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O Brasil é um país originário dos povos indígenas, com a invasão dos portugueses colonizadores e a vinda dos negros escravizados do continente africano. A maioria das pessoas que vieram para o Brasil até meados do século XVIII eram pessoas negras. Atualmente ainda é registrado que a população negra é maioria no nosso país. Então esses atravessamentos acabam influenciando fortemente a nossa cultura. Porém, foi se criando uma visão narcísica da cultura européia, Oswald de Andrade lança o Manifesto Antropófago em 1928 dentro da Revista de Antropofagia, inspirado pelo quadro Abaporu, presente de aniversário da pintora da obra Tarsila do Amaral, que tinha como objetivo agregar a cultura estrangeira com a brasileira, podendo parecer inicialmente como uma desvalorização da nossa cultura, mas a ideia dele era de fortalecê-la. Isso é melhor explicado na etimologia da palavra Antropofagia23, de origem europeia, que

significa literalmente “comer o homem”. Vem do grego “anthropo”, que significa “homem” e “phagia”, que significa “comer”, e se confunde muito com o canibalismo, que é diferente, pois o antropófago tem uma relação com as práticas religiosas dos índios, não apenas aqui no território brasileiro, mas em toda a América indígena, onde os índios comiam a carne dos inimigos acreditando adquirir as qualidades deles, já o canibalismo é a prática do consumo de alimentos pelo fato de sentir fome.

23 ANTROPOFAGIA . In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo74/antropofagia>. Acesso em: 10 de Nov. 2019.

Imagem 12: Abaporu - Tarsila do Amaral (em tupi-guarani

significa "antropófago"). Reprodução fotográfica: Romulo Fialdini

O Manifesto então foi uma jogada de marketing de Oswald de Andrade, que reelaborou o conceito e transformou essa devoração de carne humana em devoração de cultura, já que o europeu colonizador considerava-se superior aos índios, que eram tachados de selvagens, inferiorizando também a cultura, inferiorização essa que até os dias atuais ecoa aos arredores, e muitas vezes por parte da própria população brasileira. Com o Manifesto Antropófago, a ideia foi criar uma visão positiva de toda essa história, onde nossa propensão ao canibalismo veio para assimilar todas essas críticas, servindo assim para mostrar a grande importância da nossa cultura. Essa deglutição de culturas também está presente em outras manifestações artísticas como no cinema com Glauber Rocha, na música com Caetano Veloso, Gilberto Gil entre outros, e no teatro com o José Celso.

Na Mímica, o ator não pode ser minimizado, muito pelo contrário, ele se torna o comunicador em potência. O corpo de um bailarino, se comparado ao corpo de um ator - sem generalizar - tem um trabalho técnico bastante aguçado, e essa ausência de técnicas muito se deve à herança que o teatro tem de apenas decorar textos e fazer expressões faciais. Então, com maneiras inusitadas de representações, a Mímica vem como uma das possibilidades que pode quebrar a

pureza que os gêneros tinham para valorizar apenas o texto, diluindo a hierarquia que se construía no teatro declamatório e impulsionando o ator a participar ativamente nas criações cênicas. Sobre esse ator que cria, Bya Braga (2013, p. 40- 41) usa o termo artesania para disseminar a importância dessa posição que o ator pode tomar, dizendo que:

A artesania, antes de tudo, possui algumas características como o prazer no próprio trabalho, ainda que, inicialmente, aliado à esperança de produto. Existe aqui o foco para a constante busca da qualidade por meio do aperfeiçoamento do ato de fabricar, bem como a colocação em segundo plano de motivos e resultados como “dinheiro, reputação ou salvação”. [...] A artesania fala aos ouvidos da criatividade no trabalho, de fazer dele lugar central no desenvolvimento humano como um todo, percebendo a condição humana não como vida restrita em mundos de segunda mão. A prática artesã traz o indivíduo que a realiza para uma qualidade de atenção diferencial no ofício em si, fazendo com que a atividade seja também experiência existencial e estética.

Acontece que a técnica no trabalho de ator muitas vezes pode parecer um “bicho de sete cabeças”, onde o medo dela transparecer no momento de sua execução, ou até mesmo a escolha de fazer um trabalho mais rápido acaba deixando de lado aquilo que pode ser a chave para um trabalho com uma qualidade diferenciada, feita literalmente “à mão”. Para Matteo Bonfitto (2013), devemos ver o trabalho do ator como um Arte-fato, para resultar em um profissional mais consciente diante de todas as complexidades existentes no seu trabalho, pois negando isso, para ele acaba sustentando o paradigma de que teatro é uma arte fácil de se fazer, e quando ele diz fácil, é em relação a insignificância que muitas vezes é vista essa arte.

