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CAPÍTULO I – Da necessidade de uma comunicação mais sensível

1.1 Maffesoli e a pós-modernidade

A classificação de “Pós-Modernidade” não é um consenso científico (autores como Zygmunt Bauman e Jürgen Habermas traçam olhares bem diversos do que trataremos aqui20), principalmente porque definir nosso próprio tempo é um grande desafio. Apesar disso, pelo menos desde o Iluminismo (séculos XVII e XVIII), as ciências sociais passaram a encarar essa empreitada. A partir do século XX o debate se tornou mais forte, período em que floresceram discursos sobre os modos de organização social em perspectivas temporais e espaciais. Nesse ínterim, termos como contemporaneidade e modernidade passaram a ter destaque e serviram para classificar e direcionar de forma organizada o pensamento histórico humano. Ainda hoje colhemos os frutos dessa organização.

A corrente iluminista se tornou a grande influenciadora da modernidade, compreendida como uma era que se deslocou por completo do pensamento medieval e que se consolidou na Revolução Industrial. O homem passava a se reconhecer como um ser autônomo, separado da natureza e capaz de atuar sobre ela, assim como sobre a própria sociedade, tudo isso a partir da sua razão lógica. Houve o que Max Weber (2004) chamou de “desencantamento do mundo”. Ele indicava que, diante da ciência e do recente domínio tecnológico, os humanos se distanciavam das crenças mágicas criadas para explicar o desconhecido. No lugar disso, buscavam uma determinada racionalização da vida e aplicavam às suas lógicas um caráter universal. A nova percepção perante uma sociedade técnico- instrumental teria deslocado folclores e religiões para as esferas do que fosse considerado irracional. O cientificismo positivista tinha uma visão binária, de pretensões hegemônicas. Essa lógica ganharia força principalmente no campo das pesquisas, tornando-se o pilar dessa era da razão em que a ciência objetiva e comprobatória definiria primeiro o que é a verdade.

É a partir desta constatação de Weber que o sociólogo francês Michel Maffesoli (2010, p. 39) define a pós-modernidade, o contemporâneo, como o momento em que ocorre um “reencantamento” do mundo. Para o autor, a grande marca desse tempo, que seria de transição, é o retorno à sensibilidade e aos afetos após um longo período de contenção gerado pela lógica racionalista imposta na modernidade. Grande parte da obra de Maffesoli é dedicada a debater essa perspectiva histórica e a importância de uma ciência que volte a contemplar o subjetivo dentro de sua estrutura. Aproveitamos a coerência da pesquisa feita

20 Enquanto Bauman vai tratar de uma “Modernidade liquida” (1998) que aflora a partir da década de 1960, no pós-guerra, e que enfraquece as estruturas dos relacionamentos pessoais e institucionais que eram bem mais estáveis na modernidade, em “O discurso filosófico da modernidade” (2000), Habermas defende a ideia de que o projeto moderno deveria ser reconstruído (em vez de deposto) com base em um resgate da razão comunicativa como uma força emancipatória.

pelo autor ao longo de mais de quarenta anos para apresentar uma pequena leitura dos seus estudos e buscar pistas que nos ajudem entender nosso tempo. A partir daí, verificar quais novas janelas se abrem para o jornalismo. Sugerimos, assim, uma breve análise teórica sobre um dos sociólogos mais respeitados da contemporaneidade, e que dedica seus estudos a tentar compreender nosso comportamento na qualidade de seres sociais durante um período tão conturbado.

Enquanto, na modernidade, Immanuel Kant (201521) propunha uma “crítica à razão

pura”, buscando a superação das sensibilidades através do que chamou de “imperativos categóricos”, razão universal que pudesse servir de parâmetro para a compreensão da sociedade como um todo, Maffesoli caminha em direção oposta ao prestar um “elogio à razão sensível” (1998). Segundo ele, vivemos um momento onde as certezas (políticas, religiosas, sociais etc.) e ideologias outra hora firmadas se quebram. A partir disso, precisaríamos olhar para o mundo pelas lentes de um relativismo, através das quais nada é definitivo ou imutável.

Convém elaborar um saber “dionisíaco” que esteja o mais próximo possível de seu objeto. Um saber que seja capaz de integrar o caos ou que, pelo menos, conceda a este o lugar que lhe é próprio. Um saber que saiba, por mais paradoxal que isso possa parecer, estabelecer a topografia da incerteza e do imprevisível, da desordem e da efervescência, do trágico e do não- racional. Coisas incontroláveis, imprevisíveis, mas não menos humanas (MAFFESOLI, 1998, pp. 12-13).

