pensar que se trata de estudos pertinentes somente à personagem Deus. Mas o discurso crítico-literário, a reflexão teológica e literária desse ramo de estudos é extensivo a toda a Bíblia – Velho e Novo Testamentos e a todos os personagens bíblicos.

E esclarece sobre as prováveis origens da Teopoética:

[...] a idéia da Teopoética nasceu antes do cristianismo. Santo Agostinho não aceitava a Teopoética, era frontalmente contra a reinvenção e reinterpretação poética de textos sagrados da Bíblia efetivada pelos poetas de uma forma mítica ou

fabulosa. O que Agostinho na realidade pretendia era “enterrar a teologia poética e

mantê-la firmemente reprimida pelos próximos mil anos”. Segundo Cuppit, Agostinho não queria rivais, queria o monopólio da Teologia para si.

A idéia de estudar Deus através da literatura não é, portanto, nova. Mas, aqui utilizarei como marco temporal e histórico para essa linha de pesquisa, a difusão das idéias de Kuschel. O teólogo, em seu livro Os Escritores e as Escrituras, apresenta uma entrevista, feita em 15 de novembro de 1945, por dois escritores: Gottfried Benn e Reinhold Schneider, que deveriam responder à seguinte pergunta: “é papel da literatura tornar a vida melhor?” Os dois, na época escritores famosos, protagonizaram um verdadeiro duelo verbal, que mostrou duas formas totalmente diferentes de pensar a literatura. Benn é muito radical em suas colocações e embasa sua argumentação no fato de não considerar arte como cultura. Para ele:

O mundo do agente cultural constitui-se de húmus, de terra para jardim; ele processa, cultiva, expande; aponta para a arte, trata de trazê-la para perto, fazê-la transitar, institui cursos e currículos para ela; ele crê na história, é positivista. Quem produz arte (ao contrário) é estatisticamente um associal, não sabe quase nada sobre o antes dele nem sobre o depois dele; vive apenas para seu material interior, e é para ele que coleciona momentos dentro de si, e os empurra para dentro, empurra-os tão fundo, até que isso toque seu material, torne-o inquieto e obrigue-o a despejar. Quem produz arte não está interessado em divulgação, em um campo de ação, no aumento da recepção; ele não tem interesse em cultura. (BENN apud KUSCHEL, 1999, p. 15).

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GASPARI, Silvana de. Teologia e literatura em O Código da Vinci de Dan Brown. Revista de Difusão

É comum existirem relatos como os de Benn, ao longo da história da crítica literária, nos quais encontramos a arte criticando a religião e vice-versa. Isso pode ser observado desde a época dos Pais da Igreja.41 Essas críticas se resumiriam a alguns pontos

principais como: a literatura é invenção humana, os poetas são mentirosos, a ética da literatura é recriminável, pois corrompe a juventude. E é a partir desses princípios que a literatura foi geralmente vista e julgada pela religião, pelo menos até o século XX. Mas, mesmo no século XXI, ainda é possível encontrar situações nas quais a religião se coloca como opositora e crítica da literatura. Bastaria voltarmos ao caso que citei anteriormente, a respeito do best- seller de Dan Brown, e teríamos uma comprovação disso. Mais atual ainda é a condenação da Igreja Católica em relação ao romance Caim, de José Saramago.42

Retornando à entrevista reproduzida por Kuschel em seu livro, conhecemos, até este momento, um pouco da postura de Benn sobre arte e religião. Mas, e Schneider, o que nos diz sobre se a literatura deve tornar a vida melhor.

Para Schneider (apud KUSCHEL, 1999, p. 29), a literatura seria “a enunciação ou presentificação verbal de uma realidade interior que se eleva à condição de uma forma e se volta à sensibilidade”. Suas idéias retratam, muito claramente, as controvérsias de ser um poeta que crê: “não devemos esconder de nós mesmos que o cristianismo, a arte e a vida cristã são, eles mesmos, uma esfera do fracasso!”. (SCHNEIDER apud KUSCHEL, 1999, p. 29).

Mas será realmente verdade que a fé e a arte não podem caminhar juntas? Será que, para acreditar em Deus, no Deus de nossa infância, devemos negar a arte? Será ela má companheira da religião? Parece que tudo depende do enfoque que queremos dar à literatura e à sua relação com a religião. Aqui entra, então, segundo Kuschel, a Teopoética que busca ser

[...] não a procura por outra teologia, não a substituição do Deus de Jesus Cristo pelo dos diferentes poetas, mas a questão da estilística de um discurso

sobre Deus que seja atual e adequado. (KUSCHEL, 1999, p. 31). ____________

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“Ainda mais antiga que a tradição da crítica estética à religião é a crítica religiosa à arte, já cultivada de forma veemente pelos Pais da Igreja, em seus primeiros séculos (Tertuliano, Agostinho, Jerônimo). No processo histórico, essa crítica cristalizou-se em uma série de topoi: a literatura, ao contrário da revelação cristã, não passa de uma duvidosa invenção humana; os poetas mentem. A representação de Deus e do homem na literatura é eticamente recriminável; por estar orientada pelos sentidos, ela corrompe a juventude, já que desperta e alimenta desejos baixos. E, de fato, até o século XX a literatura é vista freqüentemente como intromissão injuriosa na esfera religiosa, talvez até mesmo como blasfêmia contra a qual a religião institucionalizada precisa defender-se: não muito raramente, teólogos cristãos referiram-se a textos literários como ‘insolências piedosas’ (Karl Barth em crítica a Rilke), como um ‘panorama do mal’ (W. Grenzmann sobre a literatura do século XX).” (KUSCHEL, 1999, p. 23).

