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1.3.3 – O marxismo e humanismo teórico

Para Althusser, o marxismo enquanto teoria, enquanto materialismo histórico, surge como teoria anti-humanista, teoria que representou o rompimento definitivo com a esquerda hegeliana. A teoria anti-humanista de Marx é um dos elementos que constitui o corte epistemológico em sua obra, portanto, como já citado, é nos manuscritos de “A Ideologia Alemã” o momento definitivo de ruptura com a filosofia clássica alemã e a formulação de uma nova concepção de ver o mundo, a concepção materialista da história. Marx, fazendo alusão ao encontro com Engels em Bruxelas, refere-se aos escritos da “A Ideologia Alemã” em seu livro

“Contribuição à crítica da economia política”, escrito em 1859, afirmando o objetivo do texto de 1845:

... na primavera de 1845, veio se estabelecer também em Bruxelas, resolvemos trabalhar em conjunto, a fim de esclarecer o antagonismo existente entre a nossa maneira de ver e a concepção ideológica da filosofia alemã; tratava-se de fato, de um ajuste de contas com a nossa consciência filosófica anterior. Este projeto foi realizado sob a forma de uma crítica da filosofia pós-hegeliana. O manuscrito, dois grandes volumes in-octavo, estava há muito no editor na Vestefália, quando soubemos que novas circunstâncias já não permitiam a sua impressão. De bom grado abandonamos o manuscrito à crítica corrosiva dos ratos, tanto mais que tínhamos atingido o nosso fim principal, que era enxergar claramente as nossas idéias.27

A leitura que Althusser faz dessa ruptura, ou corte epistemológico, no pensamento de Marx e Engels, significou o rompimento com toda a tradição humanista teórica, em especial com o humanismo teórico de Feuerbach.

Feuerbach "abre o jogo", se ele coloca decididamente a essência humana no centro de tudo, é porque acredita poder enfim escapar à razão que fazia com que os filósofos clássicos dissimulassem o homem, distribuindo-o em vários sujeitos. Esta divisão do homem (digamos para simplificar) em dois sujeitos, o sujeito do conhecimento e o sujeito da ação, que marca a filosofia clássica, impedindo-lhe a declaração fantástica de Feuerbach, que acredita poder reduzí-la: ele substitue a pluralidade dos sujeitos pela pluralidade de atributos no sujeito humano. E ele acredita poder resolver um outro problema politicamente importante, a distinção entre o indivíduo e a espécie, pela sexualidade que suprime o indivíduo uma vez que necessita de pelo menos dois deles, o que já é uma espécie. O que quero dizer é que, pela maneira de agir de Feuerbach, vê-se o que estava em questão antes dele: já era o homem, embora dividido entre vários sujeitos, e dividido entre indivíduo e espécie.

Conseqüentemente o anti-humanismo teórico de Marx vai muito mais longe que um simples acerto de contas com Feuerbach: coloca em questão, ao mesmo tempo, as filosofias da sociedade e da história existentes, e a tradição filosófica, e portanto, através delas, toda ideologia burguesa.28

Sobre a defesa da teoria anti-humanista de Marx e da fundação de um novo continente do conhecimento, a ciência da história, Althusser afirma que esse momento só foi possível com o rompimento de Marx com o humanismo teórico.

... a pretensão teórica de uma concepção humanista de explicar a sociedade e a história, a partir da essência humana, do sujeito humano livre, sujeito das necessidades, do trabalho, do desejo, sujeito da ação moral e política. Eu afirmo que Marx só pôde fundar a ciência da história e escrever O Capital sob a condição de romper com a pretensão teórica de todo humanismo desse gênero.

Contra toda a ideologia burguesa, imbuída de humanismo, Marx declara: "Uma sociedade não é composta de indivíduos" (Grundrisse), "Meu método analítico não parte do homem, mas do período econômico dado" (Notas sobre Wagner), e contra os socialistas humanistas e marxistas que tinham proclamado no Programa de Gotha que "o trabalho é a fonte de todo valor e de toda riqueza", ele afirma: "Os burgueses têm excelentes razões para atribuir ao trabalho esta onipotência de criação." Podemos conceber uma ruptura mais nítida?

Podemos ler seus efeitos em O Capital. Marx mostra que o que determina em última instância o conhecimento, não é o fantasma de uma essência ou natureza humana, não é o homem, e nem mesmo "os homens", mas uma relação, a relação de produção, que se estabelece uma outra relação com a Base, a infra- estrutura. E, contra todo idealismo humanista, Marx mostra que essa relação não é uma relação entre os homens, uma relação entre pessoas, nem inter-subjetiva, nem psicológica, nem antropológica, mas uma dupla relação: uma relação entre grupos

de homens que diz respeito à relação entre esses grupos de homens e as coisas, os meios de produção.29

Althusser, em sua defesa do materialismo histórico e da eliminação do conceito de homem como conceito central das formações sociais e da história e combatendo todo o tipo de humanismo teórico, não deixa de reconhecer a importância histórica do humanismo teórico, mesmo ele sendo uma expressão ideológica da burguesia. Althusser, em sua defesa de teses em Amiens, reconhece o humanismo teórico como importante instrumento da luta de classes da burguesia contra o feudalismo.

E longe de mim a idéia de denegrir esta grande tradição humanista cujo mérito histórico é ter lutado contra a feudalidade, contra a Igreja e seus ideólogos, e ter dado ao homem títulos e uma dignidade. Mas longe de nós, acredito, a idéia de contestar que esta ideologia humanista, que produziu grandes pensadores, seja separável da burguesia em ascensão de quem ela exprimia as aspirações, ao traduzir e transpor as exigências de uma economia mercantil e capitalista sancionada por um direito - o antigo direito romano corrigido para o direito mercantil burguês. O homem sujeito livre, o homem livre sujeito de seus atos e pensamentos, é de inicio o homem livre para possuir, vender e comprar, o sujeito de direito.30

Toda a retomada dessa polêmica nas décadas de sessenta e setenta, levou Althusser a um certo isolamento, mesmo entre os comunistas e em especial dentro do PCF, ainda muito suscetível ao revisionismo soviético do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética.

...Marx havia fundado seu pensamento na recusa de todo fundamento filosófico no homem, na natureza do homem, esse

29 Louis ALTHUSSER, Sustentação de teses em Amiens. IN: Posições-1, 162-163 30 Louis ALTHUSSER, Sustentação de teses em Amiens. IN: Posições-1, 160

Marx que havia escrito: "Não parto do homem, mas do período histórico considerado", esse Marx que havia escrito: "A sociedade não se compõe de indivíduos, mas de relações" etc. Isolado. Eu o estava de fato, em filosofia e em política, ninguém, nem mesmo o Partido, que caía na esparrela do humanismo socialista ingênuo, não querendo reconhecer que o anti- humanismo teórico era o único a autorizar um real humanismo prático.31

A discussão sobre a teoria anti-humanista do marxismo leva-nos necessariamente a outra, à polêmica enfrentada por nosso autor sobre o sujeito como determinante do processo histórico.