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CAPÍTULO 2 – POR ENTRE EXPRESSÕES PROFANAS

2. LIVRES-PENSADORES, ANARQUISTAS E A ALVORADA LITERÁRIA

Nas primeiras décadas do século 20, decididos a impulsionar a propaganda no Brasil, alguns militantes anticlericais e anarquistas passaram a escrever e publicar livros e opúsculos, assim como a importar literatura, especialmente de Portugal, da Espanha e da França. Seguramente, nos círculos libertários, a instrumentalização da literatura assumiu formas variadas que incluíram editoras efêmeras, o esforço dos próprios autores, ou as listagens de livros e jornais, nacionais e estrangeiros, postos à venda pela redação dos periódicos437. Frequentemente, as redações dos jornais operários, em franca atividade nas capitais, colocavam à disposição o serviço de busca e compra de diversas obras nas principais livrarias da cidade, despachando-as para os seus assinantes localizados no interior do país438.

Em 1903, Benjamim Mota divulgava, em A Lanterna, que, aos correligionários interessados em adquirir qualquer obra anticlerical inexistente no Brasil, ele faria vir da Europa ou dos Estados Unidos439. Tal iniciativa vinha em resposta ao apelo do advogado dr. Antonio Pinto de A. Ferraz (um amigo de Mota), que, em nome da propaganda anticlerical, anos antes, havia instigado A Lanterna a organizar “uma lista de obras anticlericais, e que a publicasse, em todos os números, na primeira coluna da primeira página, declarando, à margem, o preço aproximativo de cada uma delas”, bem como “prontificando-se a mandar vir da Europa ou dos Estados Unidos aquelas que não se encontrarem nas livrarias de S. Paulo ou do Rio”. Além disso, sugeria a criação, no jornal, de uma seção permanente intitulada Bibliografia, contendo “um resumo das principais obras anticlericais”, a exemplo da literatura produzida por Léo Taxil, Ernest Renan, Eça de Queirós, Guerra Junqueiro e Max Nordau. Prontamente, a redação d’A Lanterna, dirigindo-se aos seus leitores, encetou: auxiliem-nos “nessa grande tarefa”, enviando subsídios para a Bibliografia, ou seja, nomes de “boas obras que conhecerem, em qualquer idioma, a fim de que possamos organizar um catálogo”440. Ainda em 1901, A Lanterna anunciava a venda dos livros: A Razão contra a Fé, de Benjamim Mota; Electra, de Benito Pérez Galdós; A Velhice do Padre Eterno e A Morte de D. João, de Guerra Junqueiro, conjunto de obras editadas pela tipografia e livraria Endrizzi441. Nessa

437 Cf. CARONE, Edgard. Socialismo e anarquismo no início do século. Petrópolis: Vozes, 1995.

438 No entanto, ao que tudo indica, o número de livrarias no Brasil do início do século 20 era diminuto, ou

melhor, “o mercado editorial brasileiro era pequeno e passivo (o livro não era levado ao leitor). Havia mais tipografias e editoras do que livrarias. Monteiro Lobato levantou apenas 35 livrarias em todo o país em 1919!”, in DEAECTO, Marisa Midori & MOLLIER, Jean-Yves (orgs.). Edição e revolução: leituras comunistas no

Brasil e na França. Cotia: Ateliê; Belo Horizonte: UFMG, 2013, p. 54.

439 A Lanterna, São Paulo, 18-19 de julho de 1903, p. 1. 440

A Lanterna, São Paulo, 6 de abril de 1901, pp 1-2.

senda, em 1903, era fundada a Sociedade Anônima A Lanterna, que afirmava ter, entre os seus fins, a edição e a comercialização de livros, folhetos, cartões-postais e almanaques, especialmente destinados à propaganda anticlerical442.

Benjamim Mota, desde longa data, encetou a propaganda anticlerical e anarquista em São Paulo. Desse modo, em 1898, simultaneamente à publicação da sua revista O Libertário, criou a Biblioteca Libertária, uma iniciativa editorial que estreava com a publicação do seu livro Rebeldias (1898) e que intuía ainda trazer a lume Aos Moços!, de Piotr Kropotkin, e Greve aos Eleitores, de Octave Mirbeau, entre outros títulos, que ele havia trazido no seu retorno de Paris – onde viveu por quase três anos –, e cujas traduções e publicações visavam fomentar a propaganda libertária no Brasil.

