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CAPÍTULO II – O Jornalismo Sensível como alternativa

2.2 O olhar sensível sobre Joicy

As experiências cotidianas da dor ou da alegria, dos comportamentos humanos, os espantos da crueldade – eis alguns temas que desafiam a sensibilidade, a sutileza e o sentimento incômodo das mentes abertas às incertezas (MEDINA, 2008, p. 26).

O uso da sensibilidade comove, no sentido mais puro da palavra, vinda do latim commovere, ou seja, “mover em conjunto”, “mobilizar”. Dessa forma, entende-se que uma pessoa comovida sofreu um impacto, uma mudança, e foi retirada de seu local de conforto por uma ação externa, tocado por uma energia. Ao nos indagarmos sobre o uso da sensibilidade no jornalismo, buscamos esse movimento que envolve e desloca o ser social da inércia, do cotidiano alienante descrito por Heller (2016), que o transforma e o faz transformador, dando ferramentas para uma autonomia do pensar. Ao analisarmos o jornalismo hoje, verificamos que essa meta dificilmente é alcançada, porém alguns exemplos se destacam nesse sentido.

Reportagem vencedora do Prêmio Esso de Jornalismo 2011, “O Nascimento de Joicy” nos traz a história de uma transexual pobre que lutou durante sete anos para conseguir fazer uma operação de mudança de sexo utilizando o serviço público de saúde. O trabalho é

resultado de cinco meses de dedicação da repórter Fabiana Moraes, dos designers gráficos Andrea Aguiar e Cláudio França e dos fotógrafos Rodrigo Lôbo e Hélia Scheppa. Durante esse período, eles acompanharam a luta de então João Batista Melo da Silva, 51 anos, morador de Alagoinha, Recife, para se transformar em Joicy Melo da Silva. A reportagem foi publicada no Jornal do Commercio, nos dias 10, 11 e 12 de abril e teve sua versão on-line disponibilizada simultaneamente. Já no dia 11, o jornal atestaria o sucesso de público, com mais de cinco mil visualizações no site e outros milhares de acessos através do Facebook e do Twitter, uma movimentação atípica para as plataformas. Em 2015, Fabiana transformou o trabalho em um livro publicado pela editora Arquipélago, ao qual adiciona os bastidores da reportagem, análises sobre o jornalismo de subjetividade e reflexões sobre os limites necessários e possíveis da relação jornalista e personagem.

Logo na abertura da reportagem, pode-se observar a abordagem diferenciada sobre um assunto ainda tratado com resistência pela sociedade. O texto conta uma história a partir de determinada realidade, sem deixar-se totalmente à mercê de uma criação imagética que flua apenas do senso comum. Aqui, o fator “estranhamento”, analisado pelo Formalismo Russo (SHKLOVSKY, 2010), pode ser observado com facilidade enquanto uma ferramenta de estímulo reflexivo.

Joicy Melo da Silva nasceu no dia 22 de novembro de 2010, às 12h30. Pesava 74 quilos e media 1,63 metro de altura. Naquele dia, mais sete partos foram realizados no Hospital das Clínicas, na Cidade Universitária, Recife. O de Joicy foi sem dúvida o mais complicado de todos: durou quase sete anos e envolveu uma série de especialistas. (...) Quando Joicy nasceu, morreu João Batista, 51 anos, filho de Irene (83, viva) e Eupídio Luiz (77, enterrado). Foram os dois que ensinaram o garoto a plantar milho, mandioca, feijão. (...) Moravam na caatinga, no Campo do Magé, área rural de Alagoinha (13.761 habitantes, 225 quilômetros da capital). Não poderiam prever que, décadas depois, o filho iria usar esmalte cor rosa-pitanga e sofrer por um rapaz enquanto ouvia música de novela. Não sabiam que ali na roça quem os ajudava era uma menina. Aí o chamavam de João. João que sempre foi muito zeloso, João que nunca deu trabalho, João que até plantou um jardim ao lado da casa. Só para eles esse menino deixou saudade – há tempos Joicy sabia que ele existia apenas aparentemente. Foi por isso que decidiu, apesar do olhar triste e reprovador da mãe, findar com ele. Um dia, deitou-se em uma maca e dormiu. Ali matou João. Ali nasceu Joicy (MORAES, 2015, p. 32, grifos nossos).

Por esse trecho é possível sentir com clareza algo de inclusão, uma perspectiva própria de uma determinada realidade que escaparia ao objetivismo do jornalismo positivista. Através de um olhar de mundo aproximado à Joicy, estudado e experimentado pela jornalista (uma visão a partir de si e do outro), adquirimos também um novo olhar, sensível e real. Mediante o debate sobre os espaços que se abrem ao subjetivo na pós-modernidade e a ideia de que um

jornalismo humano e plural é essencial na criação de uma percepção de realidades mais heterogêneas e de estímulo à empatia, verificamos o discurso proposto nesta matéria como um exemplo claro do subjetivismo em favor do jornalismo e das mais diferentes representações sociais dentro dele. A própria escolha sensível de tratar a personagem como mulher em todo texto, mesmo antes da cirurgia (e da aparência de Joicy apontar para o lado oposto) demonstra esse cuidadoso olhar para dentro, para as verdades escondidas além dos fatos. Fica claro que gênero não depende de cirurgia.

Em um trecho seguinte, observamos o mesmo olhar. “Entre as mais de 20 pessoas do distrito entrevistadas para esta reportagem, as crianças foram as únicas a perceber que se dirigiam, de fato, a uma mulher” (MORAES, 2015, p. 37). Contrariando preceitos da biologia, medicina, do direito, mas principalmente do senso comum (como expõe o próprio texto a partir dos demais entrevistados), Moraes reitera aqui que “de fato”, Joicy é uma mulher, ainda que ninguém perceba. Neste período havia inclusive uma decisão judicial que interditava a personagem a tomar decisões por conta própria. Por isso, legalmente, não poderia haver Joicy. Mas numa perspectiva humanizada, pela mediação da jornalista, a mulher Joicy é sempre retratada. Em determinada(s) realidade(s), ou visão(ões) da realidade, ela existe. E essa faceta do real é fundamental porque é, a priori, a representação o mundo pelos olhos da própria personagem condutora da história. Em seu livro, Fabiana Moraes caminha junto ao que é defendido por Maffesoli ao afirmar que “ao lado das exigências técnicas e vitais que formam o lastro do jornalismo, não podemos perder de perspectiva: emoção também é informação” (MORAES, 2015, p. 27).

Suas únicas aproximações com as outras – e aquilo o que entendemos como feminino – são as unhas pintadas de vermelho, os peitos que já se destacam sob a camiseta e a profissão de cabeleireira. Sem os marcadores que a fariam, externamente, ser “mulher”, Joicy termina sofrendo um preconceito duplo, que vem tanto daqueles que não experimentam a sua condição quanto dos próprios transexuais. Estas olhavam com certa incredulidade para aquela mulher.Era como se, naquele banco, um intruso estivesse sentado entre elas. Como se fosse uma piada de mau gosto feita por alguém que estava ali para lembrar a aparência que elas tinham antes dos longos cabelos e das calças justas (MORAES, 2015, pp. 34-35, grifos nossos).

Ao utilizar o modalizador “era como se”, a autora aprofunda sua percepção pessoal e se vale de um repertório próprio esperando que seu leitor partilhe de um saber precursor para compreender a trama. É um jogo de ideias, uma ferramenta de comunicação. Não se trata aqui do relato de um fato, mas de um auxílio estético para a melhor compreensão da mensagem, de forma sensível e que aproxima o jornalista, em sua parcialidade e imperfeição humana, do

leitor. Ambos são nivelados, por isso há uma conexão facilitada, uma empatia, uma comoção. O texto deixa, então, de representar uma instituição que se promoveria como detentora da verdade (o jornal) para dar espaço a uma discussão mais íntima entre quem relata um acontecimento e quem o recebe.

Além de não compreender por que alguém decide cortar algo que Deus lhe deu, Pedro também é incapaz de pronunciar o novo nome de João (...) A censura de Pedro, que mescla bom humor e uma sempre perigosa pitada de ignorância (“ela agora vai deixar de ser traveco, vai ser bicha mais não”), é uma das poucas feitas verbalmente, na cara de Joicy (MORAES, 2015, p. 36, grifos nossos).

Mais uma vez a autora utiliza exemplos cotidianos para tentar transmitir um olhar sobre dada realidade, que é mais complexa do que poderia representar a objetividade pura do texto que se limita em si. A jornalista aposta em elementos estéticos, aproxima-se da poesia e utiliza referência da culinária para propor uma mistura virtual de sensações, sendo talvez mais fiel à experiência vivida. Ao fazer isso, indica que suas referências são compatíveis ao universo do leitor em sua competência enciclopédica51. Essa técnica é encontrada por diversas

vezes durante a reportagem vencedora. Em determinados momentos, a jornalista chega a fazer uso da primeira pessoa do plural para incluir o leitor em seu olhar, nivelando percepções e convidando à imersão: “foi o que aconteceu, já vimos, com a própria Joicy” (Ibidem, p. 47).

Outra sutileza da sensibilidade está em revelar o que não foi visto, ultrapassando aquilo que seria um relato protocolar. Isso acontece, por exemplo, quando a jornalista descreve os momentos de tranquilidade de Joicy no período cirúrgico citando objetivamente em diversos momentos que ela “não chorou”. Poderíamos não pensar nisso, ou supor que chorar em determinadas situações seria comum, mas temos nossa atenção direcionada pela repórter e passamos a observar sutilezas a partir da percepção sensível dela. Outro exemplo de informação pelo “não visto” é a constatação de que “É interessante como apenas os homens bêbados têm coragem de chegar perto” (MORAES, 2015, p. 69, grifos nossos). Os termos “É interessante” e “têm coragem” mostram claramente a visão pessoal da jornalista-autora que media sua experiência ao público, relatando diretamente o que vê, o que percebe e como percebe.

51 Definição que nos foi trazida por Dominique Maingueneau (2013, p. 46) para designar um saber virtualmente ilimitado e que varia de acordo com a sociedade em que se vive e as experiências de cada um dentro delas. Assim, em determinada medida, quanto mais próximo se está socialmente do seu leitor, o jornalista é capaz de utilizar construções de saberes comuns para clarificar uma experiência a partir de exemplos, termos ou figuras de linguagem.

Os recursos utilizados por Fabiana Moraes alcançam o que Platão chamou de sensualidade. Eles seduzem o leitor e o conduzem pela trama relatada, o que, no entanto, não deixa em segundo plano a informação ou geração de um conhecimento, pelo contrário. Ao capturar o leitor e ser envolvente, essa narrativa ganha destaque no imaginário de quem lê, cria marcas emocionais. Ao construir cenários imagéticos com dados normalmente preteridos pelo jornalismo tradicional, trazendo informações como “não chorou” ou “sem tomar café da manhã”, a jornalista humaniza sua história, sua personagem e sua participação nisso tudo.

De forma ampla, ao analisar este conteúdo especificamente, verificamos quatro momentos de destaque do sensível a partir de “O nascimento de Joicy”. Primeiro, o preparo emocional da autora para dar espaço ao diferente e tratar os fatos sobre essa perspectiva pessoal (somando o próprio olhar ao do outro), respeitando a realidade da personagem que dá os contornos da reportagem. Em segundo lugar, no tempo dedicado a Joicy, que de tão intenso chegou a estremecer as linhas divisórias profissionais na relação entre repórter e personagem. Em seguida, houve uma abordagem extremamente sensível na produção do texto, como pudemos notar aqui. Por último, a afetação ao leitor pode ser experimentada de diferentes formas por cada um que se dispõe a acompanhar a reportagem. Ou seja, essa sensibilidade esteve presente na criação da pauta, na apuração, na redação e na recepção. Analisando a mesma obra, a pesquisadora Sylvia Moretzsohn observou:

Fabiana olha, repara, espanta-se, revolta-se. E exibe esse sentimento no que escreve. Por isso, também, defende o que chama de “jornalismo de subjetividade”: não uma rejeição à objetividade, evidentemente, porque sabe – e todos deveríamos saber – que qualquer atividade humana articula, embora em graus distintos, essas duas dimensões; mas, sim, uma contestação à concepção reducionista de objetividade gravada nos manuais de jornalismo, que castra a autonomia do repórter e o condiciona a apenas “relatar fatos”, como se isso fosse possível. Pior: a relatar fatos de acordo com um enquadramento prévio, num processo que acaba tendo a cumplicidade do profissional, de tal modo que “pessoas e grupos são praticamente obrigados a se comportar, a responder e mesmo a sentir aquilo que o jornalista, quase sempre apressado ou ansioso para dar conta de algo que está em sua cabeça, quer” (MORETZSON, 2015, p. 14).

Afinal, “a produção jornalística não pode se apoiar apenas na novidade para se fazer valer: essa necessidade engessa o potencial analítico do meio, que, sim, tem capacidade de produzir reportagens que informam e refletem sobre determinado fenômeno” (MORAES, 2015, p. 186).

É possível observar claramente o uso da subjetividade como ferramenta em “O Nascimento de Joicy”. Trata-se de uma perspectiva em favor do jornalismo, da informação, e

que aborda esferas menos retratadas pela mídia tradicional. Essa visão sobre o cotidiano não é nova, porém muitas vezes é preterida. Fica evidente que, ao assumirmos que não é possível domar o mundo de forma cartesiana, abrimos espaço para novas relações de contato com o outro e com nossas noções de fato e de realidade. Desse modo, observamos como resultado um texto capaz de englobar um pouco mais das multiplicidades do ser humano, representá-lo de um jeito menos caricato, fugindo do lugar-comum e trazendo à tona vozes que podem estimular uma forma diferente de relação social, mais elaborada, representativa, afetiva e empática.

