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Capítulo 1 – Duas palavras sobre Circulação simples

3. Marx e o Método da Economia Política

A resposta ao problema da referência histórica das categorias da circulação simples deve levar em conta além dos diversos níveis em que esta doutrina é exposta, isto é, os textos de Para a Crítica da Economia Política, Os Grundrisse, O Capital, etc., deve também ser capaz de articular em seu interior os as categorias centrais da circulação simples, a saber, o trabalho abstrato e o valor. Procuramos em outro lugar38 dar esta resposta de conjunto. Retomamos e ampliamos agora apenas uma resposta metodológica. Para tanto é preciso ainda uma vez recorrer ao Método da Economia Política39.

Portanto, vejamos o que nos diz o texto do Método. Ele parte justamente da pergunta: por onde deve começar a exposição do sistema da Economia Política? Deve-se partir do concreto ou do abstrato? E qual a relação deste concreto e deste abstrato iniciais com a história? Marx inicia admitindo que “parece correto começar pelo real e pelo concreto”, em nossa questão, poderia então parecer correto começar pelo concreto capitalista; pela teoria do “capital como totalidade” , da concorrência inter-capitais, e, por conseguinte, dos preços de produção e não da teoria do valor. Contudo, completa Marx: “a uma consideração mais precisa, porém, isso se revela falso”. Partindo do concreto representado chega-se apenas a abstrações simples, mas tal representação do todo seria caótica. Este foi, contudo, o caminho tantas vezes trilhado pela economia política:

Os economistas do século XVII que, sempre começam por um todo vivo (mit dem

lebendigen Ganzen) – produção, nação, Estado, vários estados, etc. – mas sempre

terminam por algumas relações gerais, abstratas, determinantes (einige bestimmende

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Conferir “Os Elementos do Problema”, in ÁZARA, A circulação simples como epiderme da experiência

capitalista, 2007.

39 Rubin, que se esquiva de criticar Engels, limita-se, ao tocar no problema, a saudar o fato de que “agora

temos outras obras de Marx ao nosso alcance”, refere-se posteriormente a esta mesma seção da Introdução [à

Crítica da Economia Política] de 1857 e também às Teorias do Mais-Valor, e completa: “agora sabemos

que o próprio Marx opunha-se vigorosamente à idéia de que a lei do valor esteve em vigor no período precedente ao desenvolvimento do capitalismo”. De agora em diante citaremos o Método da Economia

Política com a abreviação M, seguida da paginação da tradução para o português de Fausto Castilho de 1996,

as referências ao texto dos Grundrisse se abreviam com a letra G, seguida da paginação da Marx e Engels

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abstrakte, allgemeine Beziehnung) – divisão do trabalho, dinheiro, valor, etc. que eles

descobriam por análise40.

Pensa Marx que o método cientificamente correto é o oposto direto deste caminho de tradição empirista. Assim deve-se partir “dos elementos simples”, no nosso caso, da mercadoria, do trabalho abstrato e do valor, para se chegar ao final ao concreto, à teoria do capital como totalidade. Em uma palavra, é impossível partir do concreto, pois “o concreto é concreto por ser uma concentração de muitas determinações, logo, uma unidade do múltiplo”41. É certo que do ponto de vista da crítica o todo concreto é sempre pressuposto, já como resultado do “método de pesquisa”42. Contudo ao se iniciar a exposição parte-se do abstrato ao concreto como forma de “apropriar-se do concreto e o reproduzir como concreto espiritual”43. Assim fica estabelecido que deve-se partir, na exposição, do abstrato, do simples44. A seção que abre O Capital, analisando a forma elementar da riqueza capitalista a partir da oposição intrínseca que a constitui, parece atender a este requisito. Mas resta ainda responder a relação do começo com a história.

Marx apresenta a questão nos seguintes termos: “mas, acaso estas categorias simples não tem também uma existência independente, seja histórica, seja natural, anterior a existência das mais concretas?”45 E responde: “ça dépend”. Esta resposta é fundamental por colocar em questão um suposto básico da tese de Engels, aquele que diz respeito a uma

correspondência entre exposição e desenvolvimento histórico. As categorias podem ou não

ter uma existência prévia ao sistema social que lhes confere sentido. Por exemplo, o trabalho e o valor podem ter uma existência “antediluviana”, mas esta existência não é fundamental para o problema da exposição. Marx utiliza o exemplo paradoxal do trabalho, uma categoria “antiqüíssima”, e ainda assim “uma categoria tão moderna quanto as relações que produzem esta abstração simples”, e completa:

40 G, p. 632, M, p. 9.

41 “Das Konkrete ist konkret, weiles die Zusammenfassung vieler Bestimmungen ist, also Einheit des

Mannigfaltigen.” Idem.

42 “É, sem dúvida, necessário distinguir o método de exposição formalmente, do método de pesquisa. A

pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão íntima. Só depois de concluído este trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real”.

C, I, p. 21.

43 G, p. 632; M, p. 9.

44 “No primeiro caminho, toda a representação se desvanece em determinação abstrata, ao passo que, no

segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto no plano (im Weg) do pensamento”. Idem.

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O exemplo do trabalho mostra, de modo convincente, que, embora possuam validade em todas as épocas, - em virtude justamente de sua abstração, - mesmo as categorias mais abstratas, na determinidade de sua abstração, são um produto das relações históricas e só possuem plena validade (ihre Vollgültigkeit) para tais relações e no seu interior46.

Agora somos informados das razões que levam a pesquisa a considerar como indiferente saber da existência prévia ou não das categorias. É que o fundamental ou determinante na exposição da categoria não é sua antiguidade, mas seu papel na sistemática econômica que se pretende analisar. A mercadoria, por exemplo, não é exposta a partir de uma etiologia que a elevou ao papel central nos começos do capitalismo, mas antes e exclusivamente por seu lugar no sistema do capital tal como presente nas sociedades de capitalismo mais avançado. É seu papel sistemático e não sua prioridade histórica que a torna o ponto de partida de O Capital. Marx expressa seu pensamento mediante uma metáfora formidável: “a anatomia do homem é uma chave para a do macaco”47. A sociedade burguesa, (Die bürgerliche Gesellschaft) como organização historicamente mais desenvolvida e a mais múltipla, tem a “chave” interpretativa que pode conferir sentido efetivo mesmo às categorias que a precederam no tempo. Aceitar a tese de Engels é pensar ao arrepio do método aplicado em O Capital que o pré-capitalismo é a chave para que se entenda o capitalismo.

O Método nos ensina, portanto, que se deve partir, na exposição, do abstrato para se

chegar, como a um resultado, ao concreto. Deve-se partir da circulação simples para se chegar ao capital como tal. Assim entendido torna-se sem sentido a objeção que consiste em comparar a teoria ao nível da circulação simples do Livro I com aquela dos preços de produção ao nível do Livro III, ou como sumariou Rubin:

A teoria do valor-trabalho e a teoria dos preços de produção diferem uma da outra, não como diferentes teorias que funcionam em diferentes períodos históricos, mas como uma teoria abstrata e um fato concreto, como dois graus de abstração de uma mesma teoria da economia capitalista48.

46 G, 636, M, 17.

47 “Anatomie des Menschen ist ein Schlüssel zur Anatomie des Affen”. G, 636, M, 17.

48 Segue o texto: “A teoria do valor-trabalho pressupõe apenas relações de produção entre produtores de

mercadorias. A teoria dos preços de produção pressupõe, além disso, relações de produção entre capitalistas e operários, de um lado, e entre diversos grupos de capitalistas industriais, de outro.” Op. cit, p. 276.

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Os três livros de O Capital têm um único objeto: a moderna sociedade burguesa, vista sob níveis crescentes de concreção. Certamente que na circulação simples a moderna sociedade burguesa “como tal” está apenas pressuposta. O que está posto são os agentes da troca, entendidos como contratantes livres e iguais. Na circulação simples, como temos defendido, está o capitalismo como este nos aparece em sua epiderme, desse modo, as categorias ao nível da primeira seção do livro primeiro “só exprimem aspectos particulares e isolados dessa sociedade determinada, deste sujeito”49. Marx é categórico ao afirmar que “é preciso ter presente e de modo firme”, que “também do ponto de vista científico, de maneira nenhuma ela [a moderna sociedade burguesa] só começa no momento em que se fala dela como tal”. Isto é, a moderna sociedade burguesa está pressuposta mesmo quando abstrai-se dela determinações fundamentais, como ocorre na circulação simples. É certo que o capitalismo como tal corresponde à teoria como é exposta nos Livros II e III, mas nem por isso está ausente, como pressuposição, já na seção que abre a obra, pois “o capital é a força que a tudo domina na sociedade burguesa. Deve constituir tanto o ponto de partida como o de chegada”50.

Se nossa argumentação é ainda insuficiente em provar a tese que a sustenta, Marx mais uma vez não deixa dúvidas sobre o método adequado de exposição das categorias:

Seria, além de impossível, falso, ordenar as categorias econômicas na sucessão em que foram historicamente determinantes. Sua ordem é antes determinada pela relação que elas mantêm entre si, na sociedade burguesa moderna, precisamente o inverso do que parece ser a sua ordem natural ou a correspondente sucessão do desenvolvimento histórico. Não se trata da relação que se estabelece historicamente entre as relações econômicas na sucessão das diversas formas de sociedade [...] e sim de sua articulação no interior da sociedade burguesa moderna51.

É assim que encerrando este pequeno “ensaio” metodológico de 1857, que não publicou, Marx divide a matéria que deveria compor sua obra52 iniciando exatamente pelas “determinações gerais abstratas que convém, por isso, mais ou menos, a todas as formas de sociedade, porém, no sentido exposto anteriormente”53. É nesse sentido que não restam

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“Nur einzelne Seiten dieser bestimmten Gesellschaft, dieses Subjekts, ausdrüken”. G, p. 637, M, p. 19.

50 G, p. 638, M, p. 21. 51 Idem.

52 Para uma discussão pormenorizada do plano original e suas modificações por parte de Marx, remetemos o

leitor ao segundo capítulo de “Gênese e Estrutura de O Capital de Karl Marx”. Op. cit.

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dúvidas de que “O Capital é aberto pelas “determinações gerais abstratas” que embora possam ter uma existência antediluviana, são apenas plenamente desenvolvidas e plenamente inteligíveis no modo de produção burguês moderno. Para Marx, como fica claro, não se trata de expor o conteúdo da matéria na ordem de sua aparição e vigência na história. No problema que nos ocupa aqui, Marx não faz, na Seção I de sua obra principal, uma apresentação das formas que historicamente precederam o capital e muito menos um acompanhamento do período pré-capitalista no qual a lei do valor se dava nos marcos da circulação simples. Ao contrário, inicia-se pela mercadoria, pelo trabalho abstrato e pelo valor devido à posição que estes ocupam na sociedade burguesa moderna. Não se trata de uma fenomenologia histórica, nem tampouco de história do aparecimento das categorias. Nas palavras do próprio Marx: “Trata-se da sua hierarquia no interior da moderna sociedade burguesa”54.