• Nenhum resultado encontrado

CONCEITOS E CONTEXTOS: MAPEANDO O ARTESANATO COMO PROCESSO

1.1 Mapeando o artesanato como processo

Começo mapeando o artesanato, não objetivando tecer definições absolutas, mas aproximações que o relacionem como “expressão objetualizada das culturas humanas de forma geral e, mais especificamente, de um grupo social determinado histórica, econômica, política, (re)produtiva, estética e socialmente”, como o torna legível Ronaldo Corrêa42. Enquanto forma de expressão e de trabalho, além de cumprir uma função simbólica e econômica, o artesanato desempenha, por meio dos artefatos e suas relações, um papel profundo de (re)elaboração de sentidos, podendo ser condicionado pelo contexto social ou, até mesmo, interferir o modificando.

Parto do entendimento de que artefatos43 são indissociáveis de processos culturais e que os significados e códigos relacionados a estes são traduzidos e traduzem relações sociais, construindo, assim, um

42 Ressalto que, apesar de haver semelhanças entre os sistemas de objetos que Corrêa analisa – as esculturas folclóricas – e os móveis em fibras que estudei por ambos circularem em esferas do artesanato, são universos distintos economicamente, culturalmente e socialmente, havendo diferenças e particularidades na conceituação e contextualização, que explicitarei ao longo da tese. Corrêa, Ronaldo O. Narrativas sobre o processo de modernizar-se: uma investigação sobre a economia política e simbólica do artesanato recente em Florianópolis, Santa Catarina, BR. Tese: Doutorado do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas: UFSC, 2008.

43 Na tese, optei por utilizar, preferencialmente, o termo artefato para definir, de modo geral, objetos que são produtos da ação humana e atendem a necessidades, materiais e/ou simbólicas, fornecendo informações sobre culturas, épocas e quem os produz. São codificados e decodificados (ou seja, significados) em processos culturais nas esferas de produção, circulação e consumo. Em alguns momentos também serão utilizados os termos: bens,

produtos, mercadorias, objetos ou coisas, dependendo das falas dos autores envolvidos na

universo inteligível mediado pela sua materialidade, bem como por aspectos simbólicos e imaginários sociais.

O artesanato, por relacionar-se à construção de conhecimentos tecnológicos, repassados por práticas cotidianas mediadas pelo trabalho, aplicados social e historicamente, é uma das formas mais expressivas da cultura material e imaterial. Victoria Novelo44, coerentemente, aponta que a existência do artesanato no contexto capitalista atual indica sua relevância no plano cultural (significando trajetórias sociais e identidades); a grande capacidade de adaptação e flexibilização de processos (transformações e resignificações); mas, principalmente, a persistência de artesãos em manter tradições e relações de trabalho características deste setor (sistema fabril, comumente não fragmentado, relações familiares, comunitárias e modos de fazer a partir de conhecimentos tradicionais).

Posto sob esta perspectiva, o artesanato não representa um “valor em si” como obra de arte ou objeto destinado à contemplação, passível de ser descolado de relações de trabalho e práticas cotidianas. Octávio Paz, em seu ensaio “O Uso e a Contemplação”45

, enaltece a presença do artesanato na vida cotidiana e o contrapõe ao objeto industrial e à obra de arte. Para o autor, a obra de arte, na sociedade moderna, tem status de religião, podendo tornar-se divindade, fadada à contemplação, eternizada em museus. O objeto industrial caminha em outra direção, tendendo a desaparecer com a mesma velocidade com que surge, destinando-se ao “lixo” (salvo em alguns casos) assim que novas técnicas, materiais ou demandas o condenarem à obsolescência.

Sob esta ótica, relação é uma palavra que define bem o valor do artesanato e sua aderência a projetos de identidades e estilos de vida. O nosso contato com o objeto artesanal é corporal e sensível. O artesanato corre com o tempo e não quer ser histórico, no sentido de datar, e nem estabelecer rupturas, mas transformações da tradição, que flui, ligada a tempos e lugares. Diante dessa premissa, ao analisar e conceituar a cultura material e de modo específico o artesanato, é preciso focá-lo não como resultado, mas como processo. Contextualizá-lo como mediador de ações humanas, condicionando, facilitando e representando interações entre sujeitos e suas realidades em contextos sociais, culturais, históricos e econômicos.

44 NOVELO, Victoria. org. La capacitación de artesanos en México, una revision. México: Plaza y Valdés, 2003.

45 PAZ, Octavio. O Uso e a Contemplação. São Paulo: Editora Cultura e Ação, Revista Raiz n. 3, 2006, p. 82-89.

Para situar o setor no contexto produtivo nacional, começo pela concretude de dados estatísticos. Economicamente, este é um dos setores que mais gera empregos (mesmo que informalmente) e constitui- se importante fonte de renda. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estima-se que o número de artesãos no Brasil é de 8,5 milhões, com um volume de negócios superior a 30 bilhões de reais ao ano, injetando cerca de 14 bilhões de reais na economia brasileira, correspondente a aproximadamente 2,8% do PIB nacional46. A renda gerada pelo artesanato costuma superar a de indústrias tradicionais, como vestuário (2,7%) e bebidas (1%). E chega próximo a de uma das mais reconhecidas indústrias brasileiras, a automobilística, responsável por pouco mais de 3% do PIB47.

Outro dado importante que as estatísticas revelam é de que 87% dos artesãos que trabalham com o artesanato tradicional e o comunitário são mulheres que, normalmente, aprendem esta tradição com as mães, transmitindo, preservando e reelaborando referências culturais. Como as mulheres ainda ocupam uma posição inferiorizada no mundo do trabalho, com menos oportunidade de empregos e salários comparativamente mais baixos, o fato de existir um setor tão expressivo economicamente em que lideram as mulheres, torna-se significativo. Como relata Mara Lago48 em suas pesquisa sobre questões de gênero, a constituição de identidades em sociedades urbanas complexas e as relações hierárquicas em espaços domésticos, vêm sendo paulatinamente negociadas, ocasionando processos de mudanças nos modos de vida. O artesanato, ao garantir renda, que muitas vezes compõe a maior fração da renda doméstica, alterou relações intrafamiliares e oportunizou maior espaço de poder e de negociação nas decisões familiares, por parte das mulheres.

Apesar de conhecimentos artesanais ainda serem, na maioria dos setores, repassados por mulheres, ocorrem reordenamentos desta prática, acionados por novas relações sociais. Sônia Matos49 mapeou “esgarçamentos” de fronteiras de relações de gênero no trabalho artesanal com barro em uma comunidade do Vale do Jequitinhonha.

46 Fonte de dados: Revista Sebrae n 5, julho/agosto 2002. 47 Idem.

48 Lago, Mara. C. S. Modos de vida e identidade: Sujeitos no processo de urbanização da Ilha de Santa Catarina. Florianópolis: Ed. UFSC, 1996.

49 MATOS, Sônia Missagia de. Artefatos de gênero na arte do barro: masculinidades e femininidades. Revista de Estudos Feministas. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, ano 9, segundo semestre de 2001, pp. 56-80.

49 MACHADO, Deonilda, presidente do CNARTS. Depoimento da artesã disponível em: http://www.agenciasebrae.com.br/noticia. Acesso em: 09 set. 2009.

Repertórios consolidados foram paulatinamente flexibilizados, outros (re)negociados, permitindo criar novas categorias que pudessem ser sancionadas socialmente, “permitindo”, desta forma, trânsitos entre o que era considerado “coisa de homem” e “coisa de mulher”. Nas fábricas de móveis artesanais, a relação do artesanato como espaço de fronteiras de gênero é inversa ao artesanato doméstico. Como espaços ditos masculinos, as fábricas abrem pouco ou nenhum espaço para as mulheres. Neste caso, artesanato é “coisa de homem”.

Outro aspecto aparentemente incongruente, presente neste setor é o fato do Programa de Artesanato Brasileiro (PAB) estar locado no Ministério do Desenvolvimento, da Indústria e Comércio (Mdic), dentro da Secretaria de Desenvolvimento da Produção e não no Ministério da Cultura (Minc). Diante desta aparente inadequação, órgãos representativos dos artesãos articulam-se para relocá-lo junto ao Ministério da Cultura, uma vez que, segundo constatação destes (e não das entidades governamentais que regulamentam e normatizam a vida destas pessoas), “o PAB está inoperante. Temos mais afinidade com o Ministério da Cultura (Minc). Somos mais produtores de cultura do que empresários”50

ou industriais (ao menos aos moldes de entendimento do Mdic). A categoria aprovou e ratificou o documento de mudança de ministério no IV Congresso Nacional dos Artesãos, realizado em setembro de 2008, em Brasília.

Segundo a Confederação Nacional dos Artesãos (Cnarts)51, o Brasil é considerado um dos maiores produtores de artefatos artesanais do mundo, no entanto, ainda não tem políticas públicas, estatutos e apoio governamental suficiente para o desenvolvimento do setor. Apesar do forte sentimento de pertença a culturas, os(as) artesãos(ãs), de modo geral, exprimem a necessidade de “resgatar” tradições e retratar identidades, sem deixar de inserir os produtos no mercado e atualizar processos produtivos. Nas conversas, entrevistas, etnografias, visitas e participação em fóruns comunitários que tive, uma das principais reivindicações apresentadas pelos artesãos (além da formalização do setor e filiação ao Ministério da Cultura) é de que o Governo Federal interaja mais com as associações e cooperativas, promovendo o desenvolvimento local sustentável. “Nosso setor está nas mãos de pessoas que ganham dinheiro em cima do trabalho do artesão,

50 MACHADO, Deonilda, presidente do CNARTS. Depoimento da artesã disponível em: http://www.agenciasebrae.com.br/noticia. Acesso em: 09 set. 2009.

51 Esta confederação, como órgão representativo, é relativamente nova. Foi fundada em 11/05/2009.

organizam feiras e exportam nossos produtos”52

. A postura de atravessadores, que distanciam as esferas da produção e consumo, camuflando origens e territórios aos quais os artefatos estão relacionados, configura-se como o maior problema a ser enfrentado politicamente.

Os artesãos cobram que o retorno de todas as ações governamentais (ou não, pois estas podem advir de organizações não governamentais - ONGs) para a valorização do artesanato revertam para quem produz e não para atravessadores. Políticas e mediações, segundo apontam, são fundamentais, mas desde que dêem visibilidade e aproximem a produção do consumo de forma justa e ética. É preciso delinear ações responsáveis de visibilidade na circulação e mercantilização do artesanato, o inserindo em novas práticas que configuram as contemporâneas sociedades complexas, no entanto, sem descaracterizá-lo e abandonar tradições e identidades.

Valores idealizados e materializados na produção acabam por ser (re)articulados na esfera da circulação e traduzidos no consumo, mediante um processo social e cultural de significação. Aproximando o produtor e consumidor, a exclusividade pode dar lugar à autenticidade (uma categoria que pode evocar a tradição, cultura e diferença, que reveste o objeto de uma aura). Simmel, já no alvorecer do século XX, apresentou argumentações sobre políticas de valor das coisas. Apontou que objetos têm valor porque são trocados, e que este valor não está nas propriedades das coisas em si, mas em julgamentos que sujeitos tecem sobre estas a partir do que lhes é apresentado53.

O artesanato, como o define Paz54, sendo mediação, não é condenado à eternidade nem ao descarte precoce. Performatiza e corporifica diálogos entre forma e função, sujeito e objeto, configurando-se como “pulsação do tempo humano”. Não pretende ser singular como a obra de arte e nem massificado e anônimo como o objeto industrial, usualmente, configura-se. Sua utilidade coaduna-se com a estética e, assim, assume valores distintos em sua trajetória biográfica, em uma presença que “vive em cumplicidade com os nossos sentidos”, transgredindo a lógica da utilidade. Uma cesta planejada para transportar alimentos passa a suporte para flores ou peça de decoração,

52 GONÇALVES, Isabel, membro da diretoria do CNARTS. Disponível em: http://www.agenciasebrae.com.br/noticia. Acesso em: 09 set. 2009.

53 SIMMEL, G. The Philosophy of Money. London:Routledge, 1979, p. 63. 54 Idem.

compondo arranjos que interrompem o significado original do artefato pelo acionamento de desvios provocados pela imaginação.