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AS ORDENS DE DERVIXES DA TURQUIA FRAGMENTOS DE UM DIÁRIO DE CAMPO

24 de março de 1996 08 h.: 45 min Domingo.

No trem, a caminho de Konya.

(Finalmente estava indo para o lugar, que, pela lógica, seria onde efetivamente eu faria o trabalho de campo: Rumi vivera em Konya, lá estava o seu museu, a sua história, e também deveria estar a Ordem Mevlevi que eu tanto almejava encontrar...)

Cheguei em Konya ao meio-dia. Saltei do trem, caminhando um pouco pela neve, tomei um táxi, e vim para a “Karavan”, a loja de tapetes do Asim (a única pessoa da Turquia que eu j á tinha o endereço antes de sair do Brasil), que fica na Mevlana Caddesi (Rua Mevlana). (Na Turquia, Rumi é mais conhecido por Mevlana.)

Fui recebida com um sóbrio, mas caloroso “wellcome.” Começamos a conversar na entrada, e aos poucos fomos indo mais para dentro da loja, indo sentar-nos numa salinha coberta

por tapetes (chão, teto, almofadas, tudo) por todos os lados. Falamos sobre a minha experiência em Istanbul, sobre quanto tempo eu pretendia ficar em Konya, quanto podia gastar, o que exatamente queria fazer. Depois de alguns minutos de conversa, Asim disse que eu não me preocupasse, que ajeitaria tudo para mim. Deixou-me na loja, voltando, instantes depois, com tudo resolvido: eu ficaria num hotel, de nome Sarna, com uma diária bastante generosa, e praticamente ao lado da “Karavan”. (A hospitalidade na Turquia é algo que às vezes nos deixa até envergonhados.)

Fui para o hotel, instalei-me, tomei um banho, descansei um pouco e voltei para a “Karavan”. Asim entregou-me um mapa com a indicação dos lugares que devo visitar aqui (museus, madrasas, tumbas, etc.), bem como informou-me a respeito das regras de comportamento local, indicando-me a maneira mais conveniente de portar-me. Por exemplo, disse-me para nunca demonstrar conhecimento sobre Sufismo, principalmente se estivesse diante de um muçulmano radical. Sugeriu que eu sempre me colocasse na posição de estudante, interessada, ou buscadora, conforme a situação. Aconselhou-me, no caso de alguém colacar em dúvida o que sou ou vim fazer aqui, que resumisse a minha resposta a “God knows”. (Uma resposta simples, mas eficiente, como pude verificar inúmeras vezes depois. Quando se está entre pessoas que acreditam que o único que pode verdadeiramente julgar, o que quer que seja, é Deus, colocar a responsabilidade nas mãos Dele pode ser uma saída para situações embaraçosas.)

Depois de um certo tempo, entrou um homem velho na sala, ao qual Asim referiu-se como “este homem é um segredo, é um segredo este homem.”

(Este fo i o primeiro de 33 dias que fiquei em Konya, com uma pequena pausa entre os dias 14 e 21 de abril, quando fui para a costa do Mediterrâneo tirar umas férias e recuperar, o “estranhamento antropológico", o distanciamento do objeto, perdidos, uma vez mais, pelo excesso de proximidade.

A “Karavan ” passou a ser quase um segundo “campo ”. Os mais diferentes tipos de pessoas por ali passavam todos os dias: vendedores de tapetes e quinquilharias, colecionadores de Kilins, turistas estrangeiros, viajantes, contadores de casos, e, como não poderia deixar de ser, alguns dervixes.

Disciplinei-me para fazer meu trabalho - visitar museus, lugares históricos, fotografar, procurar livros, documentos - na parte da manhã. Depois almoçava e ia para a loja ler,

J

escrever, contactar as pessoas. Ficava até o sol se pôr, e retornava para o hotel, onde jantava, e, em seguida, ia para o quarto, trabalhar o material coletado durante o dia. De um modo geral.

era assim, embora sempre acontessessem coisas imprevisíveis, inusitadas, que alteravam e temperavam a ordem do dia.

Asim me disse que não havia Ordem Mevlevi em Konya. Que havia apenas um grupo profissional, pago pelo governo, para fazer apresentações de Sarna, o que me deixou muito desapontada. Falou que eu poderia encontrar alguns dervixes, dentre eles, mas que, Ordem mesmo, tekkya, mestre, isso não tinha mais.

Um dia, lembrei-me que tinha um número de telefone, que um dos estrangeiros que estavam naquela reunião, na casa do velho Ibrahim, em Istanbul, havia me dado para contactar em Konya. Tratava-se de Nihat Uycm, alguém, que segundo meu informante, poderia me apresentar um Sheik sufi.

Procurei por Nihat, pela primeira vez, no dia 03 de abril, marcando uma entrevista para o dia seguinte, quando então fui até sua casa, sendo recebida por ele e a esposa. Mostrou-me uma fita-cassete de uma reunião gravada na “Sirri Vakfi", uma fundação sem fins lucrativos, uma espécie de tekkya, o lugar que ele me levaria uns dias depois, para conhecer o Sheik Nuri Baba, e assistir a uma cerimônia informal. Fiquei contente com a possibilidade de assistir a uma “reunião sufi" em Konya, embora soubesse que ainda não era o lugar que eu estava procurando, o ponto certeiro e preciso da minha intenção de trabalho. M as achei que poderia

ser positivo.

Fomos visitar Nuri Baba no dia 13 de abril, dez dias depois. Era sábado. O lugar, muito simples, era uma pequena casa ao lado do museu Mevlana. Entramos, e logo fui conduzida para a sala aonde estavam as mulheres. Uma senhora me serviu chá, procurando deixar-me mais a vontade. A porta da salinha fo i deixada aberta, de modo que pudéssemos assistir o que os homens fariam na sala da frente. E assim foi. Eles fizeram zikr, alguns músicos acompanharam o exercício, e dois dervixes giraram no centro da roda. Quando acabou, Nuri Baba veio até a salinha, juntamente com um tradutor, um médico de nome Ahmet Arslan, com quem conversei longamente sobre as etnias que povoaram a Asia, e sobre as semelhanças entre os povos da Ásia Central e os indígenas da América. Nuri Baba estava num ótimo humor, e ria mais do que falava, oferecendo frutas aos visitantes. Lembro-me de uma garota alemã que disse que não estava com fome, ao passo que ele respondeu que nunca se deve negar a comida que vem de um Sheik.

Não tenho esse dia registrado no diário de campo, pois, no dia 11 de abril, havia decidido parar de escrever por três dias. Precisava parar...)

Konya, 11 de abril de 1996. 23 h.: 50 min. Quinta-feira. A Parada do Tempo

Faço agora um propósito de parar de escrever por três dias: sexta, sábado e domingo. Parar o Tempo! Stop!: