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Capítulo I: As realidades encontradas na teoria e na prática

D) MANIFESTAÇÃO ARTÍSTICA: MÚSICA

a) Ceguinhas de Campina Grande30

As irmãs Regina Barbosa – nascida em 1940 e mais conhecida como Poroca - Maria Barbosa – nascida em 1944 e conhecida por Maroca -, e Francisca da Conceição Barbosa – nascida em 1950 e conhecida por Indaiá – são cegas de nascença e passaram a infância e a juventude sendo obrigadas por seus pais a cantar, pedindo esmola, nas feiras do interior dos estados de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte, Alagoas e Paraíba para complementar a renda da família de camponeses; e, sem ter uma terra para morar, seguiam os passos do pai, alcoólatra, que se alugava como mão-de-obra temporária para os proprietários de terra da região.

Após a morte do pai, que tocava realejo, cantar e pedir esmolas tornou-se a principal fonte de renda de uma família numerosa, que, em certo momento, contava com 14 pessoas, entre irmãos e irmãs, um deles adotado, sobrinhos, a mãe e seu novo marido.

O repertório do grupo inclui, desde aqueles tempos, vários ritmos nordestinos e canções, mas a especialidade das Ceguinhas de Campina Grande é o Coco de Embolada, que elas interpretam com os tradicionais ganzás. Os temas das canções passam de amor à auto-piedade cristã, pois o objetivo da música é mobilizar os transeuntes a dar uma esmola, devido à deficiência visual das irmãs.

Maria Barbosa, a mais autônoma das três irmãs, foi a única que se casou, duas vezes, com um deficiente visual, tendo ficado viúva em ambas as ocasiões. O primeiro marido foi um violeiro e cantador, que passou a apresentar-se com elas nas feiras. Tiveram uma filha, Maria Dalva, que nasceu em 1989. Após o nascimento da filha, Maria foi viver com o marido em Natal, no Rio Grande do Norte. Foi o único período de suas vidas em que as irmãs estiveram separadas. Quando a filha já tinha completado cinco anos, Manuel morreu e Maria voltou para junto de suas irmãs, em Campina Grande. Lá conheceu Silvestre, o grande amor de sua vida, com quem viveu por dois anos, até o marido ser assassinado a facadas em frente à sua casa. Quando as filmagens para o documentário A pessoa é para o que nasce, de Roberto Berliner, foram iniciadas, em 1997, elas viviam praticamente sós, em uma pequena casa numa vila em Campina Grande, na Paraíba. A mãe delas tinha morrido há cerca de seis meses e Silvestre estava morto há menos de quatro. A filha de Maria estava em poder de tias distantes, que se recusavam a devolver a filha para a mãe.

30 Para fotos das Ceguinhas de Campina Grande, entre no site do documentário “A pessoa é para o que nasce” (2005): http://www.apessoa.com.br, ou solicite arquivo pessoal da pesquisadora.

As Ceguinhas despertaram o interesse do cineasta Berliner, que realizou sobre elas um premiado curta-metragem. O sucesso do filme fez com que fossem convidadas para apresentar-se no PERCPAN 2000 – evento internacional de percussão, organizado por Naná Vasconcelos e Gilberto Gil. Sobre elas, Naná e Gil, respectivamente, disseram que “As Ceguinhas são a coisa mais pura da nossa cultura. São a tradução do amor à música”, e que essas mulheres “São como três borboletas. Elas têm aquela fragilidade típica das borboletas.”31

Entre 1997 e 2003, depois do sucesso do curta-metragem sobre essas senhoras, Roberto Berliner rodou um documentário em longa metragem sobre a vida e a carreira das Ceguinhas de Campina Grande. O filme A pessoa é para o que nasce foi mundialmente lançado em 2005. No site do filme, encontramos sua sinopse:

O filme acompanha os afazeres cotidianos destas mulheres e revela as curiosas estratégias de sobrevivência da qual participam parentes e vizinhos. Mergulha em sua história, flagrando uma trama complexa de amor e morte, miséria e arte. E acompanha, numa reviravolta inesperada, o efeito-cinema na vida destas mulheres, transformando-as em celebridades. Um filme em que diretor e personagens confrontam-se com os laços que surgem entre eles, revelando a sedução e os riscos do ofício de documentarista.32

Sobre as discussões geradas pelo filme - acerca da cena final, em que suas personagens principais aparecem nuas, banhando-se no mar - Roberto Berliner revela em entrevista: “Acho que tem muita gente que se incomoda de ver três mendigas no papel de estrelas de cinema. Isso choca mais a essas pessoas que a própria miséria delas”33.

Aqui nos deparamos com a relação entre o belo e a arte, em oposição à miséria (e completaríamos: a deficiência) e arte. A segunda é tensa, devido a concepções burguesas de Arte, e será analisada mais adiante.

Atualmente, Maria Barbosa, a Maroca, mora com sua filha Maria Dalva, seu genro e netos em uma casa alugada, e suas irmãs moram com Valneide – que, logo depois do curta-metragem de Roberto Berliner, se interessou por cuidar delas – em outra casa. Vivem de suas aposentadorias e de cachês de shows quando são convidadas.

Elas também foram nomeadas “Mestres das Artes”, uma premiação do Governo da Paraíba para pessoas com grande importância cultural reconhecida por este órgão.

31 Informação encontrada no site www.apessoa.com.br , acessado em 24/10/2007. 32 Idem. Ibidem.

33 BISPO, Calina. “Polêmica em torno das irmãs cegas”, A União, Campina Grande - PB, 10/07/2005. Disponível on-line através do site http://www.apessoa.com.br, acessado em 23/10/2007.

Sua condição de mendicância e o sucesso inesperado serão temas de nossas discussões, além de sua experiência musical na tradição oral e seu repertório.

b) Surdodum34

Desde agosto de 1995, o Projeto Surdodum tem por objetivo proporcionar a pessoas com deficiência auditiva de todos os graus e tipos, a participação em uma banda de percussão, ou seja, oferecer a integração musical através de um processo pedagógico-sócio-cultural. Sempre esteve sob a liderança de uma fonoaudióloga e cantora.

A partir das demandas criadas pela Banda SURDODUM, foi criado o Instituto Surdodum, uma OSCIP que subsidia os projetos do Surdodunzinho e da banda, esta última nosso objeto de investigação.

O Surdodum (a banda), atualmente, é composto por 10 integrantes, sendo metade surdos e metade ouvintes (dos ouvintes, um deles é cadeirante). Os surdos são responsáveis pelos instrumentos de percussão: tarol, timbal, surdo de marcação e surdo de virada ou de evolução, além de um dos vocais. Um cadeirante ocupa o posto de guitarrista e os ouvintes se dividem em vocal, baixo, bateria, e técnico de som.

O grupo faz adaptações de canções da Música Popular Brasileira para esta formação, além de tocar músicas próprias (a maioria delas, composições do guitarrista em parceria com a vocalista ouvinte). Já tem seu trabalho gravado em um CD de composições próprias, chamado Na batida do silêncio.

A seguir, apresentamos um trecho da canção que dá nome ao CD, uma composição do guitarrista da banda, revelando os processos desencadeados nas vidas dos surdos envolvidos nesta iniciativa:

O silêncio é musical

Minha música vem do silêncio Nele encontro minha voz Na batida do silêncio.35

34 Para fotos do SURDODUM, acesse o site da Banda: www.cts.org.br/surdodum, ou solicite o arquivo pessoal da pesquisadora.

35 BARROS, Arnaldo. “Na batida do silêncio”, Brasília (DF): Mastering Estúdio & Dubla Filme, Na batida do silêncio, 2004/2005.

Dizemos que este excerto é representativo dos processos que o Surdodum desencadeou nos surdos, pois quem canta este trecho é a vocalista surda que, mesmo sendo portadora de surdez profunda, foi estimulada a desenvolver sua oralidade, o que pode ter-lhe permitido ocupar tal função. Portanto, quando ela canta “nele encontro minha voz”, foi realmente, neste processo, do reconhecimento do silêncio como possibilidade musical, que ela encontrou sua própria voz, a da cantora.

O objetivo geral do Surdodum está colocado na passagem que segue abaixo, presente no site do grupo:

Através de nossa humilde contribuição, sonhamos tornar notória a ruptura de obstáculos destes deficientes, muitas vezes, subestimados por suas limitações e assim tentaremos moldar a posição errônea da sociedade, incitando a execução de outros projetos direcionados a PORTADORES DE NECESSIDADES EDUCACIONAIS ESPECIAIS.36

Portanto, através dos trechos destacados, podemos notar aqui, assim como nas descrições de outros grupos, a concepção de superação das limitações, como o surdo tendo de provar à sociedade o quanto é capaz de realizar atividades que seriam impensáveis no senso-comum para ele, como tocar instrumentos musicais e cantar.

Para integrar o SURDODUM, segundo sua coordenadora: “A pessoa tem que estar estudando, é o primeiro passo. Tem que estar estudando e pra isso eu peço notas bimestrais e tem que ser surdo. Mas é só isso, tem que ser surdo e estudar (...)”37 Aqui, os critérios de seleção são claros e objetivos, mas nada tem a ver com questões artísticas. O foco está na deficiência.

No próximo capítulo discutiremos como foi se constituindo a figura da pessoa com deficiência, pelo mundo ocidental, o Brasil e ela mesma.

36 Site do grupo Surdodum: www.cts.org.br/surdodum, acessado em 23/10/2007.

37 Entrevista concedida à autora no dia 07 de setembro de 2007, no estúdio do grupo SURDODUM no Porão do Rock, em Brasília - DF.