A propósito, ao frequentar na França distintos círculos literários e políticos, Benjamim Mota estreitou laços com Anatole France, Edmond Rostand e Paul Verlaine, bem como com os anarquistas – adeptos da propaganda pelo fato – Ravachol e Auguste Vaillant443. Em contato com o grosso caldo da literatura ácrata, logo incorporou à sua bagagem intelectual as obras de Faure, Grave, Hamon, Reclus, Kropotkin, Bakunin, Malato etc. E, em 1893, de volta ao Brasil, Benjamim Mota já afirmava, em alto e bom som: “Eu sou anarquista porque estudando compreendi a desnecessidade de um senhor, isto é, eu sou um homem emancipado do espírito de servilismo”444.

Seguramente, a imprensa operária foi um importante núcleo de difusão de obras sociológicas, filosóficas e de literatura. Assim, em 1904, a revista anarquista Kultur, publicada no Rio de Janeiro, divulgava aos seus leitores que “uma grande quantidade de brochuras de boa propaganda” socialista, anarquista, sindicalista, anticlerical etc., editadas em português, em francês, em espanhol e em italiano445, poderia ser encomendada por intermédio da redação da revista – que tinha como redator-chefe Elísio de Carvalho446. Logo, mediante acordo feito com livreiros no Brasil e editores na Europa, surge a Livraria da Kultur, que, em

442 A Lanterna, São Paulo, 5-6 de setembro de 1903, p. 3. 443

Cf. A Noite, Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1940, p. 11.

444 MOTA, Benjamim. A razão contra a fé – analyse das conferências religiosas do Padre Dr. Julio Maria. 2

ed., São Paulo: Casa Endrizzi, 1901, p. 37.

445 Ambas as passagens, Kultur, Rio de Janeiro, Ano I, nº 4, setembro de 1904, p. 12. Vale destacar que o grupo

de anarquistas articulados em torno da revista Kultur, foi um núcleo prólogo na difusão do anarquismo individualista (Max Stirner, Émile Armand etc.), bem como do tolstoísmo (Leon Tolstói).

446 Elísio de Carvalho (1880-1925), natural de Penedo (Alagoas), foi uma figura paradoxal. Em 1898, mudou-se

para o Rio de Janeiro, ali se engajou no movimento anarquista e passou a colaborar em diversos periódicos libertários. Além disso, por sua iniciativa surgem a Universidade Popular de Ensino Livre e a revista Kultur. Contudo, pouco tempo depois, passou a atuar no Departamento de Polícia do Rio de Janeiro (como diretor do Gabinete de Identificação e Estatística). Para detalhes, cf. SANT’ANA, Moacir Medeiros de. Elysio de

Carvalho, um militante do anarquismo. Maceió: Arquivo Público de Alagoas; Rio de Janeiro: Secretaria de

Cultura/MEC, 1982; PRADO, Antonio Arnoni. “Elísio de Carvalho anarquista”, in Cenário com retratos:

seu catálogo, trazia um número considerável de obras aclamadas nos círculos anticlericais, tais como: A Razão Contra a Fé, de Benjamim Mota; O Bom Senso, do Cura Meslier: a Razão d’um Padre [atribuída a Jean Meslier]; A Velhice do Padre Eterno, de Guerra Junqueiro; Ciência e Religião, de Malvert [trata-se de um pseudônimo]; O que é a Religião; Razão, Fé, Oração; e Ao Clero – Contra a Igreja, conjunto de livros da lavra de Leon Tolstói. Aliás, vale frisar que o grupo de anarquistas (leia-se anarquistas individualistas) ligado à revista Kultur teve um papel exponencial na divulgação das ideias anarco-cristãs e anticlericais de Tolstói no Brasil.

