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3. O CULTO E A LITURGIA SEGUNDO LUTERO E CALVINO

3.1. LUTERO E CALVINO: DUAS HISTÓRIAS, DUAS ÉPOCAS

Quando Calvino nasceu, a 10 de julho de 1509, em Noyon, na Picardia, França, Lutero tinha 26 anos. (WALTON, 2000, p. 52). Já havia se graduado como Bacharel em Artes Liberais (1502) e encerrado seus estudos filosóficos. Já fizera sua prova de Mestrado (Magisterprüfung), tornando-se Magister Artium (1505). Já havia estudado Direito; entrado para o mosteiro dos agostinianos; tomado as ordens sacerdotais (1506); estudado teologia (1507). Em 1509, a 9 de março, alguns meses antes do nascimento de Calvino, Lutero recebera mais um grau acadêmico, agora teológico: tornara-se “Baccalaureus ad Biblia” e em 1512 receberia o título de Doutor em Teologia. Finalmente, quando Lutero afixou suas 95 teses na porta da Igreja de Wittenberg,40 Calvino era ainda uma criança de oito anos. Esses dois homens sob certos aspectos representam idéias de duas épocas diferentes.

Lutero, na Alemanha, estudara a filosofia de Aristóteles influenciado por idéias nominalistas, o que nos lembra Cairns (1995, p. 234):

Em 1501, já na Universidade de Erfurt, começou a estudar a filosofia de Aristóteles sob a influência de professores que seguiam as idéias nominalistas de Guilherme de Occam. Occam ensinava que a revelação era o único guia no campo da fé mas que a razão era o guia verdadeiro da filosofia. Estes estudos filosóficos de Lutero em Erfurt convenceram-no da necessidade da intervenção divina para que o homem alcançasse a verdade espiritual e se salvasse.

40 Como introdução às 95 teses afixadas na porta da igreja do castelo de Wittenberg, Lutero escreveu: “Com um

desejo ardente de trazer a verdade à luz, as seguintes teses serão definidas em Wittenberg sob a presidência do Rev. Frei Martinho Lutero, Mestre de Artes, Mestre de Sagrada Teologia e Professor oficial da mesma. Ele, portanto, pede que todos os que não puderem estar presentes e disputar com ele verbalmente, o façam por escrito. Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.” (BETTENSON, 1998).

Calvino, primeiro na França e depois na Suíça, foi influenciado por Erasmo de Roterdam e, como Erasmo, pode ser visto como homem do Renascimento e do Humanismo: “A formação universitária de Lutero foi feita de filosofia e teologia; Calvino, porém, recebeu uma formação humanística” (CAIRNS, 1995, p. 251). A Suíça era um território livre e um grande centro cultural. Suas cidades difundiam cultura e nelas o humanismo se estabeleceu. Basiléia tinha uma universidade de renome; foi lá que Erasmo editou o seu Novo Testamento grego. Ulrich Zuínglio41, por exemplo, líder da reforma na Suíça, foi extremamente influenciado pelo humanismo de Erasmo de Roterdam, com quem manteve correspondência. Segundo Cairns (1995, p. 244) essas foram algumas das razões pelas quais a Reforma na Suíça teve no humanismo uma de suas maiores fontes.

O lado religioso do Humanismo, ao qual Calvino foi exposto durante toda sua vida de estudante, era anterior à própria Reforma luterana e ansiava por mudar a igreja e a sociedade, de acordo tanto com o modelo clássico quanto com o da antigüidade cristã, o que seria conseguido por um retorno ao estudo cuidadoso da Bíblia em suas línguas originais. Essas idéias deixaram uma marca indelével em Calvino.

Quando Erasmo, em 1516 publicou seu Novo Testamento anotado, uma edição do texto grego original com tradução latina, despertou o interesse de muita gente da sua própria igreja, a igreja romana. Sua intenção era introduzir uma concepção mais racional da doutrina cristã, dar uma alternativa à mente humana aos métodos dos teólogos escolásticos. Da mesma forma Calvino, que primariamente pode ser compreendido como um humanista renascentista, almejava recuperar uma compreensão mais bíblica do cristianismo. Ele procurava apelar mais 41 Ulrich Zuínglio nasceu em 1484 na Suíça. Diferente de Lutero, não obteve doutorado em Teologia.

