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6 PERCURSO METODOLÓGICO

6.1 Pressupostos teóricos e metodológicos

6.1.5 Matriz do estudo

Conforme foi aludido, este estudo inscreve-se na tradição da pesquisa qualitativa fundada em uma abordagem crítica e reflexiva articulada com a compreensão hermenêutica, na qual assumimos como matriz de estudo um conjunto textos relacionados ao PBF, seus antecedentes e contextualização histórica, e o produto da comunicação intersubjetiva orientada por um roteiro guia de entrevista junto a beneficiários desse programa.

A opção por essa modalidade de estudo é fundamentada no reconhecimento deste como uma estratégia de investigação que tem como problema central as significações e os sentidos do ideal político de zerar a fome no Brasil a partir de um programa estatal que se pretende de SAN, associado a uma concepção de solidariedade orgânica, em um contexto de iniquidades socioeconômicas.

Por esta concepção, procuramos analisar o entrelaçamento de temas e dimensões analíticas pautadas por pressupostos teóricos e conceituais que amparam a Análise Crítica de Discurso (ACD), e, nesse processo hermenêutico, a partir do confronto com a empiria, estabelecer a solução do problema pesquisado.

A análise de discurso empreendida nessa pesquisa está identificada com uma postura reflexiva frente aos princípios metodológicos de uma abordagem pautada na tradição da teoria crítica, seus limites e possibilidades, demandando uma discussão epistemológica ancorada no lugar da pesquisa qualitativa em saúde coletiva.

Nesse processo hermenêutico, buscamos desenvolver eixos temáticos relacionados ao objeto de estudo a partir de uma imersão aprofundada na literatura de ciências sociais e humanas em sua interface com o campo da Saúde Coletiva, valorando a análise documental das fontes de direito positivo que tratam do direito humano e social à alimentação.

No cerne de um esforço compreensivo, aderimos à ideia de fenomenologia em Husserl, no ponto em que ela concebe as coisas na profundidade de suas essências, em seus “verdadeiros” significados, sendo as mesmas referidas como se apresentam, por apelo à experiência da consciência (intencionalidade) (HUSSERL, 1990). Por tal atitude fenomenológica, entendemos que a crítica reflexiva e coerente da experiência de beneficiário do PBF requer a consideração das possibilidades e limitações do próprio conhecimento no contexto de nossa implicação com o objeto pesquisado, como também abertura ao desvelar da linguagem, consoante processo indutivo descrito por Gadamer (2008, p. 497):

Costumamos dizer que “levamos” uma conversa, mas na verdade quanto mais autêntica uma conversação, tanto menos ela se encontra sob a direção da vontade de um ou outro dos interlocutores. Assim a conversação autêntica jamais é aquela que queríamos levar, ao contrário, em geral é mais correto dizer que desembocamos e até que nos enredamos numa conversação. (...) Nela não são os interlocutores que dirigem; eles são os dirigidos. O que “surgirá” de uma conversação ninguém pode saber de antemão. (...) a linguagem que empregamos ali carrega em si sua própria verdade, ou seja, “desvela” e deixa surgir algo que é a partir de então.

Partindo-se do entendimento de que “com o seu agir o homem inscreve significados no mundo e cria a estrutura significativa do próprio mundo” (KOSIK, 2002, p. 241), nosso compromisso nesse trabalho envolveu também a valoração dos fenômenos como eles se nos apresentam, conforme a vivência dos envolvidos nas entrevistas, muito embora atento ao que não é imediatamente perceptível.