Etienne Decroux então nos oferece a Mímica Corporal Dramática, já mencionada nos capítulos anteriores, que possui um vasto campo de exercícios ginásticos e de expressão, pois para ele o ator deve ter o corpo de um ginasta com o pensamento de um poeta. Ele costumava fazer uma analogia do corpo com o teclado de um piano, tendo ainda essa visão de que o corpo é um instrumento, mas é importante observar o trabalho de Decroux do ponto de vista do rigor que se busca nas criações cênicas.

Na ausência de uma técnica brasileira, a Mímica Corporal chega como uma ferramenta, pois como diz Victor de Seixas, baseado nos ensinamentos de Decroux, no documentário Teatro e Circunstâncias: Entre Técnicas e Estilo24, essa técnica

não é um fim em sí, mais um meio para que o ator possa treinar e criar seu próprio trabalho. E essa visão é notória ao ponto de que Decroux não costumava apresentar seus quadros cênicos para o grande público, restringindo-se na sua casa, que por vários anos serviu de sede para sua escola, onde alguns estudantes aprendiam suas técnicas.

Essa ideia da Mímica Corporal Dramática como um meio para aperfeiçoar algo próprio, vendo não só essa técnica específica de Decroux, mas a técnica de modo geral, entra nesse campo antropofágico, sendo ela um recurso que serve de propulsão para a obtenção de uma melhor qualidade para executar gestualidades. E de gestos, o Brasil está cheio, tanto que Câmara Cascudo escreveu o livro História dos Nossos Gestos: uma pesquisa da mímica no Brasil (2003), falando sobre a origem e curiosidades de mais de 300 gestos existentes no país.

Um grande exemplo da busca pela valorização da gestualidade brasileira e que veio com técnicas estrangeiras é Luís Otávio Burnier (2001, p. 61), com suas referências na técnica de Decroux, no Kathakali e na ópera de Pequim, que também partilhava dessa preocupação da cultura local, onde ele faz um esclarecimento:

[...] essas técnicas que estudei e aprendi haviam sido elaboradas em contexto cultural específico, pertenciam a culturas precisas (européia, indiana, chinesa...). Ensiná-las para atores brasileiros acarretaria no mínimo um risco de se operar mais um processo de aculturação, ou seja, valorizar outras culturas em detrimento da nossa, o que estava longe de ser minha intenção.

Ele via nessas técnicas a importância da objetividade que serviria para nortear o trabalho do ator e para edificar a sua arte. Mas “como ensinar uma técnica sem ensinar?”, indagava-o para tentar resolver essa questão da aculturação. E com isso ele explica que desenvolveu o processo chamado de “dança pessoal” com a ideia de manifestar uma técnica particular a partir da maneira própria que um indivíduo tende a agir, mover e se deslocar no espaço e tempo, ou seja, transferir essa particularidade do cotidiano para um contexto teatral, para dilatar essa presença, criando assim a “dança pessoal”. Vale lembrar que o LUME permanece firme e forte até os dias de hoje e um de seus espetáculos, Café com Queijo (1999), trata de uma pesquisa que os atores do grupo fizeram com pessoas simples pelas andanças no Brasil, através da “mímesis corpórea”, metodologia desenvolvida pelo próprio Núcleo de Pesquisa.

atávica que Jiddu fala, faz o Brasil possuir a sua própria mímica, porque o país é rico em gestualidade, e essa maneira como nos comportamos tem muito a dizer sobre a gente. Luís Louis relata no documentário Teatro e Circunstâncias: Entre Técnicas e Estilos, que passou cinco anos na Inglaterra e que além de ter estudado, posteriormente deu aulas, e tinha uma turma bastante heterogênea, onde ele via claramente que o corpo brasileiro tinha uma maior disponibilidade para as práticas, com seus gestos geralmente mais largos, mais soltos no espaço. Tinha também uma musicalidade particular no corpo, isso em comparação às pessoas de outras nacionalidades, porém para ele faltava uma coisa que não via no Brasil, que era a técnica. Então, ele conclui dizendo que ao trazer essa técnica de fora, ela vai se diferenciando naturalmente a partir das corporeidades locais, afirmando que a Mímica não é universal, mas sim cultural, pois ela se apresenta de formas distintas de acordo com a cultura de uma região, grupo ou até mesmo uma particularidade criativa. Mas será que não existe alguém que tenha criado uma técnica de ator genuinamente brasileira?

No final do século XX o Brasil ainda estava em uma fase de muitas transformações em relação às Artes Cênicas e, embora ainda tenha muitos percalços com o reconhecimento da cultura local, a meu ver, o século XXI chega com um amadurecimento do país em relação à própria cultura, que se firmou diante de uma valorização que vem crescendo nos últimos anos. Além do Lume Teatro, grupos como a Cia. Mundu Rodá de Teatro Físico e Dança (SP), fundada pelos artistas Juliana Pardo e Alício Amaral, em 2000, apresentam, por exemplo uma linguagem própria, tendo como base as Danças Tradicionais Brasileiras, criando um diálogo com o teatro, a dança e a música, focando em um trabalho técnico que esboça a criação de novas formas de expressões contemporâneas da arte brasileira.

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