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3. METODOLOGIA E DINÂMICA DA PESQUISA

3.2 A Matriz de Análise

Contar a história da Saúde Pública na cidade de Campinas não deixa de ser contar parte da história da constituição do SUS nacional. De como a sua história influenciou o rumo da instituição dessa política pública e, ao mesmo tempo, como se deixou atravessar pelo contexto nacional, se moldando àquilo que acontecia no país e no mundo.

A Secretaria de Saúde existe desde o final da década de 1960.

Esta história será contada por períodos de décadas, buscando-se, em cada um deles, trabalhar com a seguinte matriz:

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Décadas Conceito de Saúde

Doença Modelo Assistencial Modelo de Gestão 60 70 80 90 2000 10 até o momento

Ou seja, buscar-se-á, em cada década, descrever o conceito de saúde-doença que orienta as ações e as atividades da Secretaria de Saúde e como se vai constituindo um dado modelo de atenção e de gestão. Ademais, buscar-se-á verificar como as forças culturais, ideológicas e socioeconômicas hegemônicas que moldam o Estado e a Sociedade brasileira em cada década se confrontam com as lutas contra-hegemônicas, notadamente as que lutaram pela redemocratização do país e o Movimento da Reforma Sanitária e se tornam forças que influenciam e moldam o próprio conceito de saúde-adoecimento. Assim, parte-se de uma perspectiva na qual uma política pública, notadamente a de saúde é um caleidoscópio desenhado por inúmeras forças que se atravessam, misturam-se e disputam hegemonia na sociedade e no estamento oficial (governo e Estado).

Trabalhamos aqui, por conseguinte, com a concepção que o SUS – nacional ou local – não é apenas um arranjo organizacional que visa oferecer à população a mesma saúde que o mercado oferta – uma mercadoria na qual a doença é capaz de render muitos dividendos a profissionais de saúde, mercadores de medicamentos e equipamentos, pesquisadores comprometidos com as empresas farmacêuticas, dentre outros. Mas, ao contrário do mercado privado, que vê na doença uma oportunidade, o SUS está a serviço da produção da saúde compreendida como resultado da sociabilidade, da cultura, das relações de classe, ainda que tudo isso incida num corpo que é biológico (VAISTMAN, 92).

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E, ainda, no caso do SUS, essa é uma política que pretende ser civilizatória, ou seja, influenciar a conformação de um Estado e sociedades que cultivem os princípios da democracia radical, da solidariedade, da não violência, do respeito aos direitos das minorias, da inclusão social e do direito universal a uma vida plena, inclusive a outras políticas sociais que interferem nos determinantes do processo saúde-adoecimento. Produzir saúde é também produzir condições adequadas de vida, incluindo o direito à moradia digna, mobilidade urbana, emprego, renda, segurança e educação de qualidade.

Estudar o desenvolvimento da Saúde Pública em Campinas é compreender, no microcosmo de um município e dos seus serviços de saúde, mormente os de atenção primária, as possibilidades de se desenvolver o SUS, compreendendo seus limites e potencialidades. Sabemos o quanto as políticas públicas se entrelaçam com o contexto sociopolítico de um dado local em determinada época. Ainda que sem a profundidade que o tema merece, buscar- se-á contar essa história nos seus entrelaçamentos com o Estado e a sociedade civil (GRAMSCI, 1998).

Tomado de Gramsci, trabalho com a concepção de que o Estado é a soma de sociedade civil e sociedade política, isto é, “hegemonia couraçada de coerção” (GRAMSCI, 1999). Para ele, o Estado tem como objetivo manter sob dominação as classes subalternas, utilizando-se de dominação e hegemonia. Para a dominação, utiliza-se de instrumentos de força, tais como a polícia e as leis. Contudo, segundo ele, só coerção não é suficiente para manter o Estado a serviço da classe dominante, sendo necessário lançar mão de instrumentos de construção de consensos em toda a sociedade, inclusive com os grupos subalternos. Assim, o Estado está a todo instante tentando manter a estabilidade política e, para construir consensos, responde, muitas vezes, positivamente às demandas e lutas dos setores dominados. Constroem-se assim políticas públicas que atendem parte das reivindicações desses setores, sem, contudo, alterar a estrutura de classes do Estado, mantendo-se a hegemonia das classes dominantes.

Ademais, ainda segundo Gramsci, essas políticas são componentes essenciais do processo de manutenção e reprodução do capital, de tal modo que a concessão de benefícios econômicos às classes subalternas tem como limite a mais-valia que permite a reprodução do capital.

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O SUS é uma política do Estado brasileiro, inscrito na sua constituição, fruto das lutas contra- hegemônicas desenvolvidas na sociedade brasileira, porém, segundo essa análise gramsciana, trata-se de reforma parcial do Estado, ainda que fundamental para a maioria do povo brasileiro.

Não resta dúvida que a estruturação capitalista, particularmente o Neoliberalismo, se torna um referencial importante para se analisar a prática da política de saúde em curso, as forças que a institui de uma dada forma e as possibilidades de mudanças.

Para compreendermos a política de saúde do país, do Estado e do município, faz-se necessário avaliar como o Neoliberalismo e o Capitalismo contemporâneo têm influenciado, particularmente nos países europeus, de políticas consolidadas de bem-estar social, mudanças nas suas políticas sociais, notadamente a de saúde.