Aliás, considerando que a hermenêutica dirige-se a compreender formas e conteúdos da comunicação humana, sua complexidade e simplicidade (DEMO, 2008), a análise dos diálogos e documentos de interesse nesse estudo – em meio a categorias como contradição, reificação, oposicionalidade e mediação – foi aqui assumida como um instigante exercício dialético.

sintética, como uma tentativa de reconciliar conhecimento e história em meio à relação de oposição entre aquele que conhece e o modo de ser das coisas, a

oposicionalidade. Sendo assim, o hermenêutico indica um estado de coisas

complexo, ao qual pertence a compreensão e a interpretação (Op. cit.). Na experiência hermenêutica lidamos com aquilo que nós mesmos não somos, com algo que se acha contraposto (HABERMAS, 2009).

Não faz sentido buscar a cientificidade por ela mesma porque método é apenas instrumento. Faz sentido sim fazer ciência para conseguirmos condições objetivas e subjetivas mais favoráveis de uma história sempre mais humana. É um absurdo sarcástico jogar fora da ciência o que não cabe no método. Se a ciência se der a isto, não passará de algo mesquinho (SEIFFERT apud DEMO, 1998, p. 260).

Para Schleiermacher (2005), as regras hermenêuticas precisam ser mais um método para driblar as dificuldades do que indicações para solucioná-las. Todavia, como revela Gadamer (2008), inexiste um método apropriado para ensinar a perguntar, capaz de ensinar a ver o questionável. Métodos naturalmente sucedem e são função da pergunta de partida. Nesse ínterim, a pesquisa qualitativa, dado que não valora quaisquer respostas fechadas, oferece a abertura das perguntas (DEMO, 2009; PATTON, 2002).

Destarte, a compreensão buscada nessa pesquisa deve ser situada enquanto premissa indispensável da hermenêutica (DEMO, 1995) visto que, como preleciona Ricoeur (2008), faz-se necessário procurar compreender os sentidos (expressados e não expressados) no discurso, tudo coerente com a ideia de Hans-Georg Gadamer de que a hermenêutica é o saber do quanto fica de não dito quando se diz algo (CUSTÓDIO, 2000), e mesmo o que a pessoa talvez nunca venha a dizer, trata-se, portanto, de uma difícil tarefa de ausculta que requer muita aplicação.

Colocar o dito em relação ao não dito, o que o sujeito diz em um lugar com que é dito em outro lugar, o que é dito de um modo com o que é dito de outro, procurando ouvir, naquilo que o sujeito diz, aquilo que ele não diz, mas que constitui igualmente os sentidos de suas palavras (ORLANDI, 2012, p. 59).

Quando se escuta alguém não se faz necessário esquecer as opiniões prévias (correspondentes ao elemento da tradição), antes pelo contrário, a abertura para a opinião do outro requer colocá-la em alguma relação com o conjunto das

próprias opiniões (GADAMER, 2008, p. 358), e, além disso, considerar as nossas implicações com os pontos de vistas expressos no discurso.

Conforme a perspectiva filosófica sustentada por Gadamer (1987; 2008), a elaboração da situação hermenêutica interessante à interpretação metódica começa pela disposição de admitir a infinitude dessa tarefa e segue com a consciência de que só é possível compreender os enunciados que nos preocupam ou nos motivam se reconhecermos neles nossas perguntas. Contudo, procurar elucidar, tanto quanto possível, algo que se encontra na base de nossos interesses é sempre uma tarefa legítima (Op. cit., 1987).

Nessa indução criativa, por força da entropia de nosso ambiente (sistema) aberto, marcado por preconceitos, ideias, projeções e desconfianças, é mister assumir um desafio de fazer pesquisa preocupado com a cientificidade e a ideologização da verdade, com propósitos marcadamente políticos, tanto mais quando basicamente prescrevem medidas econômicas supostamente para aplacar demandas sociais resultantes de desigualdade social e fome.

O nosso desafio nesse estudo também passou pela delimitação de um campo científico de saberes, discursos e práticas interdisciplinares, ambiente esse favorável para discutir criticamente o PBF como uma política anunciada como compensatória dos efeitos estruturais da pobreza e, nesse passo, adstrita à concepção de justiça social e alcance da segurança nutricional.