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4. O CANTO GREGORIANO, O CORAL LUTERANO E O SALMO CALVINISTA

4.2. UMA PALAVRA DE LUTERO SOBRE TRADUÇÃO

“A Reforma ficou inundada de palavras”, diz poeticamente Collinson (2006, p. 46). “Elas transbordavam sem cessar da boca e da pena de Martinho Lutero”. Lutero parecia repleto de algo chamado “a Palavra”, que não é o mesmo que “vocábulos”. Era, sim, o “Logos”. Enquanto o velho mundo desmoronava ao seu redor, Lutero continuava afirmando que não fizera nada, que não era sua culpa: “Enquanto eu dormia ou tomava a cerveja de Wittenberg [...] a Palavra enfraqueceu de tal maneira o papado que jamais um príncipe ou imperador lhe trouxe tantos prejuízos. Eu nada fiz. A Palavra fez tudo”. (Lutero, apud COLLINSON, 2006, p. 49). E ainda segundo Collinson, a expressão “Palavra de Deus”, que para os protestantes se tornou sinônimo da Bíblia, fez da abstração “a Palavra” algo concreto e real, dando aos textos bíblicos uma autoridade nova e absoluta: Sola Scriptura.

Em 8 de setembro de 1530, mesmo ano da Dieta de Augsburg66 e 4 anos antes de completar a Bíblia Alemã, Lutero escreveu a Sendbrief vom Dolmetschen67, uma “carta aberta sobre tradução interpretativa”68. O destinatário era Wenzeslaus Link, velho amigo de Lutero, antigo colega de ordem religiosa e ainda ativo pregador em Nürenberg, que deveria publicá- la. Lutero pretendia, com sua carta, alertar todos os fiéis (der ganze Gemeinde. STÖRIG, 1973, p. 14) de que eram mentirosos aqueles que o acusavam de alterar e falsear o texto das Escrituras, gente a quem chama de “inimigos da verdade” (Feinde der Wahrheit. STÖRIG, 1973, p. 14) e de “gente sem Deus” (Gottlosen. STÖRIG, 1973, p. 14). Talvez a Sendbrief

66 A Dieta de Augsburg foi convocada por Carlos V e iniciada no mês de junho. Lutero não pode participar por já

ter sido excomungado pelo papa em 1520.

67 Para a análise que aqui faremos, remetemo-nos à publicação do documento feita por Störig (1973), de onde

vêm as anotações quanto à numeração de páginas.

68 Até mesmo por respeito às próprias idéias de Lutero sobre tradução, talvez a melhor tradução para o português

de Sendbrief vom Dolmetschen seja, mesmo, “Carta aberta sobre tradução interpretativa”, já que qualquer

Sendschreiben (inclusive Brief) sempre se refere a uma missiva circular, enviada para ser divulgada, lida por

muitos. E Dolmetschen é “interpretar, servir de intérprete”, mais que “Übersetzen” = “Traduzir”. Nesse mesmo sentido, Lutero também utiliza a expressão verdeutschen, algo como “alemanizar” ou “germanizar” o texto (tradução e observação nossa).

seja o documento que melhor revela o conceito de Lutero sobre tradução, neste caso especialmente a tradução das Escrituras Sagradas: esforçar-se por encontrar o texto mais inteligível possível para os leitores. Para isso Lutero recusa a tradução literal, “palavra por palavra”, e orienta-se pela linguagem popular, pela maneira usual das pessoas falarem: traduz para uma língua wie die Menschen reden, ou “como o povo fala” (Lutero. In: STÖRIG, 1973, p. 21s). De fato, sua preocupação não foi apenas a de verter o texto sagrado para o alemão, mas de fazê-lo para um alemão compreensível e falado pelas pessoas comuns; não um texto para eruditos, mas um texto “para o homem que devia ser salvo” (Lutero. In: STÖRIG, 1973, p. 24). Se assim não fosse, como tornar as Escrituras a norma para todas as decisões da fé e da vida cotidiana?69 Como fazer dela sua prática diária sem conhecê-la?

Para Lutero, as Escrituras são a Palavra de Deus “revestida” de palavras humanas. Assim como o Verbo se fez carne em Cristo, a Palavra de Deus “enletrou-se”70 nas Escrituras.

