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Mídia e o Conflito no Burundi (1993-2002)

Papel da Mídia em Processos de Instigação de Conflitos e Construção da Paz no Burundi: Lições e Desafios Para

3. Mídia e o Conflito no Burundi (1993-2002)

O conflito étnico político burundês resultou de desigualdades políticas e económicas entre os principais grupos étnicos, Hutu, a maioria e Tutsi, a

minoria. No período da

independência, a minoria Tutsi continuou a dominar todas facetas do poder, criando ressentimento no seio dos Hutus. Em 1990, o Presidente Pierre Buyoya e o partido no poder (Partido da União para o Progresso Nacional)

empreenderam reformas

constitucionais que conduziram a eleições multipartidárias em Junho de 1993. Melchior Ndadaye e seu partido predominantemente Hutu venceram as eleições presidenciais e a Frente Para Democracia em Burundi, partido de maioria Tutsi, venceu as eleições parlamentares. Após assumir o poder, Ndadaye buscou reformar o sector militar e económico com vista a corrigir as desiguldades que permeavam estes sectores, mas o exército efectuou um Golpe de Estado, em Outubro de 1993 que culminou com seu assassinato. Este evento marcou o ressurgir de uma violência étnica brutal que resultou em 50,000 mortos e mais de 150, 000 deslocados (Khadiagala, 2008: 51).

Collier e Sambanis (1989: 36), advogam que a elite Hutus em Burundi sentia que a maioria numérica do seu grupo poderia garantir-lhes o controlo efectivo das instituições do Estado. Mas, pelo contrário, a elite Tutsis procurou evitar de todas as formas que isto acontecesse. Para alcançar os seus objectivos, a elite Tutsi assegurou boa parte das instituições do Estado,

sobretudo as instituições de segurança. Esta visão polarizada sobre como governar o Burundi criou uma

atmosfera de suspeição e

desconfiança entre os lideres políticos de ambos grupos, fazendo com que a tensão fizesse parte da interação quotidiana entre os diferentes grupos.

De acordo com o Relatório da Comissão de Inquérito da ONU no Burundi (1995), desde 1993 a confrontação entre Tutsis e Hutus aumentou em intensidade. Membros de cada de cada grupo étnico sentia que eles estão colectivamente engajados numa luta mortal contra a exterminação e subjeição.

Neste conflito, os meios de comunicação social, a rádio e o jornal, em especial, desempenharam um papel crucial tanto para a instigação como para a escalada do conflito. Replicando um exemplo muito comum durante o genocídio em Ruanda, onde a Rádio e Televisão Libre de Milles Collins (RTLM), disseminou mensagens inflamatórias incitando as massas à

violência, algumas estações

radiofónicas dirigidas por cidadãos Hutus incitavam os ouvintes, promovendo campanhas violentas contra Tutsis, como uma forma de vingança pela morte do Presidente Ndadaye, de origem Hutu. Os programas da Rádio Rutomoramgingo e Candid ilustram, de forma clarividente, como os apelos da mídia contribuíram para o aumento da quantidade e da intensidade da violência.

De acordo com Hagos (2011 : 7), a campanha de ódio registou um spill

over na mídia ruandesa, se fez sentir

também através dos media em Burundi. Baseada na República

Democrática do Congo, a rádio Rutomoramgingo trasmitiu mensagens anti-tustis em 1994, outra estação de mídia que envenenou a região dos Grandes Lagos foi a rádio Candid que disseminou mensagens virulentas contra Tutsis no mesmo período.

Numa sociedade onde a maior parte da população é analfabeta e onde as estações de TV não são de acesso da maioria da população , a rádio afigura-se como uma fonte primordial de informação e a censura dificilmente ocorre devido a ausência de narrativas diferentes. No caso de Burundi, a propaganda de ódio disseminada pelas rádios teve muitos adeptos entre os cidadãos Hutus que se sentiam excluídos e marginalizados do cenário político devido as desigualdades criadas durante o mandato do presidente Buyoya, de origem Tutsi.

Conforme se evidencia, o papel da radio Rutomorangingo e Candid no conflito consistiu em despertar no seio dos dois grupos étnicos percepções e sentimentos assaz determinantes tanto para e eclosão do conflito como para a dinâmica que o mesmo tomou. As informações e mensagens difundidas por estas rádios não foram a causa do conflito, mas contribuíram para despertar e fomentar rivalidades latentes entre os dois grupos étnicos.

Para além da rádio, os jornais não apenas reflectiam a divisão que permeiava a sociedade como também ajudaram a promovê-la. Segundo Hagos (2011:7), a imprensa local foi acusada de contribuir para a campanha de ódio, agravando as tensões étnicas num período crucial da história do país. O Crossroads, do lado dos Tutsis, e o Witness, do lado dos

Hutus, ambos escritos na língua vernácula local (Kirundi), jogaram um papel destrutivo na sociedade.

