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CAPÍTULO 2 – POR ENTRE EXPRESSÕES PROFANAS

5. O EVANGELHO DE RENAN

Há poucas décadas Vernard Eller, autor de Christian Anarchy (1987), e Jacques Ellul, com Anarchie et Christianisme (1989)580, ao recorrerem a diversas passagens dos Evangelhos, defenderam a proximidade do cristianismo primitivo com os princípios que norteiam o anarquismo. Porém, tais suposições não foram novidade.

Desde o século 18, o aceso debate em torno da figura central dos Evangelhos dividiu opiniões e posições entre os estudiosos. Por um lado, os historicistas, representados pelos filósofos Hermann S. Reimarus e David F. Strauss, defenderam a existência histórica de

577 VARGAS, Maria Thereza (coord.). Teatro operário..., p. 26. 578

Kultur, nº 1, Rio de Janeiro, março de 1904, p. 8.

579 Cf. CHALMERS, Vera Maria. “Boca de cena: um estudo sobre o teatro libertário, 1895-1937”, Cadernos

AEL, nº 1 – Operários e anarquistas..., pp. 105-118. Aliás, essa obra traz um amplo inventário do teatro

libertário, registrando as suas diversas apresentações.

580

Recentemente, tal obra ganhou tradução no Brasil, cf. ELLUL, Jacques. Anarquia e cristianismo. São Paulo: Garimpo, 2010.

Jesus; enquanto, por outro lado, os mitólogos, liderados por Count Volney e Charles F. Dupuis, identificaram no cristianismo um mito solar.

Todavia, será por intermédio do filósofo e historiador Ernest Renan (um atento leitor de Strauss) e da sua obra Vida de Jesus, publicada no final de junho de 1863, que a vertente historicista ganhará sua base teórica fundamental, uma vez que o livro “vendia como pão”, tornando-se, rapidamente, um dos principais best-sellers da segunda metade do século 19581. E, por mais que a imprensa católica declarasse guerra a Renan, tachando-o de um escritor sacrílego, maldito e renegado, naquele mesmo ano, a sua obra já havia ganho diversas reedições. Ao final de agosto de 1863, a publicação da sétima edição, somava 40 mil exemplares. No ano seguinte, paralelamente, uma versão popular (condensada) foi posta a venda, a qual, em apenas três meses, vendeu 82 mil exemplares582. Logo, com grande presteza, sua difusão e influência se estenderam para além de Paris, levando outros escritores a corroborarem a sua tese de que Jesus havia sido uma admirável figura de natureza humana. Com grande efeito, Joseph Ernest Renan empenhou alguns anos da sua vida em escrever História das Origens do Cristianismo, em que a Vida de Jesus era a obra inicial, acompanhada de outros títulos: Os Apóstolos (1866), São Paulo (1869), O Anti-Cristo (1873), Os Evangelhos e a Segunda Geração Cristã (1877), A Igreja Cristã (1879), Marco Aurélio e o Fim do Mundo Antigo (1881) e Índex Geral (1883).

Nesta mesma época, apesar do incessante ataque do anarquismo ao catolicismo, assim como às religiões em geral, a obra Vida de Jesus (1863), de Renan, cativou diversos correligionários nos círculos libertários, como o foi com Han Ryner, autor de O Quinto Evangelho, publicado em 1911, em que Jesus ganhou a roupagem de revolucionário, bem como de protoanarquista. Além disso, em 1927, vinha a lume, na Argentina, a publicação de um folheto de título curioso: Cristo & Bonnot, da autoria de Gigi Damiani. Anos antes, Damiani já havia despido Jesus da sua divindade, como aponta uma crônica de sua autoria, publicada, em 1905, no jornal A Notícia (Curitiba)583. Agora naquele opúsculo, o anarquista italiano apresentava um diálogo imaginário entre duas representações de lutas pela liberdade, a de Jesus Cristo, “que promulga[va] o amor e a resistência passiva”, e a do insurgente francês Julles Bonnot, “bandido partidário da ilegalidade e do ataque a burguesia”584. Como observou

581 Cf. STEVENS, Jennifer. The historical Jesus and the literary imagination (1860-1920). Liverpool: Liverpool

University Press, 2010; RICHARD, Nathalie. La vie de Jesus de Renan – La fabrique d’un best-seller. Rennes: Press Universitaires de Rennes, 2015.

