• Nenhum resultado encontrado

A V ISÃO M ULTIDISCIPLINAR DE P ROFISSIONAIS

Q UADRO 9 P APEL DO ACS C

5.3.1.1 Local de Residência do ACS: uma Polêmica Decisiva

O local de residência do ACS é foco de discussão dos atores envolvidos com o Programa Saúde da Família, uma vez que se debate a profissionalização da categoria. Membros da coordenação do programa no município defenderam que os

ACSs morassem na área em que atuam, com base na proposição de que esta é a grande qualidade do Agente e do programa, sua inserção na comunidade. As narrativas a seguir ilustram essa percepção.

“Eu acho que isso é o que garante que o agente comunitário seja o representante da comunidade dentro da equipe, se nós não tivermos essa garantia, nós vamos ter um profissional a mais dentro da equipe e o diferencial do agente comunitário na equipe do PSF é justamente porque ele conhece a realidade que ele trabalha, ele conhece as necessidades, ele conhece os anseios daquela população e é isso que ele traz pra dentro da sua unidade, pra dentro da sua equipe. Esse é o grande diferencial e nós não podemos perder de vista essa conquista. O meu grande medo é a profissionalização do agente comunitário, que nós venhamos a perder essa conquista do agente comunitário como representante da comunidade na equipe de saúde, porque se nós perdermos com certeza o programa vai perder muito” (Membro da coordenação central).

“Eu acho que o agente comunitário precisa ser garantido essa característica de inserção dele na comunidade senão nós corremos o risco de perder a essência do PSF” (Membro da coordenação central).

Porém, diferentemente dos membros da coordenação, os ACS participantes da segunda fase de coleta de dados estão divididos quanto às suas percepções do que seria melhor para o programa e para a categoria. Este debate é decisivo para o programa por remeter à função do ACS e suas competências. O quadro abaixo (quadro 10) sistematiza os motivos pelos quais a residência do ACS na área em que atua é defendida e atacada pelos agentes.

QUADRO 10–OACS DEVE MORAR NA ÁREA ONDE ATUA?

Não é necessário morar na área para constituir vínculo Implica na perda de privacidade do ACS Gera maior risco para o ACS e sua família

devido a exposição ao crime organizado

Propicia maior aceitação do ACS por parte da população Maior acessibilidade para a população em caso de emergência

É injusto

Menos risco para o ACS devido ao conhecimento prévio sobre a comunidade e a relação de confiança com o crime organizado local

Motivos pelos quais o ACS deve morar na área onde atua

 Mais acessibilidade devido à maior aceitação por parte da população

“Essa visão que a S. falou é certo mesmo. O agente comunitário tem que ser agente comunitário. Uma colega minha teve bebê, a gente foi cobrir ela. Pergunta se eu entrei em alguma casa, cobri 4 meses e nunca entrei. Por quê? Porque não conhecia, porque eu fui pra outra área. Ninguém me conhecia, e foi difícil mesmo” (ACS).

“Eu seria uma que rejeitaria um agente de fora. Se eu fosse usuário, rejeitaria sim. Eu não conheço, eu não sei a procedência. Concurso qualquer um faz. O que é bom não vem na testa” (ACS).

 Mais acessibilidade e menos risco para o ACS devido à relação de confiança com o crime organizado local

“Morando na comunidade você conhece as pessoas, você sabe o estilo de vida de cada um. Morando fora você não tem esse acesso. Cada bairro é diferente do outro. Onde eu moro tem lá a facção do PCC, então ele conhece você, ele vai deixar você andar na rua a hora que você quiser, uma outra pessoa vindo de fora não vai ter essa liberdade” (ACS).

“A confiança deles (membros do crime organizado) é que sabe onde você mora, sabe quem anda com você” (ACS).

“Se você der uma bola fora, ele (membro do crime organizado) sabe onde você mora, ele vai conversar com você. Quando é pessoa que vem de fora já é mais complicado” (ACS).