Neste contexto, a mídia não apenas transmitia mensagens que reflectiam um conteúdo violento como também promoviam a própria violência, ao mobilizar indivíduos a desencadear acções violentas entre eles. Se, por um lado, algumas abordagens do campo da psicologia (comportamento por aprendizagem)4

advogam que a exposição da violência através da mídia pode incentivar a prática da violência pelo indivíduo, por outro, é lógico que a promoção de violência pela mídia em contextos multiétnicos, onde a diversidade dá azo a conflitos, contribui para que a violência esteja presente na interação entre os diferentes grupos étnicos.

Para Vershney (2003:85), os conflitos étnicos muitas vezes resultam de uma estratégia de acção racional- instrumental empreendida pelas lideranças com vista a obtenção de fins políticos ou económicos. Assim, a acção da mídia durante o conflito espelha, em parte, esta estratégia racional-instrumental das elites politicas visando a conquista ou manutenção do poder político. Com a instrumentalização da mídia para a instigação do conflito, a imparcialidade e o equilíbrio da mídia desaparecem e, por conseguinte, abre -se um espaço para sensacionalismo e propaganda negra. Observa-se aqui que a instigação do conflito através da mídia surge como uma estratégia empreendida pelas lideranças politicas dos diferentes grupos étnicos com vista a obtenção de um fim politico.

De acordo com Jowett e O’Donell

(2006: 13) , quando o conflito existe e a segurança é exigida, é comum aos propagandistas tentar controlar a informação e respostas para uma área específica. Receptores das mensagens de propaganda são desencorajados de questionar acerca de qualquer outra informação fora da área controlada. Conforme se depreende, em contextos de conflito, onde a informação é escassa, os profissionais da mídia buscam controlar, ao máximo possível, o acesso a informações de fontes que refutam a posição que “deve” ser difundida, de modo a construir consenso acerca de uma determinada realidade.

No caso do Burundi, a informação transmitida, tanto pela RTLM como pela Rádio Candid, visava diabolizar os Tutsis e gerar respostas específícas a nível das crenças, atitudes e comportamentos dos Hutus para com os Tutsis. A nível das crenças a influência ocorria através do uso de lendas que diabolizavam o grupo étnico rival, construindo, assim, um consenso entre as crenças dos hutus e os interesses de uma elite política que almejava o poder. A nível das atitudes expandia-se uma aversão contra os Tutsis. A nível comportamental as respostas consistiam em campanhas de violência contra os Tutsis.

Um olhar mais atento às dinâmicas deste conflito, traduz a ideia de que, muito embora, a existência das diferenças (culturais, politicas, etnicas) sejam uma pré-condição para o conflito, elas por si só não constituem condição suficiente para a eclosão do

conflito, salvo quando

instrumentalizadas e politizadas pelas lideranças políticas. Associado a isto, a mídia desempenhou um papel crucial

como instigadora do conflito ao servir de eco aos interesses políticos dos líderes.

Não raras vezes a mídia burundesa tentou legitimar a prática da violência, aumentando a polarização étnica e ilegitimar qualquer possibilidade de diálogo e reconciliação entre as partes. Quanto mais se intensificava a propaganda de ódio pela rádio e pela imprensa escrita, mais difícil se tornava qualquer tentativa de pacificação no Burundi, sendo que, para Ameir (2008: 12), as negociações entre as partes começaram em 1998, apôs esforços de ONG’s e da Sociedade Civil visando o estabelecimento do “Jornalismo para a Paz” no Burundi. Portando, deste modo, com base nas evidências apresentadas, sustenta-se que os processos instigação de conflitos pela mídia dificultam qualquer possibilidade de resolução pacifica do conflito.

4.1. Experiência do Studio Ijambo: Arauto da Coexistência Pacífica no Burundi

A percepção de que a presença de uma imprensa extremamente vio- lenta no Burundi poderia constituir um óbice ao diálogo e reconciliação entre as partes envolvidas no conflito e, por isso, intensificaria a onda de violência, por um lado, e o desejo de se evitar que se replicasse no Burundi o mesmo cenário de matanças que se verificou no genocídio de Ruanda, por outro, compeliu a Sociedade Civil e Organi- zações Não Governamentais a desen- volverem canais de comunicação e reconciliação entre as partes. Era imperioso criar alternativas para conter a propaganda de ódio que permeava os mídia locais e, em resposta a este imperativo, surge o Studio Ijambo.

Segundo Hagos (2011: 8), o Studio Ijambo resultou das iniciativas da

Search For Common Ground5, uma

organização voluntária não-

governamental, com vista a criar mecanismos para reconciliação e dimi- nuir os níveis de desconfiança e violên- cia no Burundi, constituindo-se, assim, na primeira produção de rádio sedia- da no Burundi que buscou disseminar mensagens de reconciliação e promo- ver a coexistência pacífica. Bratic e Schirch (2007: 10), por sua vez, obser- vam que o Studio Ijambo, contrastan- do o teor violento reproduzido pelos mídia locais, tentou usar o poder da rádio para propósitos construtivos.

