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CONCEITOS E CONTEXTOS: MAPEANDO O ARTESANATO COMO PROCESSO

1.2 Trajetórias sociais de artefatos em contextos temporais e espaciais

Ao analisar as trajetórias de artefatos em sociedades complexas, começo por enunciar culturas não só em relação a contextos simbólicos da sociedade, mas nos conflitos que possibilitam a mobilidade social, pelas lutas de classes e interações culturais, pois, segundo Santos55,

não é algo natural, não é uma decorrência de leis físicas ou biológicas. Ao contrário, a cultura é um produto coletivo da vida humana (...) Cultura é um território das lutas sociais por um destino melhor. É uma realidade e uma concepção que precisam ser apoiadas em favor da luta contra a exploração de uma parte da sociedade por outra, em favor da superação da opressão e da desigualdade.

Neste terreno das múltiplas influências, interações culturais e lutas de classes que se constituem as culturas populares. Estas, antes de serem apenas o que as massas consomem ou o conjunto de “coisas” que o povo faz, podem ser definidas como “as formas e atividades cujas raízes se situam nas condições sociais e materiais de classes específicas, que estiveram incorporadas nas tradições e práticas populares”, em uma tensão contínua com a cultura dominante 56.

Esta definição aponta para o caráter histórico e dialético das culturas, pois é nas contradições das classes populares e do bloco dominante que se dá a luta de classes e, através de alianças, o popular se impõe como resistência e luta, estando, portanto, as culturas sempre em transformação.

Contemporaneamente, diante da relativa instabilidade e movimentos cotidianos que perpassam a questão de identidades, artefatos entram num ciclo de significação, com permanências e deslocamentos que delineiam múltiplas trajetórias. Estas se assentam em rotas - trajetórias de longa duração na existência social (costumes, hábitos, tradições) - e desvios - que representam interesses individuais ou de grupos em apropriações e/ou (re)significações criativas (mediadas

55

SANTOS, José L. O que é Cultura. 14ª ed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1996, p. 45. 56 HALL, Stuart. Da Diápora: Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representações da UNESCO no Brasil, 2003, p. 257.

por projetos coletivos, estilos de vida, movimentos da moda, entre outras variantes sociais e culturais).

Traduções convertem-se em biografias que ligam pessoas a coisas, dando sentido a pertenças a mundos e estilos de vida que, por sua vez, também são dinâmicos e atualizados continuamente. Por haver mobilidade e zonas intermediárias em diferentes momentos da vida da sociedade, a mercadoria não apresenta uma característica essencial e imutável, senão fases na vida de artefatos. O processo de (re)significação do artesanato, contemporaneamente, é permeado pelo conceito de inacabado, de transformações, mas também de permanências, diante de uma pluralidade de memórias e histórias com as consequentes inovações e reinvenções.

Estes movimentos de rotas e desvios promovem processos de mercantilização e desmercantilização. Arjun Appadurai comenta, por exemplo, que as artes rituais desviadas para o turismo em lugarejos típicos, a estética da descontextualização da produção artesanal e de artefatos são impulsionadas pela novidade, podendo ser traduzidas, principalmente, “pela moda, ostentação doméstica e coleções”57

.

Neste ponto, para iniciar um percurso que envolve conceitos de tradição, metamorfoses e projetos de identidades, considero importante apontar uma distinção adotada por Bakhtin58 das perspectivas de longa temporalidade e de curta temporalidade que irei adotar como referência para pensar as questões históricas e para as análises sobre o artesanato em circuitos de (re)significação. Pode-se associar a curta temporalidade aos desvios (a exemplo de ciclos da moda) que permitem entender aspectos e teorizações mais imediatas. A longa temporalidade, por sua vez, é fruto de reflexões maiores, de uma rota muitas vezes “dispersa, difusa, heterogênea e não necessariamente contínua, que se estende no tempo, isto é, não começa com as teorizações de hoje, nem nelas se esgota”59

.