Influenciado pelo humanismo de Erasmo, dedicou-se aos estudos do Novo Testamento, o que lhe deu base para propor uma reforma. Não podemos esquecer que o reformador suíço opôs-se aos anabatistas, apesar de um grupo anabatista ter originado dele, mesmo que ilegitimamente. Em 1518 foi chamado para Zurique, comandando uma reforma que, entretanto, não obteve sucesso em todos cantões suíços. Zurique então impôs sanções políticas e econômicas a esses cantões. O resultado dessas imposições foi uma revolta que culminou em ataque por parte desses cantões a Zurique. Zuínglio participou das lutas como capelão e foi morto em 1531 durante a luta, em Kappel. (DAHLHAUSS, 1978). (Ainda sobre Zuínglio Cf. notas de rodapé 44 e 59).

retoricamente ao coração humano do que tentar convencer demonstrando verdades dogmáticas, como fazia a teologia sistemática. Calvino, assim como Erasmo, lutava contra os teólogos sistemáticos do seu tempo, os Escolásticos, que confiavam demais na razão humana, e cujos ensinos eram sem vida e irrelevantes para as desesperadas necessidades do mundo.

Lutero, embora valorizasse algumas das idéias de Erasmo, acabou por desentender-se violentamente com ele. Quando a Reforma luterana chegou, Erasmo se encontrou em uma difícil posição. Os antigos líderes religiosos o acusaram como responsável pelos novos problemas; os luteranos o acusaram de covardia e inconsistência ao recusar levar suas opiniões às suas legítimas conseqüências. Lutero passou a contender aberta e “oficialmente” com Erasmo no campo das idéias – basta nos lembrarmos dos dois documentos de Erasmo e de Lutero, respectivamente De Libero Arbitrio (1523) e De Servo Arbitrio (1525). Lutero acusa Erasmo de estar mais preocupado com coisas humanas que divinas e passa a tratá-lo de Behemot42 até o fim da vida.

Calvino, como Erasmo, valorizava a cultura da Renascença. Lutero, prioritariamente preocupado em reformar a Igreja, só dava valor à cultura renascentista quando pudesse ser utilizada como instrumento para uma reforma religiosa, o que não quer dizer que desprezasse as obras de arte do seu tempo ou que as quisesse destruir se eventualmente contrariassem seus conceitos, como fizeram alguns dos seus pretensos seguidores durante o exílio no castelo de Wartburg. Esses, supostamente obedecendo ao que ele pregou, lideraram verdadeiras sessões de demolição de altares e objetos de arte das igrejas, uma das razões que o fizeram apressar sua volta à sociedade.

O humanismo de Calvino significa primeiro que ele se enxergava como um teólogo bíblico em acordo com o princípio reformado Sola Scriptura. Ele fora preparado para

42 A palavra

tAmheb.

(Behemot) aparece em Jó 40.15. Embora ali parece referir-se ao hipopótamo, pode

também ser plural de “gado” ou “animal”. Em geral essa forma pode designar “o animal”, “a besta”, por excelência.

seguir as Escrituras, mesmo quando isso fosse além da compreensão humana, confiando que o Espírito Santo o inspiraria, fiel em suas promessas. Como outros humanistas ele estava profundamente preocupado em remediar o mal de seu tempo e para isso também esperava ser guiado pela Escritura.

Calvino dividia com os humanistas da Renascença uma concepção bíblica essencial sobre a personalidade, compreendendo-a não como uma hierarquia de faculdades controladas pela razão, mas como uma misteriosa unidade na qual o que é principal não é o que é mais elevado mas sim o que é central, o coração. Essa concepção, é verdade, dá mais importância aos desejos e aos sentimentos que ao intelecto. Também é verdade, entretanto, que Calvino por vezes pensava na personalidade humana em termos tradicionais, como uma hierarquia de faculdades regradas pela razão, à qual às vezes dá grande importância, especialmente no controle racional sobre as paixões do corpo.