Ele não se interessava por um conhecimento da Bíblia puramente erudito: isso seria letra morta, letra que mata (Lutero. In: STÖRIG, 1973, p. 31). Esse caráter vivente da Palavra é percebido pela maneira como Lutero tornava contemporâneo o texto bíblico. Ouvida ou lida, o que contava era a Palavra. “A Reforma prescreve uma nova primazia dos ouvidos sobre os olhos”. (COLLINSON, 2006, p. 50).

Lutero chama atenção para o fato de que traduzir bem não é fácil: “Assim, quem quiser traduzir (interpretar), deve ter um grande estoque de palavras, para que possa ter a palavra correta à mão, quando uma outra não quiser soar em nenhum lugar.” (Lutero. In:

69 Para Lutero, o princípio sola scriptura destinava-se a salvaguardar a autoridade das Escrituras de qualquer

dependência servil à igreja. As Escrituras são a norma normans (norma determinadora), não a norma normata (norma determinada) para a vida. Elas (as Escrituras) são superiores à igreja. A igreja depende da Escritura e não a Escritura da igreja.

70 Die heilige Schrifft ist Gottes wort, geschrieben und (das ich so rede) gebuchstabet und in buchstaben gebildet. Gleich wie Christus ist das ewige Gottes wort, in die menscheit verhullet, und gleich wie Christus in der Welt gehalten und gehandelt ist, so gehets dem schrifftlichen Gottes wort auch. “A sagrada Escritura é a

palavra de Deus, escrita e (como costumo dizer) “enletrada” e em letras representada. [...]. (Tradução e grifo nosso). (LUTHER, 1833, p. 31).

STÖRIG, 1973, p. 24).71 Ele se lembra o quanto foi cuidadoso e demorado seu trabalho ao traduzir o Velho Testamento:

Várias vezes procuramos por 14 dias, ou três, ou quatro semanas, uma única palavra sem encontrarmos. Em Jó trabalhamos assim também, Mestre Philips72, Aurogallus73 e eu, concluindo em quatro dias não mais que meras três linhas! [...]

E continua esclarecendo que, ao traduzir, quer ser absolutamente claro, e para isso é preciso dizer as coisas exatamente como as pessoas dizem, mesmo que uma palavra, ausente no texto original, seja acrescentada na tradução para melhor preservar o sentido do texto e a vontade do autor (STÖRIG, 1973, p. 20):

Aqui, em Romanos 3, sei muito bem que no texto latino e no grego a palavra “solum” não aparece, e disso os papistas não precisavam querer me ensinar. A verdade é esta: essas quatro letras, s-o-l-a, não estão lá, letras que os cabeça de asno enxergam como as vacas a uma porteira nova, mas não vêem que transmitem o verdadeiro sentido do texto e para “alemanizá-lo” clara e completamente, elas precisam ser incluídas. Eu quero falar alemão e não latim ou grego...” (tradução e grifo nosso).

Não deve nos surpreender, portanto, que o alemão escrito de Lutero, especialmente a tradução da Bíblia, tenha se tornado padrão para a língua alemã moderna. Mas Gerhard Ebeling nos lembra que é sempre a teologia a mola que impulsiona Lutero (EBELING, 1986, p. 21):

Confrontar-se com Lutero como acontecimento lingüístico não significa uma esquiva da problemática teológica em direção àquele aspecto cultural geral sob o qual, com razão, se costuma enaltecer a sua obra, independente de um juízo confessional. “Ninguém que sabe o que é uma língua”, escreve Klopstock, “comparece sem reverência diante de Lutero. Em nenhum povo um homem só formou tanto a sua língua”.

71Denn wer dolmetschen will, muss grossen Vorrat Von Worten haben, damit er die recht zur Hand habem kann, wenn eins nirgendwo klingen will.

72 Refere-se a Melanchton.

73 Mattäus Aurogallus (forma latina do nome alemão Goldhahn), professor de hebraico na Universidade de

De forma análoga, apesar do grande amor de Lutero pela música, era a teologia seu maior interesse e a própria fonte de suas convicções sobre propósito e uso da música no culto. Seu cuidado com a tradução dos textos para as canções é similar ao da tradução do texto bíblico. Ele traduz para o fiel cantar, não para o clero; para gente simples e não para os letrados; e tem total consciência de que uma boa tradução do texto musical deve “soar bem” e fazer total sentido na língua traduzida ou o resultado será, como referido acima e aqui repetido: “mera imitação, como fazem os macacos” (Lutero, apud BERNSDORF- ENGELBRECHT, 1980, p. 108, tradução nossa).