Principalmente quando o objeto de estudo é algo ligado às tradições, como o artesanato, a análise a partir do conceito de longa temporalidade nos permite compreender como as gerações constroem conhecimentos que são repassados e transformados nas relações com os outros, em espaços e tempos cronotópicos. Considerando periodizações

57 APPADURAI, A. A Vida Social das Coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: EdUFF, 2008, p. 45.

58 BAKHTIN, M. M. Questões de Literatura e de estética: A teoria do romance. São Paulo: Hucitec, 2002.

59 FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e Diálogo: as idéias lingüísticas do círculo de Bakhtin. Paraná: Criar Edições, 2003, p.127.

históricas, Bakhtin aponta que pode haver um grande cronotopo englobador e vários cronotopos que “podem se incorporar um ao outro, coexistir, se entrelaçar, permutar, confrontar-se, se opor ou se encontrar nas inter relações mais complexas. O seu caráter geral é dialógico”60

. Assim, ao analisar identidades, relações de produção, circulação, consumo e estilos de móveis, parto do pressuposto de que todas as relações sociais, econômicas e históricas estão profundamente imbricadas entre si e ligadas pela longa e curta temporalidade.

As atividades conhecem recorrência, mas também têm dimensões novas em cada contingência. Para compreendê-las (e para envolver-se nelas de modo significativo), é fundamental estabelecer contínuas inter- relações entre o que recorre e a singularidade; entre o dado e o novo; entre o arquivo e o acontecimento (evento); entre a memória e o momento61.

Configura-se um tempo idílico no artesanato, que em um determinado contexto histórico e social acaba sofrendo atenuações dos seus limites temporais, diluídos ao longo das gerações, estabelecendo um “ritmo cíclico” de longa duração. O mundo capitalista busca romper esta integridade da existência idílica, separando as pessoas, massificando, mecanizando e parcelando o trabalho. O tempo orgânico, da vida em harmonia com a natureza, é contraposto ao tempo fragmentado e abstrato da vida regrada pelo capitalismo62, uma das causas da crise de insustentabilidade contemporânea.

A tradição, definida, usualmente, como memória social de um povo, quando em diálogo com conceitos de modernidade e inovação, aparentam ser opostos. No entanto, devemos considerar estes conceitos sempre contextualizados, pois não há tempo, espaço, desenvolvimento (social, cultural, econômico, político), dentre outras dimensões da vida, lineares e homogêneos. O que é inovação em um determinado contexto, pode não ser em outro.

A constituição de projetos capitalistas na modernidade pode carregar em si uma tendência a construir “oposição maniqueísta” entre: moderno e tradicional; culto e popular; hegemônico e subalterno, sendo usualmente o artesanato situado como uma prática tradicional, de classes populares e subalternas. Estes confrontos são, segundo Néstor

60

BAKHTIN, M. op.cit, p. 336. 61 FARACO, C. A. op.cit., p. 114. 62 BAHKTIN, M. op.cit., p. 334 e 336.

Canclini63, uma separação artificial que devemos refutar, já que servem para legitimar as posições dos excluídos do processo, naturalizando-as. Apesar das análises de Canclini serem relativas ao artesanato economicamente situado em esfera diferente da prática das indústrias de móveis artesanais que pesquisei, as bases são importantes para pensar estas dinâmicas de modo mais abrangente.

Ao transitar entre tradição e modernidade, o artesanato insere-se em práticas dinâmicas, frente ao mundo capitalista, possibilitando uma reestruturação e transformação do popular, que se insere no moderno, se hibridando. Novamente, ressalto que esse processo não se dá em um sentido evolutivo - como se manifestações populares fossem desaparecer ou práticas tradicionais, ao modernizarem-se, tornar-se-iam completamente industrializadas - mas, em possibilidades de “entrar e sair da modernidade”, como aponta Canclini64

. Há uma coexistência, que iremos perceber, se fizermos as análises focadas nos processos e não só nos produtos, contextualizando-os na lógica de relações sociais.

Assim, quando falo em tradição e modernidade, as considero como uma construção a partir dos ideais, utopias e imaginários do povo, em relações de poder, entre conflitos e negociações, que ocorrem nas fronteiras, em práticas concretas de “comunidades” que as legitimam. Nas pesquisas sobre móveis artesanais trançados em fibras pude perceber que as entradas e saídas da modernidade são formas de garantir a sobrevivência de tradições de comunidades e, ao mesmo tempo, espaço no mercado, adequando produtos a novas visualidades, sociabilidades e projetos de identidades.