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Macro e micropolítica na implementação de uma política pública – o Sistema Único

3. METODOLOGIA E DINÂMICA DA PESQUISA

3.1 Macro e micropolítica na implementação de uma política pública – o Sistema Único

Várias são as definições de políticas públicas, segundo Maria de Lourdes Carvalho, citando vários autores. Neste trabalho, escolhi como definição a de Boneti, citado por Carvalho et all:

Entende-se por políticas públicas o resultado da dinâmica do jogo de forças que se estabelece no âmbito das relações de poder, relações essas constituídas pelos grupos econômicos e políticos, classes sociais e demais organizações da sociedade civil (CARVALHO et all, 2010).

Tem o mérito de, ao olhar a política pública como instrumento de solução de problemas da sociedade sem obstante, perder de vista as forças que constroem a hegemonia no seio da sociedade civil, inclusive aquelas que contribuem para a acumulação do capital.

Uma política pública, segundo Brynard, também citado por Carvalho (2010), origina-se e se constitui como um processo político quando

um ou mais atores da sociedade identificam uma necessidade ou um problema, ou sentem que as ações do governo afetam negativamente algum segmento da sociedade. Esses atores procuram

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mobilizar apoio para convencer os decisores políticos a agir no sentido de alterar o status quo em seu favor. A fase de decisão política é de grande importância por duas principais razões: determina quem influencia ou controla o processo de decisão política; e, determina como as partes interessadas influenciam na agenda política (CARVALHO, 2010).

Contudo, vários autores, segundo Carvalho (2010) e Menicucci (2010), afirmam que o seu resultado envolve vários processos que ocorrem posteriormente à sua proposição: a implementação, a execução e a avaliação. O fluxo da política pode ser mudado por esses processos, principalmente na fase de implementação, mudando tão drasticamente seus princípios e diretrizes, tornando-a outra diferente daquela proposta originalmente. São nesses momentos que os vários atores sociais interessados se manifestam de forma mais contundente, às vezes não explicitamente, porém podendo mudar o curso da história. Carvalho (2010) refere a vários modelos de implementação de uma política pública. Dois deles me pareceram condizentes com o processo de implementação da política de Saúde tanto a nível nacional quanto em Campinas e, por conseguinte, utilizo-os nesse trabalho: o modelo de “equilíbrio interrompido” – se caracteriza por longos períodos de estabilidade, interrompidos por períodos de instabilidade que geram mudanças nas políticas anteriores; e mais, particularmente a partir dos anos 2000, modelos influenciados pelo “novo gerencialismo público” (Carvalho, 2010) e pelo ajuste fiscal – modelo este em que a eficiência passou a ser vista como o principal objetivo de qualquer política pública, aliada à importância do fator credibilidade e à delegação das políticas públicas para instituições com “independência” política”. Esse modelo foi introduzido com o Neoliberalismo e tem tomado força em vários países, inclusive no Brasil e, indiscutivelmente em Campinas, a partir dos meados dos anos 2000.

Telma Menicucci (2010), em sua tese de doutorado e no artigo “A relação entre o público e o privado e o contexto federativo do SUS”, embora não cite literalmente o “modelo de equilíbrio interrompido”, e utilizando-se como referência, além de outras, as teses de Paul Pierson para analisar o desmonte do Estado de Bem-Estar Social nos governos de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, trabalha com a hipótese que o resultado atual de uma política

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pública decorre de políticas anteriores que foram moldando, ao longo de sua implementação, o resultado com que se apresenta no momento. Pequenas mudanças podem ocorrer ao longo do tempo como fruto das disputas de interesses e de acasos, mas rupturas, mudando a política em definitivo, dependem de mudanças estruturais e de poder.

Outro autor, Peter Hall, citado por Rocha (2005), também defende que as políticas públicas são influenciadas por esse efeito feedback e as mudanças que sofrem ao longo do tempo são de três ordens: as de primeira e segunda ordem são mudanças limitadas, geralmente de ajustes rotineiros na política em andamento e ou ajustes em instrumentos de implementação da política. Não mudam seu rumo, princípios e diretrizes. Geralmente são mudanças provocadas pelos agentes do Estado responsáveis pela condução da política. As de terceira ordem, por sua vez, são aquelas que mudam o rumo da política, que provocam mudanças de paradigma. São provocadas por embates de atores que têm interesses contraditórios em relação ao status quo, e tem algumas características: as mudanças são impulsionadas por fatores sociais e não necessariamente por descobertas científicas; a mudança de paradigma é precedida por mudança na esfera do poder e, portanto, de governo e de orientação para o papel do Estado. No caso do setor Saúde, segundo Mencicucci (2007), constituiu-se no Brasil um sistema híbrido de saúde com um componente público, de universalidade restrita, dado que utilizado prioritariamente pelos pobres e classe média-baixa e outro, privado, utilizado por aqueles com poder aquisitivo suficiente para pagar do próprio bolso, seja através de pagamentos diretos, seja através de planos ou seguros saúde. Explica-se esse sistema híbrido pelas políticas conduzidas no país desde os anos 1960. Eram políticas de privilégio da iniciativa privada, as quais contribuíram para a constituição de atores que delas se beneficiavam e tiveram poder para exercer pressão, impedindo rupturas paradigmáticas na política de saúde. Se analisarmos a política de saúde nacional, é possível afirmar que durante o processo constituinte, o Movimento da Reforma Sanitária fez proposições que rompiam com o paradigma da política anterior. Contudo, ao longo da implementação do SUS, o efeito feedback das políticas de privilégio da iniciativa privada, desde a década de 1960, foram impeditivas dessa ruptura, de tal modo que hoje temos um sistema dual de saúde, um público – o SUS – e outro privado.