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Em seu novo romance, Caim, José Saramago faz o protagonista viajar por várias passagens do Antigo

Testamento. Interessante é a fórmula usada para que esta viagem aconteça: Caim dorme e acorda,

repentinamente, em outra época ou situação histórica. O que o autor pretende parece já conhecido por seus leitores: questionar Deus em cada uma das decisões por ele tomada. Parece redundante dizer que a obra e seu autor foram fortemente criticados pela Igreja Católica.

Sob esse aspecto, ler um livro que possua elementos religiosos como conteúdo é, além de entretenimento, ter a possibilidade de analisar seu discurso em função e em comparação com a idéia que temos de Deus e suas implicações na humanidade.43 O Deus que

conhecemos quando criança passa a ser, este sim, um Deus fictício, pois é, em muitos casos, o Deus do impossível, que não cabe em nosso dia-a-dia de lutas e conflitos interiores. Diante disso, vários autores assumiram a postura de adotar Deus em sua literatura não como o velhinho bom, de barbas longas e que vive entre as nuvens, mas como reflexão sobre a vida, para que essa tenha sempre um sentido de esperança a ser conquistado pelo homem.44 Kuschel

cita ainda Hermann Hesse como um dos autores que assume essa nova dimensão de Deus ao afirmar: “Deus vive em mim, morre em mim, Deus sofre/ em meu peito, e isso é para mim uma meta suficiente./ Caminho ou descaminho, broto ou fruto,/ tudo é uno, tudo são nomes e só”.

Em outras palavras, formam-se nos escritores formas próprias de ser religioso, das quais as categorias clássicas não conseguem dar conta. Nem as categorias de integração a uma Igreja ou religião, nem as categorias da crítica moderna à religião são adequadas para apreender esse processo de fusão. (KUSCHEL, 1999, p. 215).

Assim como Kuschel, Tillich também tem uma visão mais aberta da teologia, o que faz com que ele seja chamado de o “teólogo da cultura”. Para ele, as formas profanas de manifestação cultural, entre elas a literatura, tornam-se vias de acesso para o sagrado. A partir disso, Tillich cria uma nova forma de ver a teologia que se chama Teologia da Cultura, que questiona a fé estreita e literal de muitos teólogos e escritores cristãos. Tillich passa a ser, com sua nova concepção teológica, um dos principais teólogos que embasam e dão corpo à Teopoética. Para ele:

A manifestação desse solo (o realmente real) e abismo do ser e do sentido cria o que a moderna Teologia chama de “experiência do numinoso” [...] A mesma experiência ocorre em conexão com a impressão que algumas pessoas, eventos históricos ou naturais, objetos, palavras, retratos, tons, sonhos produzem na alma humana, criando um sentimento do Sagrado [...] Nessas experiências, a religião vive a divina profundidade de nossa existência [...]. (TILLICH, 2004, p. 14)

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“Queiramos ou não, o religioso, na sua vertente judaico-cristã, permeia nossa cultura ocidental. Isso faz com que apareçam ciclicamente obras de conteúdo cristão, umas com finalidade apologética ou proselitista, outras de natureza crítica e até iconoclasta. Tampouco poderiam faltar as de teor literário, isto é, aquelas cuja finalidade principal, senão única, é a assinalada por Horácio: instruir e deleitar, ou, invertendo a seqüência, como prefere Northop Frye.” (ALCARAZ, 1998, p. 215).

44

Muñoz Croveto (2007, p. 15) diz, em sua tese de doutorado intitulada “A sinfonia do sagrado em Castro Alves (Deus, Eros e a Mãe em “Os escravos”)”, que: “Para dar forma a suas criações poéticas, Castro Alves mergulha nas profecias de Isaías e Apocalipses, nos lamentos dos Salmos, e nos relatos do Gênesis, do Êxodo e dos Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João.”

O que importaria neste momento seria, então, estabelecer que o diálogo entre literatura e teologia tenha por objetivo trazer à luz o mistério da existência humana:

Qual das duas vislumbrou-o mais a fundo? Quem analisou os abismos da existência humana de maneira mais exata? Quem descreveu seu mistério de forma mais adequada? Quem terá lançado o olhar mais isento por trás das máscaras, papéis e poses da existência dos homens e das mulheres? Quem levou o ser humano a confrontar-se de maneira mais drástica consigo mesmo? Thomas Mann, de forma lapidar, expressou a problemática do “ser humano como enigma”: “Todos vivemos e morremos em meio a um enigma, e a sensibilidade para isso podemos denominar religiosa, caso queiramos. (KUSCHEL, 1999, p. 228).