Neste ínterim, nos primeiros anos do século 20, aproveitando os ânimos em torno da fundação da Liga Anticlerical Intransigente (1906), “um grupo de pessoas emancipadas de todos os preconceitos religiosos” decidiu fundar, em São Paulo, o Grupo Editor Livre Pensamento, “dedicado exclusivamente a difusão de obras de caráter científico e racionalista”447 e que tinha, como primeira publicação, um folheto intitulado A Confissão. Dentre os impulsionadores dessa iniciativa, estava Everardo Dias, redator-chefe do jornal O Livre Pensador e membro da referida liga.

Devido ao sucesso entre os correligionários do folheto A Confissão, o grupo anunciava, em 1907, outras publicações cujos títulos eram “marcados pela aura do ineditismo”, a exemplo de uma série de folhetos (impressões baratas em papel comum), que seriam editados mensalmente. No catálogo, apesar de provisório, aparecem:

1. O que é o Celibato, ex-padre Guilherme Dias

2. As 67 Célebres Perguntas, teólogo Domingos Zapata

3. O Espírito da Igreja, A. S. Morin

4. Sonho Dantesco, Pedro de Mello

5. Giordano Bruno, Marco Pancetti

6. Derrocada Ultramontana, Dario Velloso

7. Semelhanças Religiosas, José Sarzedas

8. A Bíblia à Luz da História e da Ciência, Luiz Bonaparte

9. A Evolução do Espírito Humano, Dr. Agustín Alvarez

10. O Batismo, Um Pai de Família

11. O Antropomorfismo, Dr. Juan Serapio Lois

12. Um Prólogo e um Epílogo, Conde Camillo de Renesse448.

Deste rol, o grupo afirmava que já se encontravam publicados e em distribuição os quatro primeiros títulos, correspondentes aos meses de janeiro a abril. Para os editores, esse empreendimento era visto como um importante salto à propaganda, uma vez que, a partir de

447

Ambas as passagens, Avanti!, São Paulo, 7 de maio de 1907, p. 4, [tradução nossa].

traduções – do francês, italiano, inglês, espanhol e alemão –, divulgariam textos que pela primeira vez eram impressos em português449, e que seriam “vendidos a preços excessivamente baixos, facilitando assim a aquisição” destas obras “por todas as pessoas que queiram instruir-se”450.

Além disto, sem abusar da lógica, é de se deduzir que o folheto, devido ao seu formato (12x16), foi um hábil veículo na propagação de textos panfletários, visto que o pequeno volume manuseável facilitava o seu despacho pelo serviço postal. Ainda, devido a sua capacidade de adentrar em diversos espaços, tal literatura, “fácil de escorregar para o bolso” instigava o seu proposital “abandono” no banco da Igreja, no vagão de trem ou na latrina da fábrica.

De qualquer forma, ao definir que, na difusão do livre-pensamento, a “propaganda pelo livro é das mais benéficas e proveitosas”451, o Grupo Editor Livre Pensamento havia estipulado que, de seis em seis meses, mediante auxílio mensal de mil réis (adiantadamente), os associados receberiam um “folheto de benéfica leitura” que em muito contribuiria para “esclarecer o espírito, orientando nas lutas do pensamento”. Desse modo, para o sucesso do projeto, que tinha como slogan “Se queres conhecer a verdade – lê”, mas, “se preferes a ignorância – não o abras”, ou, “se tens medo, arremessa-o para longe e foge”, contava com a dedicação e o entusiasmo de “todos os amantes da Verdade e da Razão” que, através da redação de O Livre Pensador, localizada na Rua Visconde de Parnaíba, nº 121 (bairro do Brás), ou pelo intermédio dos jornais A Terra Livre, La Battaglia, Avanti! ou Verdade e Luz, poderiam efetuar as suas inscrições452. Outrossim, investiu-se na criação de uma rede de colaboradores (denominados delegados) que, espalhados por localidades, tinham como atribuição a entrega de folhetos, o recebimento de cotas e o angariar de novos associados.