“Na minha rua, em frente da escola, tem três tráficos de droga. É lugares que passa mesmo pros adolescentes. E eu entro ali, mas ás vezes acontece de eles estarem machucados. A equipe entra, nem sabe que é tráfico de drogas. Mas eles não fazem nada com a gente. Quando eu vou, eu aviso, “vou tá indo com a médica”, numa hora que não tem ninguém lá e vou. Porque se eu escolher, vou na casa de um e não vou naquele complicado. E assim eles respeitam a gente, não faz nada” (ACS).

“Roubaram os computadores da minha unidade, o microondas, televisão e vídeo e um rádio. Aí esse rapaz, é da minha área, eu sou agente comunitário dele, ele é traficante, ninguém mexe lá. Aí eu cheguei, eu tinha que falar que o posto tinha sido roubado, eu tinha que encontrar ele. Passei, quem estava no portão falando no celular? Passei aqui, passei ali de novo, e ele me chamou: “tem jeito de eu levar o D. lá no posto, porque ele amanheceu com o dente doendo”. Eu falei “ai, não vai dar, porque acabaram de roubar o posto”. Ele me deixou falando. No mesmo dia devolveu” (ACS).

 Menos risco para o ACS devido ao conhecimento prévio sobre a comunidade

“Quando você mora na comunidade, um que você sabe quem é mais estouradão, você tem um jeito, uma abordagem de chegar naquela pessoa, diferente. A pessoa que vem de fora não conhece, então vai chegar de qualquer jeito, aquela pessoa não gosta. Então eu acho importante o agente comunitário morar na comunidade” (ACS).

“Tem uma casa na minha rua, a menina persegue todo mundo na rua, bate em todo mundo com madeira, persegue com pá. Eu sou agente comunitária

bem na casa dela e eu nunca entrei na casa dela, eu não me permito entrar de jeito nenhum. Mas se fosse outra pessoa, ia levar pancada. Só que como eu já morava na rua e o pessoal já me avisou, eu só converso com a mãe, a filha é muito difícil. Se eu tiver que fazer uma visita eu vou e pergunto “dá pra mim chegar lá?”, ela fala “hoje ela tá calminha, pode ir”. É muito importante porque senão eu teria levado uma surra sem saber” (ACS).

 Maior facilidade de acesso para a população em caso de emergências

“O legal do agente morar na comunidade é, por exemplo, tem uma paciente com AVC que foi internada e aí teve alta à tarde, depois do expediente e a família foi lá e buscou. Você já tem esse acesso a essa informação, pra médica tá indo no outro dia pra tá avaliando, qual remédio, se mudou a medicação, e você morando longe, até você chegar na UBS pra descer pra fazer a sua VD, cê adianta muito, cê já chega na UBS com a informação pronta ‘aconteceu isso, isso, isso, tem como resolver ainda hoje?’” (ACS) Motivos pelos quais o ACS não deve morar na área onde atua

 Perda de privacidade

“Você acaba perdendo a privacidade, mesmo no seu lar. Teve uma época que eu estava dessa forma, eu não ia no supermercado, eu não ia na feira, sabe porque? Eu estava me privando das pessoas. É a rua teu trabalho, então eu não podia sair sábado e domingo” (ACS).

“Eu acho que por toda a circunstância de trabalho do ACS, bastava que morasse na área de abrangência. Eu moro onde moro desde que nasci. Mas eu trabalhava fora, estudava fora, lá era dormitório, chegava dormia e saía. Pra mim foi difícil, “a menina que nunca tava na rua, agora, tá na minha casa”. É difícil isso, atrapalha muito a nossa vida. Quando você pega férias, você tem que viajar. Se você não viajar, você não pode passear com o cachorro na rua, lavar o quintal, regar uma planta... é muito sufocante. Eu tô com licença essa semana, eu tenho que ficar em casa, dentro de casa. Isso não é bom. A pessoa fala com você coisa do posto no semáforo. Não tem necessidade” (ACS).

“Quando você briga, você está chateada e sai na rua aí alguém fala “oi, tudo bem?”, você não pode mostrar que você esta com raiva, que está brava”

(ACS).

