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A relação público-privado e as restrições impostas a um sistema de saúde de fato

5. POLÍTICA DE SAÚDE NO BRASIL A PARTIR DE 1964 – AINDA

5.2. A relação público-privado e as restrições impostas a um sistema de saúde de fato

Um dos temas mais polêmicos em relação à Saúde no Brasil diz respeito à relação público- privado como definido na constituição, tendo reflexos profundos na organização do SUS. Segundo Rodriguez Neto (2003), o tema está tratado em dois artigos da Constituição. O primeiro deles, “que dispõe sobre a constituição do Sistema Único de Saúde e suas diretrizes, diz que o mesmo é integrado pelas ações e pelos serviços públicos de Saúde”. O segundo, por sua vez, “diz que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, configurando, dessa forma, dois sistemas: o público e o privado”.

Esta configuração, como afirmado por vários autores (Bahia, Menicuci, Oliveira), é fruto de políticas passadas, desde pelo menos a década de 1960. As várias medidas administrativas tomadas até os meados dos anos 1980 não modifica a tendência da privatização da assistência médica. Além dos subsídios a hospitais e clínicas, a remuneração por produção é um dos principais fatores a de incentivo ao produtor privado isolado, além de estímulo para surgimento de empresas para a prestação de serviços médicos, tanto para o Inamps quanto para outras empresas. A destinação de recursos da previdência para a iniciativa privada “favoreceu esse setor empresarial, que se capitalizou sem correr os riscos das leis do mercado, na medida em que esse passou a ser garantido pelo Estado” (ROMERO, 2008). A importância dos hospitais privados pode ser medida pela quantidade de internações: embora as internações hospitalares estivessem declinando nos anos 1980, em 1987 foram internadas 11,7 milhões de pessoas, 80,3% pelo setor privado contratado (MÉDICI, 21). Se a instituição do Sistema Nacional de Saúde definia a existência de dois sistemas de saúde paralelos (saúde pública e assistência médica, o primeiro público e o segundo privado financiado pelo Estado), a criação do Inamps

consolida a dispersão de recursos, os comandos diferentes e a descoordenação. O modelo – de racionalidade, eficiência e eficácia discutíveis, mesmo para a época – baseava-se no pressuposto de uma “integração programática” que não existia nem existiu (OLIVEIRA, 1977), e transformou a Previdência Social no grande comprador e financiador de serviços médicos da rede privada, com a

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implementação de um modelo de assistência caracterizado pela tecnificação dos atos médicos, pela ênfase na assistência hospitalar e pelo assalariamento dos profissionais de saúde. As ações de saúde coletiva, por outro lado, foram abandonadas à mingua dos parcos recursos com que era dotado o Ministério da Saúde (ROMERO,

2008).

A partir dos anos 1990, com a consolidação do SUS por meio da sua inserção legal na Constituição e nas leis orgânicas, se houve mais controle desse fluxo financeiro do público para o privado, não se pode dizer que ele foi totalmente estancado.

Portanto, desde mais acentuadamente a década de 1970 (Menicucci, Médici, Fagnani, Rodriguez Neto), já se observa a tendência de crescimento da atenção médica no Brasil por meio do sistema privado, o que permitia cooptar o apoio de setores importantes da sociedade (empresários prestadores de serviços, médicos e empresários da indústria de equipamentos e medicamentos) e permitindo o desenvolvimento de um amplo e complexo sistema médico- industrial com reflexos na política de saúde até o presente momento.

Se, inicialmente, pretendia-se que o sistema nacional de saúde fosse de natureza pública, podendo ser delegado a terceiros, mediante concessão ou permissão (Santos, em Rodriguez Neto, 2003), o que ficou definido foi que a iniciativa privada pode agir livremente na execução de serviços e, ainda, pode suplementar os serviços públicos por meio de contratos ou convênios. Portanto, o Sistema Único de Saúde (SUS) “é o sistema que engloba as ações e serviços de saúde públicos que se destinam a garantir o acesso universal igualitário previsto no texto constitucional” (SANTOS em RODRIGUEZ NETO, 2003).