582 Cf. WINOCK, Michel. As vozes da liberdade: os escritores engajados do século XIX. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil, 2006, pp. 533, 547 e 549.

583

Cf. A Notícia, Curitiba, 5 de dezembro de 1905, p. 2.

Antonio Arnoni Prado “o Cristo de Damiani é um traço que se dilui no contexto da desumanização que destrói os valores e impõe uma nova lógica de sobrevivência. Bonnot e Cristo não se entendem, nem procuram fazê-lo, porque o mundo em que estão metidos já não pressupõe que se entendam”585.

Em meio a isto, na França, Pierre-Joseph Proudhon, após a leitura de Vida de Jesus de Renan, também se empenhou na elaboração de um estudo sobre Jesus, visto que discordava do fato “de o Cristo de Renan ter sido pintado com os traços do próprio Renan”, ou seja, “como um idealista, um místico, um diletante, em vez de ser descrito como um moralista, um reformador social, o salvador da civilização, o verdadeiro chefe e modelo de toda revolução, em suma, um autêntico JUSTICEIRO”586. Porém, devido a sua morte, em 1865, tal manuscrito intitulado Jèsus et les Origines du Christianisme somente viria a público décadas depois, em 1896. E, se por um lado, em Sistema das Contradições Econômicas ou Filosofia da Miséria (1846), Proudhon afirmasse: “Deus é tirania e miséria” ou “Deus é mal”, por outro lado, elegia Jesus Cristo como um dos grandes mestres da humanidade587.

Efetivamente, diversas vozes passaram a identificar no cristianismo primitivo um princípio ativo do socialismo ou do comunismo, embasando-se, para isso, em passagens do Novo Testamento, a exemplo: “todos os que criam estavam juntos, e tinham todas as coisas em comum. E vendiam as suas propriedades e seus bens e os repartiam por todos, conforme a necessidade que cada um tinha. Repartiam o pão de casa em casa, comiam juntos com alegria e singeleza de coração”588. Apesar de Piotr Kropotkin rejeitar o cristianismo, inclusive na sua forma heterodoxa, a máxima contida nos Evangelhos “a cada um segundo as suas necessidades” acabou ressignificada pelo seu comunismo anarquista, em A Conquista do Pão (1892).

De qualquer modo, a partir dos Evangelhos sinóticos (Marcos, Mateus e Lucas), a ideia de um Jesus de natureza humana, que perambulou por toda a Galileia entre os simples, que teria pregado o socialismo prático e a igualdade, hostilizado o capital e negado os profetas589 e ainda considerado o governo como um abuso, despertou, ao final do século 19, a simpatia de diversos militantes socialistas, anarquistas e anticlericais (inclusive de adeptos declaradamente ateus), como o foi em Portugal, com Tomás da Fonseca, autor de Sermões da

585 PRADO, Antonio Arnoni. Trincheira, palco e letras: crítica, literatura e utopia no Brasil. São Paulo: Cosac

& Naify, 2004, p. 122.

586 Ambas as passagens, WINOCK, Michel. As vozes da liberdade..., p. 553.

587 PROUDHON, Pierre-Joseph. Filosofia da miséria. Tomo I. São Paulo: Escala, 2007, pp. 360 e 373.

588 Atos dos Apóstolos, II, 45-47 apud MELO, Aníbal Vaz de. Cristo, o maior dos anarquistas. 3 ed., São Paulo:

Piratininga, 1956, p. 144.

Montanha (1909), ou no Brasil, com Benjamim Mota, e suas obras Rebeldias (1898) e A Razão Contra a Fé (1900).

E, segundo assinalava Ernest Renan, “para alguns, Jesus é um anarquista, pois ele não tem nenhuma noção de governo civil. O governo lhe parece pura e simplesmente um abuso”, assim “nunca se nota nele a intenção de tomar o lugar dos poderosos e ricos”, uma vez que“ele quer aniquilar a riqueza e o poder, e não se apoderar deles”590.