No entanto, provavelmente por problemas de ordem econômica, o projeto do Grupo Editor Livre Pensamento – que estava diretamente interligado ao jornal O Livre Pensador – ficou praticamente na primeira leva de títulos, que, com afinco, haviam sido publicados em 1907. No ano de 1910, tendo em vista que o jornal O Livre Pensador não estava em circulação, os folhetos ainda em estoque passaram a ser vendidos pela Biblioteca d’A Lanterna. Consequentemente, em 1911, com o ressurgimento d’O Livre Pensador (2ª fase), a iniciativa de editoração foi retomada, vindo a lume novos textos.

449 Avanti!, São Paulo, 7 de maio de 1907, p. 4, [tradução nossa].

450 Ambas as passagens, O Livre Pensador, São Paulo, 8 de julho de 1906, p. 3. 451

O Livre Pensador, São Paulo, 8 de julho de 1906, p. 3.

Quadro 1 – Folhetos editados, a partir de 1907, pelo Grupo Editor Livre Pensamento

Série Título do opúsculo Autor Fase

Nº 1 O que é o Celibato? Guilherme Dias 1ª

Nº 2 As 67 Célebres Perguntas Domingos Zapata 1ª

Nº 3 O Espírito da Igreja A. S. Morin 1ª

Nº 4 Sonho Dantesco Pedro de Mello 1ª

Nº 5 Giordano Bruno Marco A. Dancetti 1ª

Nº 6 A Educação Religiosa Nathanael Pereira 1ª

Nº 7 A Inquisição Eugéne Pelletan 2ª

Nº 8 O Sagrado Coração de Jesus N. Rouby 2ª

Nº 9 O Batismo Um pai de família 2ª

Nº 10 Cristo no Vaticano Victor Hugo 2ª

Nº 11 Derrocada Ultramontana Dario Vellozo 2ª

Nº 12 A Igreja e o Povo (1ª parte) Heliodoro Salgado 2ª

s/nº Abusos e Erros do Catolicismo Abade João Meslier 2ª

A lista acima dá uma rápida noção acerca da literatura (composta em sua totalidade por ensaios de crítica religiosa), publicada e difundida durante a primeira e a segunda fase de O Livre Pensador, pelo Grupo Editor Livre Pensamento453. Curiosamente, em 1907, o folheto de estreia da série, escrito especialmente para o grupo e que se intitulava O Que é o Celibato?, tinha como autor um ex-sacerdote católico.

Não obstante, segundo destacou o historiador Fernando Catroga, a crítica a respeito do celibato eclesiástico estava “intimamente articulada com a denúncia da confissão”454 e, corroborando com isto, no folheto O Que é o Celibato?, tem-se: “o grande argumento do celibato é [...] se o sacerdote fosse casado não gozaria da confiança dos seus penitentes, que temeriam a violação do sigilo da confissão”, logo, o casamento dos padres “prejudicaria, pois, altamente, a confissão”455. Também, Guilherme Dias, autor do folheto, ao referir-se à “imperiosa necessidade do celibato para o domínio absoluto e tirânico da Igreja”, afirmava: “como é, pela confissão, que o sacerdote domina a mulher, e que é a mulher quem, por sua vez, domina o homem, é necessário, a todo o custo, que o poder da instituição fique incólume e que coisa alguma venha a menoscabá-la”456. De qualquer forma, vale observar que Guilherme Dias foi um ex-padre católico que aderiu ao metodismo e ao matrimônio. Sua tomada de posição contra o celibato, presumivelmente, estava em sintonia com o

453 Os folhetos, de modo geral, saiam apenas trazendo o número da série, sem a data de publicação – excetuando

o folheto Abusos e erros do catolicismo. Para ligá-los a uma das duas fases do jornal O Livre Pensador, usou-se como base que os primeiros folhetos tinham como endereço a caixa postal 691 (1ª fase), e posteriormente, a caixa postal 966, que era usada pelo referido periódico durante a sua 2ª fase (iniciada em 1911).

454 CATROGA, Fernando. “O laicismo e a questão religiosa em Portugal (1865-1911)”, Análise Social, Lisboa,

nº. 100, 1988, p. 220.

455 Ambas as passagens, DIAS, Guilherme. O que é o celibato? São Paulo: Grupo Editor Livre Pensamento,

[1907], p. 13.

protestantismo – uma vez que consta no conjunto da sua doutrina a oposição ao celibato clerical obrigatório.