“A minha coordenadora fala que cada volta é um “Flash”. Agora você é famosa, o bairro todo te conhece. Você não pode trair o marido, não pode fazer nada. Onde você passa todo mundo te conhece” (ACS).

“Eles vão na tua casa às seis horas da manhã, vão no fim de semana, vão às oito horas da noite. E isso tua família não entende, teu marido não entende, você também não entende porque, o médico diz que você dá muita brecha, mas você está no mercado e eles param para falar com você. Acham que você é médico, querem que meça a pressão, vão na tua casa atrás de remédio. Então isso é o que mais me incomoda, é o que eu mais detesto nesse serviço: não ter privacidade. O que eles mais colocam nesse emprego é que você tem de morar no lugar, você não pode morar fora dalí. Deu cinco horas da tarde, a pessoa não quer saber se você acabou seu horário de trabalho, ela vai te procurar mesmo. Ela te vê na rua e não te

olha mais como a amiga, vizinha Adriana. Ela diz: - é você mesmo que eu queria ver. Não te fala “como vai?”, fala “Você sabe se no posto tem tal coisa?”, “Você marcou minha consulta?”. Então você acabou como pessoa, como vizinha, você virou uma coisa que eles te olham e precisam” (ACS). “Mas eu acho que você não deveria morar na micro área. Porque eu sou agente da minha vó. As vezes eu chego da balada, 3 horas, meu tio está me esperando porque ele quer falar comigo. Minha tia vai no posto e fala “eu preciso passar o V. no médico”. Eu falo “o que eu posso fazer por você? Vai direto na recepção” (ACS).

 Mais risco para o ACS

“Eu acho que no início, sim. Pra gente poder tá conhecendo e passando pra eles que eu tô ali pra ver a saúde. Na minha área, bem na beiradinha do rio, tá com uns oito meses mais ou menos que eu entrei, tem umas 9 famílias lá. Quando eu cheguei lá eles tavam dividindo o fruto do roubo. Eu não temo por mim, eu temo pelos meus filhos. Minha filha faz faculdade, chega em casa à noite, meia noite e quinze, eu morro de medo. Eles não respeitam nem a mãe deles quando eles querem alguma coisa” (ACS).

“Uma experiência que eu tive. A minha casa que eu moro é número 8, o dela é 7, parede com parede, é barulho a noite inteira. Só que é uma pessoa que eu não podia entrar pra fazer visita porque ela me impedia, ela me atendia no portão. Só que as vizinhas começou a me chamar pra falar que a criança dela tava sendo espancada. Todo mundo vinha falar, da população. Aí eu falei assim, eu não posso tá fazendo a denúncia para o conselho tutelar, eu levei pra reunião de equipe. Levei pra reunião de equipe, a médica, a enfermeira, minha diretora, o conselho tutelar veio mas não resolveu nada, continuou apanhando e o marido... Aí eu falava, vamos fazer tal coisa, eu chamava ele pra vir no portão. Ela deu um beliscão embaixo do braço dele que arrancou, ela deu um murro no olho dele. Aí ela falou assim – Cris, eu quero passar na médica porque deram uma bolada bem no olho dele. Mas eu sabia que era pancadas. Até mordia, judiava mesmo. Aí eu falei vou fazer alguma coisa. Quando eu trouxe pra equipe, eu levei pra diretora, o marido dela me ameaçou. Aí eu parei, porque eu moro parede- parede com eles. Eu tive que parar, acabei não resolvendo nada. O quê acabou acontecendo? (...) Isso é uma parte do meu trabalho que eu fiquei chateada mesmo” (ACS).