Na mesma intensidade, ao interpretar os Evangelhos ao sabor das suas crenças políticas, o notório anarquista francês Augustin Hamon pintou a figura de Jesus com as cores de um comunista ou anarquista, já que, para Hamon, a doutrina de Jesus se dirigia aos pobres, tendo recrutado entre artistas, pescadores e prostitutas os seus primeiros partidários591. Assim, rapidamente, a figura de Jesus converteu-se no rebelde das massas oprimidas e na esperança e no consolo de todos os párias e explorados592. De resto, não era apenas um anarquista (no mais alto grau), mas sim, o primeiro anarquista, ou ainda, o maior dos anarquistas. Por sua vez, intelectuais como o filósofo francês Georges Lechartier passaram a identificar, em Jesus Cristo, o verdadeiro fundador da anarquia e no grupo de apóstolos, a primeira sociedade anárquica593. Claramente, quer fosse ao final do século 19, quer nas primeiras décadas do século 20, essa ótica foi compartilhada por distintos círculos libertários.

Para uma parte dos anarquistas, como observou Francisco José Martín,

[...] a crítica “externa” da religião e da Igreja vinha acrescida de uma crítica “interna” da tradição cristã: o cristianismo contemporâneo havia traído em seu transcurso histórico o verdadeiro espírito do cristianismo – o das primeiras comunidades cristãs – abandonando seus originais ideais comunitários em favor de uma mensagem de resignação que ocultava a justificação do estado de desigualdade entre os homens594.

De qualquer forma, a oposição dos anarquistas à Igreja não impediu que algumas das suas concepções acabassem infiltradas por elementos semirreligiosos, inclusive, originando um anarquismo de inspiração cristã. Essa concepção terá, na Rússia, sua figura máxima, no consagrado escritor de Guerra e Paz, Leon Tolstói, que “pregou a religião de Cristo, mas despojada dos seus mistérios e dogmas, o que o levou até a redigir, a partir de

590 Ambas as passagens, RENAN, Ernest. Vida de Jesus: – origens do Cristianismo. São Paulo: Martin Claret,

2000, p. 159.

591 HAMON, A. La revolucion a traves de los siglos. Buenos Aires: TOR, 1943, p. 22, [Tradução nossa] 592

MELO, Aníbal Vaz de. Cristo, o maior dos anarquistas..., p. 46.

593 WOODCOCK, George. Anarquismo: uma história das idéias e movimentos libertários, vol. 1 – A idéia. Porto

Alegre: L&PM, 1983, p. 32.

594 MARTÍN, Francisco José. “El anarquismo literário de José Martinez Ruiz”, Atti del XVIII Convegno

[Associazione Ispanisti Italiani], Siena, 5-7 marzo 1998, vol. 1. Roma: Bulzoni Editore, 1999, p. 334, [tradução

1879, uma crítica da teologia dogmática e a traduzir os Evangelhos, sempre interessado na concordância destes”. Porém, na defesa de uma moral prática, Tolstói “adotou uma interpretação do cristianismo que deixava, deliberadamente, de lado o conhecimento da natureza divina e a esperança na vida eterna”595.

As ideias de Tolstói encontraram assento em diversos círculos libertários, especialmente na Holanda, na Inglaterra e nos Estados Unidos596, ganhando o prestígio entre os anticlericais. Tendo como um dos seus alvos a Igreja e a ortodoxia religiosa, publicou, entre outros textos, Minha Religião, Ao Clero e A Igreja e o Estado, em que declarava: “toda religião não é mais que superstição e engano”, logo, no “cristianismo todo o engano está baseado no conceito caprichoso da Igreja”597. Essa interpretação heterodoxa acerca do cristianismo resultou na sua excomunhão, pronunciada em 22 de fevereiro de 1901, pela Igreja Ortodoxa.