O pesquisador, ao levantar estas questões, não coloca teologia e literatura como ciências opostas, mas como auxiliares uma da outra. Isso é possível pelo fato de que, como o próprio Kuschel (1999) nos lembra através das palavras de Mann, o homem, desde suas origens, buscou entender o mistério de sua existência.

Deixando um pouco de lado a discussão que se volta para o entendimento do enigma da humanidade, aqui acredito ser interessante retroceder um pouco na história e perceber que, ao estudarmos a Reforma Protestante, é possível ver que esta também criou um paradigma que parecia afirmar estar Cristo contra a cultura, ou seja, qualquer gesto de fidelidade ou lealdade a uma cultura significaria sempre um conflito direto com Cristo. Esse princípio dificultou ainda mais o diálogo entre literatura e teologia e trouxe interpretações equivocadas sobre os objetivos e interesses literários. Hoje, contudo, até os herdeiros dessa teologia protestante vêem como premente a necessidade de um diálogo entre a vivência teológica e as realizações literárias,

[...] pois ambas se alimentam da memória mítica e dos sonhos utópicos que, hoje, tornam a vida minimamente suportável para milhões de homens e mulheres, povos inteiros, colocados na condição de proscritos (excluídos) das realizações socioeconômicas e políticas da modernidade ocidental. (DIAS, 2001, p. 36)

De volta ao presente, é possível intuir que a teologia contemporânea se deu conta da pouca relevância e da insuficiência que seu discurso, em alguns momentos, representa e começou a perceber a grandiosidade e a profundidade das grandes obras literárias: painéis fiéis da natureza humana; e descobriu que há coisas que só a literatura pode afirmar. A literatura torna-se quase que um arquivo da natureza humana, material precioso para as reflexões de cunho teológico.

Ao me deparar com estas posições, penso novamente nas palavras de Kuschel (1999, p. 225) que diz:

Ao ocupar-se dos textos literários e respeitar-lhes a autonomia, percebendo os critérios formais que os conformam, a teologia pode levar a sério um aspecto da literatura que lhe deve ser muito caro: é aguda nos textos literários a consciência de que não se dispõe do objeto de sua reflexão, em favor do qual presta testemunho.

A cumplicidade entre teologia e literatura faz-se cada vez mais evidente para que possamos buscar o entendimento da natureza humana e seus anseios.45 Durante minhas

leituras, no decorrer desta pesquisa, encontrei, em O livro das religiões, a reprodução de uma citação de Umberto Eco (apud GAARDER; HELLERN; NOTAKER, 2004, p. 13) 46 na qual

ele se refere aos estudos da literatura e afirma acreditar que até os ginecologistas podem se apaixonar. É uma afirmação que pode nos embasar para podermos acreditar que não é a crença ou a fé que farão do texto literário maior ou menor em função a outros considerados leigos, mas sim o empenho do escritor/leitor que incorporará este texto ao seu momento e lugar históricos.

Mais uma vez é Kuschel (1999, p. 14) quem vem em nosso auxílio afirmando que:

As obras dos grandes representantes da “literatura cristã” trataram de refletir sobre a problematização da fé e expressar a experiência de fragmentação e insondabilidade da existência piedosa. E isso marca uma distinção profunda entre esses escritores e uma massa de leitores ligados à Igreja, que se limitou muitas vezes a apropriar-se de forma indevida dos autores, com o intuito de apenas confirmar as próprias convicções. A “literatura cristã” é melhor do que a fama que tem.

Muitos pesquisadores ainda destacam que a religião não só pode, mas deve conter aspectos intelectuais. Aquele que se diz crente, em geral, tem idéias definidas sobre como a humanidade e o mundo tiveram início, sobre seus deuses e sobre o sentido da vida. Essas idéias são normalmente expressas através de cerimônias religiosas, pela arte, e o mais importante: através da linguagem. É aí que entram as escrituras sagradas, as declarações de ____________

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“O diálogo, e diria mais, uma certa cumplicidade entre a vivência teológica e as realizações da literatura (nas suas diferentes formas de expressão: o romance, a poesia, o teatro, o cinema) se torna cada vez mais importante e urgente para a teologia (e os que dela dependem como as Igrejas e suas múltiples manifestações pastorais)...”. (DIAS, 2001, p. 36).

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“Ele (Brecht) sentencia: quem se torna religioso deixa de ser levado a sério como artista.” (KUSCHEL, 1999, p. 22).

credo, as doutrinas e os mitos. No momento em que o crente descreve suas crenças, o que ele faz é criar textos que, muitas vezes, são pura expressão literária.47 A Bíblia 48

, por exemplo, é o livro mais lido do mundo e já foi demonstrado por muitos pesquisadores ser uma das narrativas que mais influencia ou influenciou na criação literária, mesmo quando não se fala de livros cristãos.

Apesar da definição “literatura cristã” estar, na maioria dos casos, vinculada à suposta verdade veiculada somente pela Bíblia, ela também tem expressão através de várias manifestações literárias, de biografias e autobiografias de personagens bíblicos, de contos de