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CONCEITOS E CONTEXTOS: MAPEANDO O ARTESANATO COMO PROCESSO

1.3 Tradição, identidades e estilos de vida

Para problematizar certa fixidez de conceitos sobre o artesanal, a exemplo daqueles que caracterizaram movimentos de museologização e de preservação, ocorridos principalmente a partir da década de 1950 no Brasil, concordo com Scott65 ao enfatizar a importância de considerarmos as relações entre discurso, cognição e o que entendemos por “realidade”, pois, face às tensões que há na tradição, não podemos rotulá-la como algo fixo, mas como repertórios dinâmicos de

63 CANCLINI, Néstor G. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997, p. 206.

64 Ibidem. 65

SCOTT, Joan. Experiência. In: SILVA, Alcione Leite da; LAGO, Mara Coelho de Souza; RAMOS, Tânia Regina Oliveira (orgs.). Falas de Gênero: teorias, análises, leituras. Florianópolis: Mulheres, 1999, p. 21-55.

significados, historicizados e em “relação dialógica com o „outro‟”. Existe, em estruturas de narrativas oficiais, uma tendência a compor relações entre passado e presente para reforçar identidades de comunidades ou Nações, por meio de diálogos, consensos e acordos. Entretanto, a característica cíclica, plural e local do artesanato acaba por revelar, também, espaços de conflitos e disputas que promovem a diversidade.

As histórias de algumas indústrias brasileiras, que narro na tese, demonstram como movimentos de aparente achatamento de saberes pelo domínio da técnica e processos de modernização são apropriados como práticas de atualização e não determinam, necessariamente, a morte de saberes e tradições. Começo descrevendo como estas histórias têm raízes na “invenção” da Nação brasileira.

Nossa história começou a ser “inventada” pelos portugueses, a partir de 1500 e, posteriormente, por outras etnias de imigrantes, objetivando difundir uma ideologia que fundamentasse os interesses de quem detinha o poder, no caso, os europeus. O “Mito Fundador”, segundo Chauí, representa uma repetição, às vezes com novas roupagens, de um “passado como origem”, para solucionar pelo imaginário o que não é resolvido na realidade. Como coloca a autora, são estas representações ideológicas que levam algumas pessoas a afirmar, por exemplo, que:

Os índios são ignorantes, os negros são indolentes, os nordestinos são atrasados, os portugueses são burros, as mulheres são naturalmente inferiores, mas, simultaneamente, declarar que se orgulha de ser brasileiro porque somos um povo sem preconceitos e uma nação nascida da mistura de raças [...] Se indagarmos de onde proveio esta representação e de onde ela retira sua força sempre renovada, seremos levados em direção do mito fundador do Brasil, cujas raízes foram fincadas em 1500.66

As ideologias dominantes apropriam-se desses mitos construídos e, de acordo com o momento histórico e as conveniências, os reordenam e usam de novas linguagens e valores, reproduzindo-os

66 CHAUÍ, Marilena. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2004, p. 8 e 9.

indefinidamente. Existem “semióforos”67

construídos pelo poder político, sendo fundamental a idéia de „Nação” como o elemento integrador da sociedade68. A Nação paranaense tem sua origem histórica ligada ao elemento europeu como construtor da modernidade que alavancou o desenvolvimento do Estado, implantando as primeiras indústrias locais no final do século XIX.

Representações como essas foram construídas histórica e culturalmente, de tal forma enraizadas no imaginário da sociedade, que transformaram um mito em realidade. Como a maioria das indústrias moveleiras surgiu com os imigrantes, mitos de uma superioridade racial européia contribuíram, em certa medida, para manter por muitos anos o controle das indústrias da Região Sul do Brasil, principalmente nas mãos de imigrantes alemães e italianos.

Pude perceber este movimento de valorização da tradição, para manter uma identidade em práticas de comunidades, pesquisando nas regiões do Vêneto e Friuli, norte da Itália, local de proveniência dos imigrantes italianos do sul do Brasil e, principalmente em Santa Felicidade, Curitiba, local aonde esses últimos fixaram residência. A distância da terra de origem promoveu junto a esses imigrantes um movimento de preservar aquilo que veio com os ancestrais. Assim, são promovidos festivais, festas e cursos que mostram o artesanato, folclore e tradições para aproximar passado e presente, o local e o distante, (re)afirmando um pertencimento deslocalizado.