Conforme se evidencia, esta rádio nasce do desiderato de criar, no seio da sociedade burundesa, infestada pelo ódio generalizado entre Hutus e Tutsis, uma atmosfera conducente não apenas ao fim da violência como tam- bém à coexistência pacífica. Para Berns (2007: 3), o termo coexistência descreve sociedades nas quais a diver- sidade é assumida pelo seu potencial positivo, onde a igualdade é activa- mente prosseguida, a interdependên- cia entre os diferentes grupos é reco- nhecida e a possibilidade de se recor- rer a armas para resolução de conflitos é marcadamente remota.

Assente no pressuposto segundo o qual os conflitos étnicos ocorrem em virtude da instrumentalização das dife- renças étnicas para o alcance de fins políticos e no facto de que os media locais prestavam subserviência a inte- resses de certos grupos, mobilizando, deste modo, as massas à violência, observa-se que, com a criação do Stu- dio Ijambo ocorre o reverso da moeda, ou seja, a acção desta rádio contribuiu para suplantar a racionalidade instru-

mental subjacente na propaganda de ódio amiúde disseminada. Se por um lado, as mensagens incendiárias pro- pagadas pela rádio Rutomoramgingo e rádio Candid contribuíram para a escalada do conflito desde 1993 a 1995, por outro, as iniciativas inovado- ras do Studio Ijambo contribuíram para a de-escalada do mesmo, ou seja, des- de que surgiu em 1995, os programas voltados para a paz e reconciliação ajudaram a aproximar os diferentes grupos étnicos. Conforme assevera Hagos (2011: 10), o programa Our

Neighbors, Ourselves, que visava res-

taurar esperança e reconciliação entre famílias vizinhas de origem Hutu e Tutsi, constituiu uma atmosfera de matérias envolventes viradas para as famílias, tentando criar um modelo de coexis- tência em tempos difíceis.

Outra evidência que ilustra, de for- ma clarividente, o quanto o papel do Studio Ijambo foi determinante para a resolução do conflito e promoção da coexistência pacífica, é o facto de, nos anos imediatamente subsequentes à sua implantação, registar-se a primeira tentativa de negociação entre as par- tes em 1998. O Studio Ijambo ajudou, assim, a abrir novos canais de comuni- cação para aqueles que não tinham acesso a imprensa oficial e, como resultado, criou um fórum confiável para aquilo que foi conhecido como diálogo indirecto entre as partes.

3.2. Desconstruindo a Violência com Palavras no Burundi

Do mesmo modo que a onda de violência étno-política que permeou a sociedade burundesa foi resultado da manipulação de símbolos e palavras, a desconstrução da mesma implicaria o

uso destes recursos para a construção da paz. O apelo das elites étnicas e políticas à violência através da instru- mentalização das diferenças étnicas, só podia ser abafado através de um empreendimento que fosse, ao mesmo tempo, simbólico e dialogante de modo a inculcar no mais profundo da consciência dos grupos étnicos rivais a necessidade da reconciliação e da coexistência pacífica. Este empreendi- mento só seria possível por meio de uma entidade social que se mantivesse equidistante da polarização étnica que vegetava na sociedade burunde- sa. Esta tarefa foi assumida pelo Studio Ijambo desde a sua fundação em 1995.

Constituída por locutores tanto de origem Hutu como de origem Tutsi, esta rádio apresentava talk shows em que indivíduos das duas etnias dialogavam num tom de harmonia acerca dos pro- blemas que afligiam a sociedade, den- tre os quais o próprio conflito e a ques- tão dos refugiados decorrentes do mesmo.

O programa Our Heroes (nossos heróis) foi um dos talk shows que muito contribuiu para que se desenvolvesse uma cultura de paz, tolerância e coe- xistência entre Hutus e Tutsis. A missão central do talk show consistia em des- pertar no seio da sociedade a impor- tância da convivência pacífica. De acordo com Hagos (2011: 12), este pro- grama reportava casos daqueles que salvaram a vida de membros de outro grupo étnico, colocando em risco a sua própria vida durante a onda de matanças. Devido ao seu teor educati- vo e ao facto de que o programa era transmitido em Kirundi, a línga nacio- nal, o programa atraiu a atenção tan- to de Hutus assim como de Tutsis.

O impacto que o programa teve foi enorme. Dada a repercussão e o peso educativo das mensagens, o Our

Heroes, assim como outros programas

com teor pacificador não apenas aju- daram a desmobilizar a violência entre Hutus e Tutsis quanto também prepara- ram os caminhos para a assinatura dos Acordos de Arusha a 28 de Agosto de 2000 entre os partidos políticos, repre- sentando os diferentes grupos étnicos.