Todavia, quem foi o padre Guilherme Dias? Este clérigo, natural de Portugal e ligado à maçonaria, em 1868, veio para o Brasil e tornou-se pároco na cidade de Pelotas (Rio Grande do Sul). Após três anos de atividade, “acusado de defender princípios liberais na tribuna sagrada”, foi suspenso pelo bispo da Diocese, Dom Sebastião Dias Laranjeiras457. Nessa senda, em 1872, por ter criticado a infalibilidade do Papa, foi excomungado. Diante dessa atitude ímpia, que era reforçada pela publicação, em 1873, da sua obra Eco de Roma – compilação de alguns dos seus estudos sobre o papado e os jesuítas –, que, rapidamente, se viu esgotar uma tiragem de cinco mil exemplares, ganhou a simpatia dos anticlericais. Ademais, diante das críticas à romanização do clero, que marcam profundamente a sua obra, pode-se concluir que Guilherme Dias advinha do antigo catolicismo iluminista – tendência regalista e liberal –, que, no transcurso do século 19, foi substituído pelo catolicismo ultramontano. Seja como for, em 1901, o ex-sacerdote – na ocasião, residindo em Belo Horizonte (Minas Gerais) e atuando como redator-chefe do jornal A Reforma –, escrevia para a redação de A Lanterna: “Aceitem, pois, incondicionalmente o meu aplauso e os votos que faço para que continuem até que vejamos por completo aniquilado o clericalismo – o inimigo, na frase do grande Gambeta [sic]”458. É certo que as relações de reciprocidade entre o movimento anticlerical paulista e Guilherme Dias se consolidaram, ao ponto de, em 1906, organizar-se, em São Paulo, uma festa com espetáculos de teatro, em benefício ao ex-padre459. Alguns anos antes, em 1904, segundo registrou a imprensa, a convite da Liga Anticlerical Paranaense, Guilherme Dias realizava, em Curitiba, no salão da Associação Curitibana dos Empregados no Comércio, uma “conferência maçônica e antijesuítica”460. Diante da notícia do seu falecimento, em janeiro de 1907, a imprensa anticlerical publicou: “A Morte acaba de

457 Cf. MARQUES, João Francisco. “Uma controvérsia entre o catolicismo e o protestantismo”, in Des

protestantismes en "lusophonie catholique". Vol. 1. Paris: Karthala, 1998, p. 290. A vida de Guilherme Dias foi

marcada por várias idas e vindas entre Portugal e Brasil. Sua primeira estadia no Brasil foi de 1868 a 1873. No seu retorno a Portugal, pouco tempo depois, em 1875, adere ao metodismo. Nesse ínterim, casa-se com uma atriz e funda o jornal A Reforma (1877), como escreve Vozes da História (1885), enquanto continuação de Ecos de

Roma (1873). Em 1892, vem ao Brasil passar nova e longa temporada. Por fim, em 1898, fixa-se definitivamente

no Brasil. Pouco depois da escrita do folheto O que é o Celibato?, o ex-padre, envolto por constantes dificuldades econômicas e já um tanto doente, morreu em fevereiro de 1907.

458 Carta datada de 7 de abril de 1901 e publicada posteriormente em A Lanterna, São Paulo, 21 de janeiro de

1911, p. 4. Na cidade de Machado (Minas Gerais), em 1875, é fundada a Loja Maçônica Guilherme Dias, que na década de 1910, foi uma importante aliada da Liga Operária local.

459

Cf. O Estado de S. Paulo, 26 de agosto de 1906, p. 2.

roubar às fileiras dos livres-pensadores, um dos seus mais ardorosos combativistas, um daqueles que mais pugnou pela emancipação das consciências”461.