Sujeitos, por sua vez, buscam borrar fronteiras do espaço e tempo, inserindo a tradição em um constante renovar e reinterpretar do passado, que pode até ser recente. Sobre esta identificação e modernização da tradição, Renato Ortiz coloca que:

Normalmente, quando falamos de tradição nos referimos às coisas passadas, preservadas ao longo da memória e na prática das pessoas. Imediatamente nos vêm ao pensamento palavras como folclore, patrimônio, como se essas expressões conservassem os marcos de um tempo

67 Semióforos são signos carregados de força simbólica, dando significação à existência da sociedade, como algo comum a todos, único, relacionando o visível e o invisível e assegurando uma unidade indivisa. (CHAUÍ, 2004).

68 Esta temática da construção da Nação brasileira, bem como o processo de construção da identidade paranaense a partir de projetos de “invenção da tradição”, narro com detalhes em minha dissertação de mestrado: MENDES, Mariuze Dunajski, A Fragmentária História da

Fábrica de Móveis Martinho Schulz: tradição e modernidade na produção artesanal com

fibras de Curitiba. Curitiba: Programa de Pós-Graduação em Tecnologia da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, 2005.

antigo que se estende até o presente. Tradição e passado se identificam e parecem excluir radicalmente o novo. Poucas vezes pensamos como tradicional um conjunto de instituições e de valores que, mesmo de uma história recente, se impõe a nós como uma moderna tradição, um modo de ser69.

Entendo que a tradição é um processo em reestruturação constante, na interação do local com o global, alinhavada por conflitos e acordos, sendo que “culturas híbridas” redefinem percepções de nação, povo e identidade. Este hibridismo, para Stuart Hall70 (que, sobre esta questão dialoga com Bhabha71) não consiste em uma mescla racial, mas em um “processo de tradução cultural, agonístico, uma vez que nunca se completa...”, contempla dissonâncias em relações de proximidade, “disjunções de poder ou posições a serem contestadas; os valores éticos e estéticos a serem „traduzidos”.

Hibridismo, sob esta ótica, pode ser considerado como estratégia de negociação de diferenças. Diferenças estas que, se camufladas sob a unidade de uma nação imaginada e não performatizada e vivenciada pelos sujeitos, acaba mascarando conflitos e discriminações, legitimando relações de poder e políticas de dominação. Identidade cultural, a partir dessa concepção, não pode ser única, pois consiste em processos de significação e enunciação em redefinição contínua.

O processo artesanal de móveis em fibras, a partir do final do século XIX, traduz-se neste cenário de contradições, hibridações, manutenção de tradições, inserção na modernidade, conflitos e aproximações entre o local e o global. Nestas negociações interculturais que o fazer artesanal desenvolve-se, resiste e transforma-se. Esta discussão contempla a historicidade e diversidade de projetos relacionados a estilos de vida, que percorrem um longo caminho de significação com continuidades e descontinuidades nas práticas de vida e na cultura do consumo.

Por estilo de vida, em concordância com o conceito defendido por Miller72, defino o processo por meio do qual pessoas imprimem

69 ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 207.

70 Hall, Stuart, Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representações da UNESCO no Brasil, 2003, p.75.

71 BHABHA, Homi. O Local da cultura. Belo Horizonte: EDUFMG, 2007. 72 MILLER, Daniel. Stuff.Cambridge: Polity Press, 2010.

sentido ao usar e organizar “coisas” (objetos, vestimentas, adornos, móveis,...) que materializem suas existências em dados momentos de suas trajetórias de vida. Este processo é dinâmico, individual, mas, referenciado em habitus73, culturas e práticas comunitárias. O sentido é dado não só por o que o sujeito usa, mas em como usa, englobando, assim, também aspectos imateriais, como corporeidades, gestos, falas e performances.

Para Bell e Hollows74, há uma diversidade de pensamentos na discussão dos estilos de vida, que possuem como entendimento comum “que o estilo de vida é agora central na organização e experiência do cotidiano” e que as ideias específicas sobre os estilos de vida devem ser articuladas em condições “mediadas em momentos particulares e contextos específicos”.