O setor privado, por sua vez, constitui outro sistema, que pode atuar livremente e poderá participar do SUS quando houver, por parte do poder público, necessidade de ofertas de serviços para os quais tem insuficiência, podendo contratar pessoas jurídicas ou físicas (SANTOS em RODRIGUEZ NETO, 2003).

Para Menicucci, a expansão da assistência privada de saúde no Brasil é efeito feedback da política de saúde, desde sempre numa aliança com o público, com o próprio Estado

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favorecendo “o surgimento de várias modalidades institucionais de assistência privada e a expansão de outras que já existiam de forma ainda pouco expressiva” (MENICUCCI, 2007). Dentre as decisões públicas que favoreceram a expansão privada, conta-se, ao longo do tempo:

 expansão da assistência por meio da compra de serviços privados em detrimento da expansão de rede própria;

 internação em hospitais contratados pelo público, porém podendo o usuário pagar complementação para ficar em acomodação especial; como consequência, as acomodações de hospitais privados contratados pelo público se deterioram, pois é mais lucrativo ofertar ao usuário acomodações melhores com sua suplementação;

 subsídios no imposto de renda para as despesas médico-hospitalares;

 planos de saúde para funcionários públicos, inclusive na instituição previdenciária responsável pela assistência pública.

Essa expansão, inicialmente escorada pelo Estado, permitiu, posteriormente, fortalecer diversos agentes do mercado (prestadores, operadoras de planos e seguros e, inclusive, usuários), configurando-se interesses que hoje influenciam a política. São hoje, se menos dependentes do Estado para a acumulação de capital, poderosos o suficiente para

garantir recursos públicos, de forma direta ou indireta, e, por outro, obter ou preservar regras favoráveis, mas principalmente a ausência de regras para a expansão do mercado de assistência à saúde.

(MENICCUCCI, 2007)

Por outro lado, o pouco investimento em serviços próprios, associado a um subfinanciamento crônico, impedem a expansão de uma atenção primária de qualidade. Mantem-se, assim, um acesso ainda dificultado, o que tem o efeito ideológico de construir uma imagem de serviços públicos ineficientes, desumanizados e de baixa qualidade, o que favorece a opção dos usuários pela assistência privada.

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a própria prática governamental incentivou a ampliação das ações privadas e reforçou a diferenciação, apontando para a inexistência de um projeto efetivo de universalização e equalização da assistência. Expressão emblemática disso foi a existência no âmbito da própria instituição previdenciária, encarregada da política de saúde, de uma assistência diferenciada para seus funcionários. Desta forma, a expansão da assistência supletiva nos anos 80 não foi um processo paralelo e independente das políticas públicas; ao contrário, foi no bojo da crise da assistência pública e sob a pressão dos interesses privados já constituídos, particularmente dos prestadores de serviço, que foram definidas medidas governamentais que favoreceram aquela expansão e constituíram um arranjo institucional crivado de contradições. As ações governamentais contribuíram de forma decisiva para a institucionalização e legitimação da opção pela assistência privada e, de forma indireta, retiraram recursos públicos que poderiam ser canalizados para a assistência pública, contribuindo para seu mau desempenho. Na forma de uma espiral, a sequência de decisões e ações foi reforçando as opções privadas (MENICUCCI, 2007).

A Constituição brasileira consagra esses dois subsistemas de um sistema nacional de saúde: um público – o SUS – e o outro privado, quase autônomo em relação ao primeiro. Interessante notar que, apesar da prevalência naquele momento histórico (como de resto, hoje) das forças conservadoras e defensoras do mercado, a aprovação de um Sistema Público de Saúde e do direito à saúde não foram contestados por elas, uma vez que interessava às forças de mercado uma maior demanda, desde que acompanhada por mais recursos estatais e que pudessem ser transferidos, em grande medida, aos produtores privados. Um sistema público do porte do brasileiro interessa também aos produtores de insumos e medicamentos, de equipamentos médicos hospitalares, à construção civil e a outros ramos de atividade que vendam para o SUS.

Segundo a Constituição, as instituições privadas podem participar também do Sistema Público de forma complementar, mediante contratos ou convênios. Não é por demais afirmar

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um duplo privilégio das instituições privadas: a garantia de um sistema próprio para elas, além da possibilidade de se imiscuir no sistema público.