Seguramente, a figura de Guilherme Dias não era um caso isolado, uma vez que a linhagem de sacerdotes e teólogos apóstatas agregou outros nomes, a exemplo de Domingos Zapata – teólogo espanhol e professor da Universidade de Salamanca que, em 1631, escreveu suas 67 Célebres Perguntas, em que constava: “Vós já reparastes que esse estupendo livro [a Bíblia] fez de Deus um péssimo geógrafo, um péssimo cronologista, um péssimo físico e não o faz melhor naturalista?”462. Visto que as perguntas de Zapata contestavam a verdade atribuída aos livros sagrados, depois de lidas por uma junta de doutores, foram queimadas na cidade de Valladolid e o seu autor enclausurado. Séculos depois, as 67 Célebres Perguntas ainda atiçavam os ânimos de livres-pensadores e anticlericais, que se valiam delas como propaganda, a exemplo do Grupo Editor Livre Pensamento (São Paulo) que, em 1907, as traduziu e publicou enquanto folheto.

Além dos escritos de Guilherme Dias e Domingos Zapata, o Grupo Editor Livre Pensamento traria a público, em 1914, uma edição de três mil exemplares de um folheto intitulado Abusos e Erros do Catolicismo, que foi elaborado a partir de extratos da obra de um personagem singular na história eclesiástica, chamado Jean Meslier (1664-1729). Mas o que havia de especial nos escritos desse clérigo francês que despertou o interesse dos livres- pensadores?

Em 1729, com a morte de Meslier, numa aldeia de Ardenas, veio à tona a sua Memória – um extenso testamento –, redigida com forte teor antirreligioso e que instigava a revolta contra os opressores religiosos, uma vez que identificava na religião (Igreja) um suporte para a tirania (Estado). Aliás, essa ojeriza foi expressa na máxima “o homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre”, que, tempos depois, faria tanto sucesso entre os anarquistas e anticlericais – inclusive, em 1916, estampando uma das capas do jornal paulista A Lanterna. Haja vista que Meslier nunca foi capaz de externalizar o testemunho de suas convicções, ou de fazer pública sua defesa do ateísmo, tal como deixou escrito em seu testamento463, aconteceu, pois, que com a sua morte, “o escândalo veio à tona. Seus superiores tiveram acesso aos seus escritos virulentos. Acusado de apostasia, não teve direito a uma sepultura digna. Acabou sendo enterrado clandestinamente, por amigos, para a

461 O Combate, Curitiba, 20 de janeiro de 1907, p. 1. Edição especial destinada à memória de Guilherme Dias. 462 ZAPATA, Domingos. As 67 célebres perguntas. São Paulo: Grupo Editor Livre Pensamento, [1907], p. 12. 463

Cf. BALAGUER, Menene Gras. “Introducción”, in MESLIER, Jean. Crítica de la religion y del estado. Barcelona: Ediciones Península, 1978, p. 8, [tradução nossa].

estranheza dos paroquianos”464. Anos depois, por intermédio do filósofo iluminista Voltaire, que teve acesso a uma cópia da Memória de Jean Meslier, circularam, na França, versões reduzidas, primeiro, em 1762, uma antologia sob o título de Extrait des Sentiments de Jean Meslier, depois, em 1765, o opúsculo L’Évangile de la Raison, constituído também a partir de extratos da Memória de Meslier. Uma vez que na França do século 18 obras sediciosas estavam em alta no mercado livreiro clandestino, em 1768, Voltaire – que, apesar da acusação que lhe pesa de falta de fidelidade para com a obra original (visando dissipar o ateísmo ali presente), foi o mais importante divulgador da obra de Jean Meslier –, reedita o opúsculo de 1762, fazendo-o circular agora com o título de Testament de Jean Meslier. Como em sua ofensiva o abade francês declarava que todas as religiões não passavam de invenções humanas, configurando-se a adoração aos deuses em falsidades, futilidades, imposturas etc.465, a sua obra seria reivindicada, ao longo do século 20, por distintos núcleos anticlericais e antirreligiosos. Além disso, frente às suas aspirações sociais e subversivas, alguns estudiosos do anarquismo, a exemplo de Jean Préposiet e James Joll, destinariam a Meslier um lugar entre os precursores libertários.

No Brasil, teve divulgação nos círculos livres-pensadores e anticlericais o opúsculo O Bom Senso, do Cura Meslier: a Razão d’um Padre, editado em Lisboa, em 1901, pela Livraria Central de Gomes de Carvalho466. Apesar da autoria dessa obra ter sido atribuída