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Essas políticas passadas construíram o ambiente para o subfinanciamento do SUS, um dos fatores limitantes ao seu desenvolvimento, e

teve como outro de seus efeitos a atribuição de significados à

realidade e a conformação de determinadas concepções sobre o público e o privado, de tal forma que os padrões estabelecidos tendem a ser readotados, naturalizando as escolhas do passado e conformando a preferência por serviços privados (MENICUCCI,

2007).

Por conseguinte, a política de saúde estabelecida no Brasil – e hoje fortemente em Campinas - se caracteriza por essa característica dual – um mix público privado com uma força ideológica do segundo, ainda que cobrindo aproximadamente um terço da população brasileira. Embora o sistema público – o SUS – seja uma política de inclusão, tornou-se uma política de “universalização” focada naqueles que não podem adquirir procedimentos no mercado, o que foi fortalecido por mudanças políticas mais amplas, determinadas pelo advento do neoliberalismo.

No entanto, conforme vários autores (Foucault, Guatari, Deleuze), citados no artigo de Rocha nos faz acreditar que “nem tudo está dominado”. Nas palavras dele:

Dentre as muitas enunciações produzidas pelo modo de funcionamento do capitalismo no mundo contemporâneo, as que mais nos têm chamado atenção são as que comprometem nossa mobilidade de antemão, "decretando" o fim das lutas e o "tá dominado, tá tudo dominado". Tal comprometimento, em suas formas híbridas de dominação política e subjetiva, tem-nos confrontado com uma paradoxal dramaticidade contemporânea, qual seja: o cadenciar da vida e dos modos de operá-la em meio a processos produtores de constrangimento e indiferença, mas também a afirmação de modos singulares de inventar a vida em meio à própria vida (ROCHA, 2005).

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ativadas por potências virtualizantes que, como vimos, reagitam o campo problemático pela exasperação de problemas, sejam grandes ou pequenos. Afirmá-las em seu vetor ativo, como nervura desejante das linhas de fuga, implica acolher a singularidade do acontecimento nas dobras e mais dobras que operam em nós, em suas varreduras e contágios. É nesta contaminação que a potência vital se expande, carregando as baterias do desejo e produzindo alegria no corpo como prova da pulsação de uma vitalidade, vitalidade esta que funciona como princípio ético de seleção de escolhas que orientam para onde direcionar as setas de nossas linhas de fuga (ROCHA, 2005).

Esta experimentação de uma "vontade de interferir" requer "fiapos de consciência" que nos possibilitem criar planos de consistência nas interferências, para que elas possam fazer vazar seus contínuos de intensidade, porém atentas à cegueira das duas serpentes que atravessam nossa existência: capital e desejo (ROCHA, 2005).

Produzir interferências que possam fazer da existência uma obra de arte solicita criação, paciência e "prudência", embora saibamos que tudo isso ocorre sempre "em gargalos de estrangulamentos" (DELEUZE, citado por ROCHA, 2005).

Vários autores aqui no Brasil (Campos, Feuerwerker, Silva Júnior, Merhy, Cecilio, Carvalho, entre outros) são unânimes em afirmar que a prática em saúde, particularmente a prática clínica, médica e enfermagem, em dada sociedade e em dado momento, carregam o peso do conceito predominante sobre o processo saúde-adoecimento. E, ainda, essa concepção predominante tem

Sua especificidade (...) definida pelas características e pelas relações socioeconômicas, políticas e ideológicas relacionadas com o saber teórico e prático sobre saúde e doença, sobre organização, administração e avaliação dos serviços e a clientela dos serviços de saúde. (FEUERWERKER, 2002)

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é socialmente, mediante o confronto de interesses de diversas naturezas e de diferentes segmentos sociais, que se determina o modo como se estrutura a atenção à saúde (...) (FEUERWERKER, 2002). Assim, além da análise da política pública de saúde, como processo de produção de um dado bem – a saúde – e como os seus serviços organizam ações e atividades para esse fim (macropolítica), buscar-se-á analisar como sujeitos concretos e suas práticas, tecendo a micropolítica nos serviços de saúde, é capaz de uma produção de saúde integral que não separa corpo e mente, que respeita as subjetividades, que está, enfim, em defesa de uma vida plena onde o sujeito é protagônico na produção do seu próprio cuidado. São sujeitos capazes de produzir as “interferências” acima citadas.