“Eu comecei a trabalhar numa comunidade com criança, aí via a criança tristinha e ia conversar, quando via era espancamento, passava fome, isso antes de ser agente de saúde. Aí eu ia lá, conversava com o pai, conversava com a mãe e sempre conseguia assim, alguma coisa, sempre eu tive melhoras, né? E agora no PSF aconteceu um caso, aconteceu até comigo e com a Márcia. Eu tava lá no posto de saúde, aí chegou um pessoal da comunidade “cê já fez esse trabalho, tem uma mulher que ela é doente mental é espancada pelo marido, é estuprada à frente e atrás, e o marido bate nas crianças, e todo dia mija na cama e manda a mulher lavar, doente mental. Ela tá toda machucada a gente trouxe ela aqui”. Aí trouxe pro posto ela passou pela médica psiquiátrica ela tava mal mesmo. Aí levaram ela pro hospital, ela ficou três dias internada, e as crianças a assistente social orientou pra gente levar na casa. Foi eu e a M. e chegando lá a gente conversou com a mãe dela, a gente falou, “oh, sua filha tá

internada, foi espancada pelo marido, você sabia que ele faz isso?”. Aí ela falou “não, ele não faz nada com ela, ele é bonzinho, é um ótimo marido”. “Mas a menina tá espancada, tá machucada”. Aí a família, né? Eu e a M., nós ficamos indignadas. A gente vê certas coisas difícil, arrisca a vida, mas... Aí fomo eu e ela, fizemos oração lá na casa do homem lá, aí depois fomo conversamos com a família, falamos “como é que você pode? Você é mãe, você é mãe dela e como pode uma mãe ver tudo isso e apoiar isso?!”. Porque eu não podia denunciar, tinha que ser ela denunciar. Aí foi tanto que a gente conversou que a gente conseguiu que ela denunciasse. Aí depois que eu fui saber que ele tava estudando na mesma escola que eu, à noite, aí ele mostrou o revólver assim pra mim, falou que ia me pegar, eu falei “eu não tenho medo, não”. (....) Aí continuamos a visita e ele parou de bater nela” (ACS).

 Não é necessário morar na área para ter vínculo

“Aí é que está. Agora, o vínculo se pega no dia a dia. Porque eu trabalho com 210 famílias. Você acha que nas 210 famílias não tinha gente que eu não conhecia? Tem gente que até se assusta quando eu falo que moro na rua do lado” (ACS).

 É injusto você não poder mudar, se não perde o emprego (não é certo)

“No começo é bom, porque você já conhece os arredores, você já conhece a problemática. Mas depois, se acontecer de ser sorteado pra ganhar um apartamento, casa, e ter que abrir mão. Teve isso, um benefício que ela foi contemplada, outra que casou e ficou desesperada. Outra que mora de aluguel, morava com a mãe e teve que alugar uma casa pra continuar na micro área. Devia ser revisto, pra, a princípio você morar dois anos pra você conhecer a micro área, mas depois que você tá trabalhando, que você já conhece, você pode mudar pra área de abrangência. Se sair da área de abrangência, aí, pode até se pensar em alguma coisa” (ACS).

“Hoje em dia não seria mais necessário. A partir do momento que você já conheceu sua família, você poderia ter a liberdade de mudar. Tem muitas pessoas que querem mudar, não muda, porque se você mudar perde seu emprego” (ACS).

“Mas é isso. A pessoa pode deixar seus dados, seu endereço, na unidade, para quem quiser saber, mas precisava morar necessariamente, porque - a minha casa é minha – mas tem colega que mora de aluguel. E ela já mudou três vezes de aluguel, mas ela tem que morar na área. Então fica complicado porque a mãe dela mora ali perto. (...) Então eu acho errado isso: que ela tem que morar ali se ela quiser conservar o emprego. Porque ela já tentou morar na casa da mãe e foram falar para ela: se você não voltar para a sua micro-área, você vai embora” (ACS).

“Eu acho que deve morar distante, porque a equipe técnica mora onde quer”

(ACS).

“Todo o PSF é área de risco, de periferia, favela. De repente você troca daquela família, vai descobrir porque o pai bateu na filha. Se ele ameaça o médico de morte, ele é transfirido. A enfermeira, a enfermeira vai embora. Se ele ameaça o Agente, o Agente tem que pedir a conta” (ACS).