E, entre os seus ataques à religião, Tolstói assinalou:

Que fizeram elas da doutrina primitiva de Cristo? Não só as moldaram ao gosto do mundo como as transformaram de tal modo que o cristianismo dogmático se situa nos antípodas do cristianismo verdadeiro. Em vez de nos vincularmos aos dogmas ininteligíveis e, portanto, inúteis, saibamos, antes, reconhecer que a doutrina de Cristo é a própria razão, e que ela é a única que nos revela o sentido verdadeiro da vida598.

Em meio a isso, o tolstoísmo tornava-se sinônimo de anarquismo cristão. Todavia, por mais que o folheto de Tolstói, A Guerra e o Serviço Militar Obrigatório encontrasse guarida, em 1896, entre os anarquistas, numa iniciativa da Bibliothèque des Temps Nouveaux, ou que o estudioso do anarquismo Paul Eltzbacher destinasse a Tolstói um lugar entre os expoentes do pensamento anárquico, em sua obra Der Anarchismus (1900)599, não havia consenso sobre essa possível vinculação. Desse modo, em 1900, no Congresso Operário Revolucionário Internacional, que se realizou em Paris, dentre os assuntos debatidos, constava o tolstoísmo. Apesar da doutrina de Tolstói possuir aproximações com o anarquismo devido a sua crítica à ortodoxia religiosa (Igreja) e à autoridade política (Estado), concluiu-se, durante

595 Ambas as passagens, PRÉPOSIET, Jean. História do anarquismo. Lisboa: Edições 70, 2005, p. 289.

596 Em menor grau, as ideias de Tolstói exerceram influência sobre alguns expoentes do anarquismo no Brasil,

cf. RAMUS, Gustavo. “Anarquismo cristão e sua influência no Brasil”, Verve, nº 13, São Paulo: Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol); Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais - PUC, 2008, pp. 169-183.

597 Ambas as passagens, TOLSTÓI, Leon. Cuál es mi fe. La Igresia y el Estado. Barcelona: Mentora, 1927, pp.

105-106, [Tradução nossa].

598

ARVON, Henri. História breve do anarquismo. Lisboa: Verbo, 1966, p. 68.

aquele congresso, que ela também se mostrava distante no que condizia aos meios de libertação que preconizava e ao ideal a alcançar600.

Não obstante, tanto no cenário internacional quanto no Brasil, paulatinamente, viu-se ganhar força simbólica a defesa de um cristianismo primitivo, ou melhor, de um Cristo humanizado, revolucionário e libertário, que divergia da imagem do “Cristo de que falam os padres, e a quem por fim divinizaram, para poderem comer e dominar à sombra do seu nome”601. Assim, nas campanhas anticlericais, a figura de Jesus converteu-se em símbolo da exploração clerical, como bem demonstrava o romance O Jubileu (1920), do anarquista mineiro Avelino Fóscolo, ou o poema “Cristo no Vaticano”, do novelista francês Victor Hugo

– que, ao cair no gosto literário dos anticlericais, tornou-se rapidamente item de propaganda, ganhando publicação no Brasil pelo Grupo Editor Livre Pensamento.

Consequentemente, o catolicismo passou a representar, no discurso anticlerical, a degeneração do Cristianismo primitivo, ou, em outras palavras, “de Jesus, pobre e humilde, nasceu, por degenerescência, o jesuitismo do Vaticano, como de Cristo, nasceu o catolicismo intolerante das fogueiras”602. Também, “aos olhos dos libertários”, frequentemente, “a Igreja católica ocupa[va] a posição do anti-Cristo no mundo cristão”603.

Com efeito, por diversas vezes, a propaganda anticlerical se apropriou da imagem de Cristo para tecer suas críticas ao clero. Na obra A Velhice do Padre Eterno, de Guerra Junqueiro, em um dos seus versos, lê-se: “viu-se na tela um Cristo em fúria, um visionário,/ truculento, febril, colérico, incendiário,/ como que um salteador fugido das galés,/ na boca uma blasfêmia e no olhar um archote,/ expulsando da igreja os cristãos a chicote/ e expulsando do altar o papa a pontapés!”604. Intitulado de “A Semana Santa”, este poema iniciava com Cristo passeando com o filósofo Voltaire, que lhe mostra as velhacarias do clero. No decorrer da trajetória, Cristo vai se mostrando desgostoso com sua Igreja, ministros e fiéis, ao ponto de assumir uma postura anticlerical. Desse modo, para fins de propaganda, em mais de uma ocasião, Jesus Cristo assumiu o papel de eminente ativista da causa anticlerical, como ainda demonstra a seguinte alegoria.