Diferente de Lutero, Calvino era um homem reticente e doentio.43 Raramente falava de si mesmo na primeira pessoa do singular. Sua reputação era de frio, intelectual e de difícil relacionamento, embora os que o conheciam bem tivessem opinião diferente. Em sua igreja em Genebra Calvino, como lembra Cairns (1995, p. 194), pregava insistentemente a obediência e a santidade:

43 É bem verdade que até mesmo nesse aspecto há alguma controvérsia “a nosso favor”, já que a famosa saúde

inabalável de Lutero pode ser questionada. Parece que mesmo nesse ponto os dois reformadores tinham mais em comum do que se supõe, o que pode ser atestado pelos muitos cuidados que a esposa, Catarina, dispensou ao marido durante toda a vida: “Katharina von Bora tinha uma habilidade especial no cuidado de doentes. Seu próprio esposo, não raras vezes, foi seu paciente. Lutero sofria de depressões agudas, que se manifestavam principalmente à noite. Nessas horas, ele pedia ajuda à Katharina.” (DALFERTH, 2000, p. 75). A correspondência entre Catarina e o marido, as muitas cartas trocadas pelo casal (Vide ANEXOS AE e AF, Cartas de Lutero a Catarina), nos revelam um Lutero que sofria de várias doenças crônicas:

“Uma das doenças de Lutero era ‘pedras nos rins’. Certa vez, ele teve uma crise tão forte que foi desenganado pelos médicos. Não conseguia comer nem beber coisa alguma. Katharina implorou que ele tentasse comer algo, pensando em preparar-lhe um prato de alimento leve. Lutero, então, retrucou: ‘Pois bem: prepara-

me arenque frito com um prato de ervilhas frias, com mostarda, pois tu queres que eu coma algo. E faz isso ligeiro, antes que eu perca a fome. Se demorar, então não quero mais’. Katharina preparou a comida exatamente

como Lutero pediu. Ele comeu com muito apetite. Os médicos ficaram indignados. Na manhã seguinte eles retornaram à casa de Lutero, pensando em não mais encontrá-lo com vida. No entanto, encontraram-no sentado em sua escrivaninha trabalhando. A pedra havia saído.” (DALFERTH, 2000, p. 75, 76).

“Outras doenças que, muitas vezes, o enfraqueciam, eram constantes tonturas, febres e dores reumáticas. Sabe-se que, em 1538, ele adoeceu muito. Em 1541, teve um problema de ouvido, que lhe causou fortes dores. Já desde o ano de 1532, ele tinha uma ferida aberta na perna. Os médicos decidiram deixá-la aberta para evitar que a infecção se espalhasse.” (DALFERTH, 2000, p. 76).

Enquanto Lutero enfatiza o consolo da Graça, Calvino insiste nas exigências da Graça. Enquanto o primeiro encontra na bíblia um “livro de conforto”, no qual a alegria e a paz do evangelho foram reveladas, o outro o vê como “a lei sagrada e a Palavra de Deus”, que exige obediência.

É fato que em alguns pontos Calvino parecia ser mais radical que Lutero. Apesar de concordar com Lutero sobre a real presença de Cristo na Eucaristia, por exemplo, ele compreendeu que isso se dava num sentido puramente espiritual. É bom lembrar-se, porém, que a posição de Calvino é mediadora entre os extremos de Zuínglio e Lutero.44

Calvino insistia, ainda, na necessidade de uma vida santa, no mínimo como um sinal da genuína eleição. Mas ele também é reconhecido como aquele que conseguiu sistematizar algumas das idéias mais importantes da Reforma e do próprio Lutero, e que seguiu Lutero em muitos pontos: no pecado original; nas questões quanto às Escrituras; quanto à absoluta dependência do ser humano da graça divina; quanto à justificação pela fé somente.