Desde 1991, Maffesoli se propõe a debater a importância do pensamento abstrato para a ciência diante de uma realidade pós-moderna, período que estaríamos atravessando e que se veria marcado por um retorno pendular das subjetividades. Para o autor, tal mudança seria não apenas natural como também necessária em um caminho para o equilíbrio do tratamento social. É o que ele denomina como a “razão sensível”, uma “sinergia da matéria e do espírito” (MAFFESOLI, 1998, p. 152). Anos depois o sociólogo francês reiterou “(...) que a sociologia tem mais a ver com o senso comum do que com a geometria” (MAFFESOLI, 2010, p. 197) para atentar que o estudo científico humano teria quase se perdido durante o período positivista. Assim, o autor defende que toda verdade deve ser relativizada, tanto quanto houver pontos de vista, no que seria um estudo baseado na “sociologia sensível”. Da era da objetividade e da razão, aos poucos nos transportamos para um período em que “o instinto avança sobre o racionalismo abstrato” (MAFFESOLI, 2014, p. 7).

21 A obra “Crítica da razão pura”, de Immanuel Kant, foi publicada originalmente em 1781 e ficou conhecida como principal obra teórica do pensador prussiano.

Seguindo esses mesmos preceitos, Boaventura de Sousa Santos escreve em seu livro “Introdução a uma ciência pós-moderna” (1989) que uma das grandes rupturas que marcam a pós-modernidade é um declínio da ciência então estabelecida e, com isso, a perda da confiança nas grandes narrativas e relatos que visavam representar uma verdade inquestionável, absoluta e pura. O autor chama a atenção para que a ciência, uma forma legítima de conhecimento do mundo, precisa agregar outras formas do saber em vez de negá- los caso queira se adaptar aos novos tempos. Só assim ela poderia se aproximar da sociedade e também ser reconhecida por ela. Tal medida tornaria possível a formação de um senso comum mais esclarecido e de uma comunidade científica mais prudente. Dessa forma seria viável pensar em um novo lugar para a ciência no cotidiano social, tornando-se mais prática e esclarecida, capaz de efetivamente compartilhar seu conhecimento e de se desvincular de seus preconceitos.

Maffesoli acredita que, na medida em que a ciência busca criar grandes leis universais, se afasta da humanidade. Assim poderia explicar fenômenos físicos em planetas distantes com precisão, mas perderia a capacidade de verificar a troca de sentidos entre duas pessoas em um momento casual. Por isso, aliada à subjetividade, uma das grandes marcas da pós- modernidade seria o retorno do olhar científico ao cotidiano, ao mais simples e comum, o que passa pela aceitação da singularidade das pessoas e do estado mais íntimo e imperfeito do homem. “Há uma clandestinidade da existência a qual jamais chegamos a apreender de uma maneira macroscópica – e da qual não dão conta, em número significativo, os documentos quantitativos que pudemos apresentar” (MAFFESOLI, 2010, p. 201). Define-se um pensamento horizontal, no qual o autor propõe essa "sociologia da carícia", erotizada, de experimentação. Nesta perspectiva, a ciência deveria se tornar mais humana e próxima do acontecer ordinário em vez de buscar por grandes explicações universais.

É em função de tudo isso que se pode propor a substituição da representação pela apresentação das coisas. Não se trata de prestidigitação, nem de uma licença linguística sem consequências, e sim de uma mudança de envergadura. Com efeito, a representação foi, em todos os domínios, a palavra mágica da modernidade. Assim, para indicar brevemente, ela está na base da organização política, daquilo que se convencionou denominar ideal democrático, e justifica através deste fato todas as delegações de poder. Também a encontramos nos diversos sistemas interpretativos, procedendo por mediações sucessivas e tendo por ambição, para além da simples fatualidade, representar o mundo em sua verdade essencial, universal e incontornável. Em ambos os casos, a progressão repousa sobre a depuração – que aqui deve ser entendida em seu sentido estrito –, sobre a redução e sobre a busca da perfeição. Bem outra é a apresentação das coisas, que se contenta

em deixar ser aquilo que é, e se empenha em fazer sobressair a riqueza, o dinamismo e a vitalidade deste “mundo aí” (MAFESOLLI, 1998, pp. 12-13).

O autor aproxima a ideia de compreensão sensível à compreensão cotidiana, buscando uma ciência que apresenta o mundo vivido e experimentado em vez de representar algo pouco palpável, idealizado. “É isso o interesse de uma razão sensível que, sem negar fidelidade às exigências de rigor próprias ao espírito, não esquece que deve ficar enraizada naquilo que lhe serve de substrato, e que lhe dá, afinal de contas, toda a sua legitimidade” (Ibidem, p. 162).

Apesar de mais bem direcionado ao nosso tempo, o debate trazido por Maffesoli não é essencialmente novo. É interessante lembrar que, ainda antes de Karl Marx produzir os “Manuscritos econômicos filosóficos”, em 1844, o filósofo romântico alemão Friedrich Schiller advoga, através de suas “Cartas sobre a estética” (1794), a necessidade de retornarmos a um estado de vida mais simples e natural, que fugisse à degradação do progresso capitalista. Tal fuga começaria, por um lado, “furtando-se à violência cega da natureza e por outro regressando à sua simplicidade, verdade e plenitude” (SCHILLER, 1994, p. 43). Para o filósofo, o homem de espírito especulativo, que fora formado pela modernidade, com seus métodos abstratos e nacionalizadores “tornou-se forçosamente um estranho no mundo dos sentidos, perdendo a matéria em favor da forma” (SCHILLER, 1994, p. 40). Em suas análises, Schiller buscava reafirmar a importância das subjetividades e da arte na formação do conhecimento e relação do homem com o mundo. Maffesoli, mais do que explicitar uma necessidade humana, propõe que um retorno natural do protagonismo dessa lógica subjetiva já está em curso na pós-modernidade.

Ao voltarmos esse pensamento para uma apresentação da sociedade pela mídia, que ao mesmo tempo mostra e ajuda a construir os pontos de vista estruturantes dessa mesma sociedade, fica evidente a necessidade de revisitar conceitos antes cristalizados por uma lógica positivista representativa. Quando ignora a multiplicidade dos relatos e a amplitude das narrativas, o jornalismo não consegue contribuir de forma efetiva para estender a visão do público sobre a realidade como de fato é, múltipla e compartilhada. As regras duras do jornalismo tradicional de notícia (como o Lead e a Pirâmide Invertida22), que buscam criar padrões de qualidade e afastar a subjetividade do texto, deixaram de ser ferramentas para se tornarem fórmulas, limitando a complexidade da criação humana e gerando um olhar

22 O lead é o primeiro parágrafo da notícia, onde o jornalista deve explicitar “o que há de novo” devendo responder às perguntas “quem?”, “o que?”, “onde?”, “como?”, “por que?” e “quando?”, conforme amplamente ensinado nas escolas de comunicação. A técnica da pirâmide invertida visa hierarquizar as informações de forma que o mais importante aparece primeiro na matéria. Logo, as informações menos relevantes ficam no fim, podendo ser cortadas na edição do texto ou ignoradas por um leitor apressado. Essas técnicas seriam medidas para assegurar a objetividade e melhor transmissão da notícia.

praticamente mecânico sobre o cotidiano. Ainda que se alternem personagens e relatos, as estruturas narrativas seguem fiéis ao padrão cartesiano, contribuindo mais uma vez para a reprodução de um senso comum limitado. Prevalece um modelo em que se perde a sensibilidade e a pluralidade.

Por isso, um retorno à subjetividade na representação do cotidiano é peça importante do debate das mídias na pós-modernidade. Podemos verificar impactos similares na sociologia e na comunicação advindos dos fenômenos tecnológicos e sociais pós-modernos, dentre eles a internet e a globalização. A era da grande aceleração trouxe dilemas filosóficos e econômicos aos meios midiáticos por todo o mundo e parece caber ao próprio mercado encontrar caminhos que adaptem as mídias ao novo tempo. Enquanto isso, a academia deve refletir, analisar, criticar e possivelmente também apontar para novos caminhos.

Para se colocar de acordo com esse novo cenário, ainda segundo Maffesoli, é necessário agregar a totalidade das coisas, verificar sua ambivalência, incluindo o equilíbrio e caos em cada situação, entendendo que em tudo há luz e sombra entremeadas “assim como o corpo e espírito, interpenetram-se numa organicidade fecunda” (MAFFESOLI, 1998, p. 19). A lógica proposta pelo autor pede uma ciência complexa, aproximando-se de uma ideia apresentada por Castells (2006), que implica compreender que o encontro do sujeito com a realidade seria dado através de um híbrido entre o objetivo e o subjetivo, na chamada “cultura da virtualidade real”. Também se aproxima dos estudos de Edgar Morin, de quem igualmente podemos retirar lições úteis para repensar essa mídia em mutação.

Vivemos numa realidade multidimensional, simultaneamente econômica, psicológica, mitológica, sociológica, mas estudamos estas dimensões separadamente, e não umas em relação com as outras. O princípio de separação torna-nos talvez mais lúcidos sobre uma pequena parte separada do seu contexto, mas nos torna cegos ou míopes sobre a relação entre a parte e o seu contexto (MORIN, 1999, p. 2).

Morin (2007) defende o uso do “pensamento complexo” nas ciências, linha teórica que prevê a interdisciplinaridade pela compreensão das coisas. Para ele, toda simplificação ou redução do pensamento seria “mutiladora”. No lugar disso, deveríamos trabalhar com a agregação, unindo saberes por uma visão mais completa da verdade e da realidade. Ao pensarmos desse modo, verificamos que, em uma investigação (científica ou jornalística), a subjetividade, quando deliberadamente aceita e compreendida, poderia ajudar a desenvolver um olhar mais completo do que uma estrutura que busca simplesmente uma objetivação perfeita (como sabemos, inexistente).

Não pretendemos negar, assim, a importância da objetividade ou da busca pela imparcialidade nas narrativas jornalísticas. Pelo contrário, procuramos uma forma de unir os saberes para aproximar ao máximo a produção noticiosa de um ideal que parece inalcançável, mas que deve ser perseguido: essa meta que foi de alguma forma definida ainda pelas correntes iluministas, a de trazer luz aos fatos. Dessa vez, porém, uma luz verdadeira, que possa ser erguida e emanada por todos e que percorra os mais diferentes caminhos. Conforme explicado, a partir dos autores destacados, propomos verificar a sensibilidade (afeto, subjetividade) como uma ferramenta extra de informação, em vez de simplesmente negá-la a partir de um visão simplificadora e binária. Aceitamos aqui que nosso universo não é composto por tais linhas divisórias, mas por borramentos. Desse modo, devemos compreender que um jornalismo mais sensível seria também mais complexo e mais completo, investindo em suas potencialidades pelo objetivo final: a melhor comunicação e transmissão de um certo nível de realidade.

Se na modernidade firmaram-se ideias positivistas na busca cartesiana pela objetividade e imparcialidade, que aos poucos limitaram o potencial criativo e o desenvolvimento sensível do texto jornalístico no propósito de alcançar o que seria uma “informação pura”, a pós-modernidade aqui retratada pode indicar também uma retomada do Jornalismo Sensível, isso é, aquele que aposta concomitantemente na subjetividade do repórter e do público para trabalhar questões mais afetuosas e profundas.

Apenas compreendendo que o subjetivo também informa, podemos perceber como é possível se encantar e aprender com as histórias que nos são contadas através de poesias, músicas e musicais, chegado à arte abstrata e música clássica, mesmo que não haja uma estrutura narrativa linear racional e temporal completa em sentido estrito. É o emocional que nos conduz e tudo faz sentido porque faz sentido dentro de nós. É também por isso que somos capazes de interpretar e compreender charges, figuras de linguagem, ironias, piadas etc. Não por acaso, normalmente são essas formas de linguagem que fixam as ideias em nossas memórias de forma mais eficiente.

Nesse sentido, a metáfora é um instrumento privilegiado, pois, contentando- se com descrever aquilo que é, buscando a lógica interna que move as coisas e as pessoas, reconhecendo a parcela de imaginário que as impregna, ela leva em conta o “dado”, reconhece-o como tal e respeita suas coibições. É isso, propriamente, que pode fornecer à “inteligência do social” toda a sua amplitude; é isso, propriamente, que permite ter em mente a sinergia da matéria e do espírito, e elaborar uma verdadeira “razão sensível” (MAFFESOLI, 1998, p. 152).

Cremilda Medina completa esse pensamento ao dizer que os códigos não-verbais, presentes por exemplo na linguagem poética, são capazes de abrir as perspectivas de interação social criadora, onde fluem sinais não esquadrinhados pela lógica verbal, o que ampliaria as capacidades comunicacionais do sujeito (MEDINA, 2008, p. 105).

Como bem definido por Maffesoli (1998), apesar de estarmos falando sobre uma revalorização das subjetividades, não se trata apenas da repetição de algo já superado. O autor explica que a humanidade aprende com suas diferentes gerações e que caminha ao encontro de uma visão equilibrada do mundo, que sabe dosar objetividade e subjetividade em melhores medidas, como em um movimento pendular que tende a recuar dos extremos para equilibrar- se no centro.