600 PRÉPOSIET, Jean. História do anarquismo..., p. 296. Alguns desses textos políticos (de verve libertária) da

lavra de Tolstói, recentemente ganharam publicação no Brasil, cf. TOLSTOI, Leon. Cristianismo e anarquismo. Rio de Janeiro: Achiamé, [s.d.].

601 FONSECA, Tomás da. Sermões da montanha..., p. 55.

602 MELO, Aníbal Vaz de. Cristo, o maior dos anarquistas..., p. 145.

603 WOODCOCK, George. Anarquismo: uma história das idéias e movimentos libertários, vol. 2 – O

movimento. Porto Alegre: L&PM, 1983, p. 145.

Do alto de uma enorme cruz, a bela imagem de um Cristo que lá se achava suspensa [...], moveu-se milagrosamente do seu pesado madeiro, desprendeu do cravo a sua descarnada mão direita, deixou-a cair pesadamente sobre a articulação do braço esquerdo, cerrou o punho e gesticulou religiosamente para o seu explorador [...]605.

No Brasil, aliada à dose de influência que a doutrina tolstoiana exerceu em alguns adeptos anarquistas e anticlericais, estava a marcante simpatia pela obra de Renan, visto que, em 1909, na recém-criada Biblioteca d’A Lanterna, encontrava-se à venda a Vida de Jesus, Os Apóstolos, e São Paulo. Até então, não era de se estranhar que, em 1913, um cronista escrevesse em A Lanterna: “Eu creio que pode bem amar o Cristo de Renan mesmo quem não é cristão”606. E, à guisa de a Vida de Jesus de Ernest Renan, frequentemente referida na imprensa anticlerical, não faltaram vozes que afirmavam que a doutrina anarquista sendo eminentemente altruísta era, portanto, profundamente cristã607. Por outro lado, a obra de Renan ao pintar um Jesus humano e revolucionário, repercutiu drasticamente no meio eclesiástico brasileiro, ao ponto do monsenhor pernambucano Joaquim Pinto de Campos sugerir que tal obra, ao invés de ser lida, fosse queimada. Também segundo as palavras do clérigo Pedro Sinzig, Ernest Renan “manchou sua vida e fama literária pela infame Vida de Jesus e outras obras”, proibida pelo Índex608. É certo que Renan não estava sozinho no seu expurgo, ao referir-se à obra de Augusto de Lacerda, O Rabbi da Galiléia (Romance naturalista sobre a vida de Jesus), publicada em Lisboa, em 1904 e que ganhou circulação no Brasil, Sinzig categoricamente rechaçava: “não toquem nele”609.

De qualquer forma, Benjamim Mota – autor do manifesto Nem Deus, Nem Pátria, publicado em 1899, no jornal El Grito del Pueblo (São Paulo)610 – estava entre os anarquistas

que, no Brasil, compartilhavam da visão de que Jesus Cristo (se realmente existiu) havia sido um veemente tribuno, assim como um dos primeiros anarquistas, visto que reivindicava os direitos do povo, combatia as riquezas e pregava a igualdade e a solidariedade611. Sabe-se

605 A Lanterna, São Paulo, 13 de junho de 1914, p. 2. 606

A Lanterna, São Paulo, 22 de março de 1913, p. 1.

607 Palavras da autoria do poeta e sociólogo Felix Bocayuva, contidas no prefácio elaborado para a segunda

edição da obra A razão contra a fé (1901), de Benjamim Mota.

608 SINZIG, Pedro. Através dos romances: guia para as consciências. Petrópolis: Vozes de Petrópolis, 1915, p.

621.