No Brasil, se o SUS surge num momento de constituição legal de políticas de Seguridade Social, se assemelhando a políticas de bem-estar, sua construção efetiva e consolidação se dá em momentos de intensa disputa do neoliberalismo pelos rumos do Estado brasileiro. Há inúmeras evidências que o SUS que se consolida não é o da constituição, mas sim aquele que é fruto tanto dos movimentos populares em sua defesa, quanto dos neoliberais, os que estão na iniciativa privada de saúde, bem como aqueles que dirigiram ou dirigem o Estado brasileiro nas três esferas da federação: nacional, estadual e municipal. E, mesmo em governos progressistas, a força hoje do neoliberalismo é suficiente para impedir que os rumos sejam os reivindicados pelos que defendem uma reforma sanitária mais radical.

Também os processos de subjetivação (ou a temática do sujeito) interferem nas mudanças em cada uma dessas décadas.

Segundo vários autores (Vaistman, Campos, Carvalho Canguilhem, Merhy, Camargo Jr. Oliveira, Cunha), o processo saúde-adoecimento não está relacionado apenas às condições socioeconômicas ou biológicas.

Há uma dimensão biológica, que afeta o “silêncio dos órgãos” (CANGUILHEM, 2002), há uma dimensão socioeconômica, mas há, sobretudo, uma dimensão psicológica, subjetiva,

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que passa pelo vivenciar e pela emoção de cada indivíduo. São fenômenos que possuem uma dimensão sociocultural, coletiva, e outra psicobiológica, individual, que não deveriam ser dicotomizadas. Devem então ser compreendidos enquanto parte do modo de organização da vida cotidiana e da história pessoal de cada um (VAISTMAN, 1992).

Segundo essa lógica, doença não é o oposto de saúde. Se há situações concretas em que um dado órgão não se encontra “normal”, há que se perguntar ao sujeito como ele se sente e não é surpreendente o quanto deles se dizem sadios. Segundo Canguilhem (2002), “doença não é uma variação da dimensão da saúde; ela é uma nova dimensão da vida”. Para ele, o anormal não é a ausência de normalidade, dado que todo estado vital é normal. Assim, um órgão que funciona diferente da média pode apenas ser um normal patológico que é diferente do normal definido pela ciência como fisiológico. Em outros termos, doente é aquele que perdeu a capacidade de instituir novas normas para ele em situações diferentes da média ou da norma fisiológica ou em novas situações. A norma é sempre individual, com cada um dizendo o que é normal para si mesmo. Saúde é, portanto,

Produzida dentro de sociedades que, além da produção, possuem certas formas de organização da vida cotidiana, da sociabilidade, da afetividade, da sensualidade, da subjetividade, da cultura e do lazer, das relações com o meio ambiente. É antes resultante do conjunto da experiência social, individualizada em cada sentir e vivenciada num corpo que é também, não esqueçamos, biológico. Uma concepção de saúde não reducionista deveria recuperar o significado do indivíduo em sua singularidade e subjetividade na relação com os outros e com o mundo (VAISTMAN, 1992).

A relação com os outros inclui a relação dos sujeitos sadios ou doentes com os seus cuidadores, profissionais de saúde. Esta é, na maioria das vezes intensa, já que se trata de relação que se incluem sensações e sentimentos que envolvem vida, morte, sofrimento, prazer, vínculo, além de afetos como raiva, alegria e tristeza.

Entender os modos de subjetivação e de como os trabalhadores da saúde se relacionam com a instituição na qual trabalham, com seus processos de trabalho e suas experiências

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cotidianas, que jogos de poder e agenciamentos se dão fora e dentro do trabalho, nos permitirá compreender como se conformam modelos de atenção e de cuidados em cada época em análise.

Para Carvalho,

a maneira como entendemos a noção de sujeito condiciona e determina nossas propostas organizativas para o setor da saúde. Por exemplo, se privilegiamos o plano da estrutura biológica, tenderemos a sugerir a organização de modelos de atenção relativos a processos de cura e reabilitação. Se for priorizado o plano das necessidades sociais e dos interesses institucionais, são ressaltadas ações visando à prevenção, à promoção e à intervenção sobre o processo de deliberação de políticas públicas. Em suma, objeto, método, objetivo e estratégias na saúde variam de acordo com a concepção que se tem do sujeito (CARVALHO, 2005).

Campos propõe um método – o da Roda, que tem como objetivo democratizar as instituições, não somente como um meio para impulsionar mudanças sociais, mas como um fim em si mesmo (CAMPOS, 2000).

E para isso, afirma a necessidade de mudanças nos “sujeitos concretos que habitam estes espaços”.

Portanto, um modelo de gestão comprometido com a democracia radical, com a conformação de sujeitos com alta capacidade de análises e autônomos estará, inapelavelmente, entrelaçado ao modelo de atenção em que cuidar significa aumentar os graus de autonomia para se andar na vida, de sujeitos responsáveis não só pelo cuidado de si, mas da comunidade, e capaz de compreender a Saúde enquanto direito inalienável do ser humano.

Tem-se aqui uma profissão de fé, a partir das minhas vivências, experimentações e observações, que é possível, a partir do micro, dos locais de trabalho, dos territórios, do espaço comunitário, articular os movimentos de consolidação de modos de fazer o cuidado individual, coletivo e dos territórios que deem legitimidade ao SUS e o tornem objeto de desejo da maioria da população brasileira. E que esses movimentos sejam capazes de formar

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sujeitos que operem por mudanças nas políticas públicas. E, num movimento em espiral, contribuir para mudanças estruturais, levando à reforma do Estado brasileiro.

O Setor Saúde em Campinas tem essa potência. Com seus altos e baixos, vai construindo, ao longo de sua história, movimentos ascendentes de ganhos políticos. A história ainda não chegou ao fim...