O trabalho produzido por Fabiana Moraes e equipe é um exemplo do que tratamos aqui como Jornalismo Sensível. Mais à frente, nesta pesquisa, identificaremos outras produções com diferentes abordagens, mas que apostam na subjetividade pela transmissão de novos pontos de vista das múltiplas realidades produzidas em nosso cotidiano. Propomos uma compreensão melhor dessa sensibilidade que nos atravessa em sua dimensão afetiva e nos ajuda a captar nuances de diferentes visões de mundo.

Para Sodré, a compreensão das coisas é própria da sensibilidade. Não de um estado afetivo pessoal, mas de uma “potência do sensível, inseparável do pensamento e da ação de um comum” (SODRÉ, 2002, p. 68). O autor explica que é através da sensibilidade que primeiro temos contato com as coisas e, assim, as conhecemos de verdade. A racionalidade viria depois, em um processo de organização. Por isso, ele também aproxima a ideia de compreender subjetivamente a uma corporeidade, ao toque e ao abraço, no que seria uma fusão entre pensar e sentir.

E só se compreende no comum. Compreender significa agarrar as coisas com as mãos, abarcar com os braços (do latim cum-prehendere), isto é, dela não se separa, como acontece no puro entendimento (do latim in-tendere, penetar) intelectivo, em que a razão penetra o objeto, mantendo-se à distância, para explica-lo. No entendimento explicativo, um fenômeno particular fica subsumido a uma lei geral, enquanto na compreensão o fenômeno guarda sua singularidade, isto é, sua unicidade incomparável e irrepetível. O requisito essencial da compreensão é, assim, o vínculo com a coisa que se aborda, com o outro, com a pluralidade dos outros, com o mundo (SODRÉ, 2002, p. 68).

A análise do autor nos faz lembrar a de alguns dos filósofos apresentados, mas direciona a percepção da compreensão sensível ao vínculo e à pluralidade. Essa ideia percorre todo nosso trabalho e pretendemos, a partir dela, observar esse destaque ao coletivo, ao diverso, a partir da sensibilidade.

Conforme vimos, existem perigos em um retorno abrupto das subjetividades ao pedestal social. Tratamos disso ao falar sobre o fenômeno da pós-verdade, mas poderíamos usar diversos exemplos em que emoção se torna impulsão, sem refino. Por isso aproveitamos o termo “sensível” (do latim sensibilĭta, dar sentido, significação) para induzir um pensamento que seja emotivo em uma medida equilibrada, de bom senso. Ou seja, que dialogue continuamente com o racional.

Pode haver razão sem emoção? Na mitologia grega, os irmãos Apolo e Dionísio, ambos filhos de Zeus, são personagens que podem nos ajudar e compreender o conflito destas duas esferas da percepção humana. Apolo é o deus da beleza, da perfeição, do equilíbrio e da razão. Já Dionísio é o deus das dualidades, da relação entre o corpo e a alma, entre o divino e o profano. É também o deus das festas, da loucura, das emoções e o responsável por controlar as estações do ano. Ou seja, estes deuses podem representar o que compreendemos como estabilidade e instabilidade. A polaridade Apolo-Dionísio foi, portanto, associada à ordem e à desordem universal, entre o equilíbrio do pensamento e a instabilidade das emoções. Culturalmente, Apolo era símbolo da passagem da infância à vida adulta. Ele tinha a função de trazer verdade ao homem, dar a ele a luz da razão. Por isso, também simbolizava a individualização, a constituição de uma personalidade concreta da formação do indivíduo. Dionísio, ao contrário, representava a criatividade e a fusão no outro, a sociedade pluralizada, a representação pelo coletivo. Ainda assim, os gregos não consideravam que os dois fossem opostos ou rivais. Apolo e Dionísio eram vistos como manifestações distintas de uma mesma divindade.

Induzimos uma reflexão sobre a emoção, seus conflitos e interações possíveis com a razão institucionalizada no jornalismo. Nossa proposta é unir os saberes apolíneo e dionisíaco para nos auxiliar na conceituação do Jornalismo Sensível, concordando que “a intersubjetividade que se dá nas relações comunicacionais precisa ser valorizada e a dimensão estética dos fenômenos da comunicação precisa ser reconhecida” (BARROS, 2017, p.161). Caminhando nesse sentido, olharemos para a história da subjetividade no próprio jornalismo.