609 Idem, op. cit., p. 434.

610 Semanário redigido em espanhol, que circulou em São Paulo entre os anos de 1899 e 1900, seu editor-chefe

era Antonio Lago.

611 Cf. MOTA, Benjamim. Rebeldias. São Paulo: Tipografia Brasil de Carlos Gerke & Cia, 1898 e MOTA,

Benjamim. A razão contra a fé – analyse das conferências religiosas do Padre Dr. Júlio Maria. 2 ed., São Paulo: Casa Endrizzi, 1901.

ainda que, ao final do século 19, Mota trabalhava na escrita de uma obra intitulada Jesus Cristo, Perante a História e a Religião, mas, que nunca foi publicada612.

Curiosamente, Benjamim Mota – nascido e criado num lar católico –, ao referir-se a sua guinada intelectual rumo ao livre-pensamento de verve antirreligiosa, relembrou: “educado desde tenra idade nessa religião de embustes”, tanto pela manhã quanto a noite, “ajoelhado no meu leito diante de um Cristo crucificado ou da Madona, eu rezava o Padre- Nosso e a Ave Maria”. Além disso, sentia-se “feliz festejando Santo Antônio, São João e São Pedro”, assim como ao jejuar “respeitosamente na sexta-feira da Paixão”, ou ao comemorar “alegre e piamente o Natal”. Mas, ainda na mocidade, por intermédio da biblioteca do seu pai – dr. Alfredo Silveira Mota –, travou contato com Os Opúsculos, de Alexandre Herculano, Les Jésuites, de Edgard Quinet (em colaboração com Jules Michelet) e Padre Belchior de Pontes, de Júlio Ribeiro, obras que lhe mostraram “toda a hediondez do jesuitismo”. Aliado a isso, durante noites com afinco, passou a ler as obras, entre outros, de Lamarck, Darwin, Haeckel, Huxley. Assim, de “crente fervoroso”, tornou-se um livre-pensador e “guiado tão somente pela razão” chegou à irreligião e ao ateísmo. E “da religião que me ensinaram” – escreveu Mota – “só ficou o que era humanamente grande”, isto é, Cristo, “o filósofo revolucionário da Galiléia”613.

Neste ínterim, em 1905, na emblemática data de 24 de dezembro, o militante Everardo Dias realizou, na recém-fundada Liga Operária de Campinas, uma conferência intitulada: “Jesus Cristo, agitador social”. Ao referir-se à figura de Jesus como uma espécie de arauto de uma nova sociedade, a militante anarquista Maria Antonia Soares escreveu: “O Jesus dos pobres ainda não nasceu”, ele “ainda está em gestação, no ventre da Humanidade, e nascerá quando a vossa consciência estiver formada”. Logo, “não nascerá entre a passividade do barro e a indiferença do boi, como o Jesus de Nazareth”, mas sim “entre a altivez do condor e a bravura do leão. Símbolo de justiça e liberdade não implorará, impor-se-á, será batizado com sangue e chamar-se-á: Emancipação!”614. Na visão desses militantes, a representação de Jesus poderia tanto assumir o papel de subversivo, quanto se tornar uma figura alegórica da Revolução Social.

Pouco a pouco, a ideia de um Jesus como força simbólica sediciosa se tornava corrente no meio anticlerical-libertário brasileiro, como bem ficava explícito nesses versos –

612

Benjamim Mota ao final do século 19 também trabalhava na escrita de uma obra intitulada Santíssima

Obreia, que assim como Jesus Cristo, perante a história e a religião, não chegou a ser publicada.

613 Cópia do manifesto Nem Deus, Nem Pátria se encontra em anexo na segunda edição da obra A razão contra a

fé (1901).

614

DIAS, Everardo. A acção da mulher na Revolução Social. São Paulo: Empresa Editora de Publicações, 1922, pp. 11-12.

intitulados “Jesus Cristo” –, publicado em 1920, no periódico carioca Voz do Povo: “Grande Anarquista!/ Ó pálida figura de rebelado que,/ entre gente insana, ousaste erguer,/ como uma