Temos como hipótese que, assim como no SUS nacional, em Campinas, o efeito feedback de privilégio da iniciativa privada em décadas passadas.

vai significar também grandes continuidades, particularmente a convivência de formas públicas e privadas de assistência. Ao mesmo tempo em que se realiza, de fato, uma reforma, essa mudança é limitada pela antiga estrutura institucional, além de não ser capaz de desmontá-la, constituindo-se, realmente, uma dupla trajetória: a da assistência pública e a da privada (MENICUCCI, 2007).

São fatores limitantes a uma ruptura mais radical que de fato subordine a prática privada aos interesses públicos, o subfinanciamento crônico da saúde e mudanças políticas mais amplas, com o advento do neoliberalismo.

Também no nosso munícipio se verifica a tendência de uma saúde pública com grande peso do mercado privado, seja por cobrirem com planos de saúde aproximadamente 54% da população (Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS), seja por se responsabilizarem pela maioria das internações hospitalares e atendimentos secundários do SUS.

Não obstante ser essa a situação atual, Campinas se notabilizou, desde a origem da Secretaria de Saúde, lá nos idos dos 1970, por criar dispositivos e ferramentas em vários momentos da sua história, importantes para produzir movimentos de poder, de criação e de vida para o SUS local. São dispositivos e ferramentas que ao colocar o sujeito no centro, associado a um

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modelo de gestão participativo, com métodos e ferramentas que potencializam a capacidade de análise, podem produzir “desalienação” do trabalhador, aumentar a resolutividade das práticas, produzir contratos mais identificados com uma melhor produção de saúde.

Há ainda um movimento de usuários, particularmente aqueles representados nos Conselhos Locais e no Conselho Municipal, bem como nas conferências. São caudatários dos movimentos dos anos 1970, frutificados a partir das Comunidades Eclesiais de Base e outros estimulados por partidos de esquerda. No caso da Saúde, se constituiu um Movimento Popular de Saúde, quase sempre assessorado por técnicos da Secretaria, aqueles mesmos que militavam no Partido dos Trabalhadores e que, em vários momentos, assumiram a direção da Secretaria. Esses movimentos são importantes formadores de lideranças populares que participam ativamente dos Conselhos Locais de Saúde, dos Conselhos Distritais e do Municipal, inclusive assumindo sua presidência em vários momentos. Representam parte, talvez minoritária, dos usuários que lutam por uma saúde pública, universal em que a iniciativa privada seja apenas suplementar de fato.

Estre trabalho analisa como se construiu a política de saúde em Campinas conformada pelas políticas nacionais, particularmente com o peso do mix público-privado.

Reconhece a interferência do Neoliberalismo na sua conformação, inclusive em Campinas, propondo sua consolidação como uma política de “universalidade restrita” para uma camada da população (60% ou mais, dado que mesmo alguns que tem convênio se utilizam dos serviços públicos) que não pode arcar com a compra no mercado. E ainda que pareça paradoxal, também os neoliberais não se contrapõem ao SUS, desde que focado nos pobres, dado que cria condições para acumulação do capital, tamanha é a força econômica mobilizada pelo Estado na compra de medicamentos, equipamentos, construção de prédios, etc.

De outro lado, reconhece que dispositivos e ferramentas que ao longo do tempo foram tanto produzindo gestão com altos graus de democracia institucional quanto formas de cuidado mais integrais, contribuiriam para aumentar a capacidade de análise e autonomia dos trabalhadores da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas (SMS).

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Reconhece, por último, que há uma aliança entre os trabalhadores e usuários e, em vários momentos da rica história da Saúde Local, com seus gestores e ou parte deles. Assim, é possível afirmar que Campinas tem resistido ao desmonte do SUS local e, mais ainda, preservado vários dos seus avanços, dado a força dos seus trabalhadores e do movimento de usuários, particularmente aqueles representados nos Conselhos Locais e no Conselho Municipal, bem como nas Conferências. Some-se a isso a força de modelos de atenção e gestão que se foram construindo desde a década de 1970, que, ao se constituir num feedback positivo, permitiu que o município fosse mais capaz de resistir à força avassaladora do neoliberalismo.

Tenho como hipótese que todos esses movimentos instituintes de uma política de saúde que vai ao encontro e fortalece os princípios e diretrizes do SUS se não são suficientes para uma mudança radical na política, no curto prazo, podem ir construindo movimentos políticos, ideológicos e institucionais capazes de, ao longo do tempo, se constituírem em vetores de força que provoquem desvios e lentamente se constituam em elementos que, somados a outros, vá, numa guerra de trincheiras, solapando as bases conceituais do neoliberalismo e, como fogo derretendo o magma de nossa sociedade, ir construindo outra imaginação instituinte de uma nova sociedade (CASTORIADIS, 1986 e 1992)