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6 PERCURSO METODOLÓGICO

6.5 Rede Interpretativa

No afã de procurar sentidos no ato interpretativo, buscamos com a análise da entrevista através da lente hermenêutica, em um movimento reflexivo, focar algo mais que a mera aceitação do real aparente, alcançando sobremodo valores sensíveis da história e cultura daqueles partícipes do estudo, não verificáveis objetivamente.

Na vida cotidiana sei, ao menos groseiramente, o que posso esconder de cada pessoa, a quem posso recorrer para pedir informações sobre aquilo que não conheço e geralmente quais os tipos de conhecimento que se supõem serem possuídos por determinados indivíduos (BERGER; LUCKMANN, 2009, p. 65).

Em nossa espiral compreensiva ao longo da presente investigação, assentado na teoria crítica, muitas vezes foi necessária a resignificação (ou mesmo mudanças) dos pressupostos teóricos e conceituais apreendidos a partir da literatura pertinente ao núcleo de ciências sociais e humanas do campo da Saúde Coletiva.

Também por isso, em nosso esforço propriamente humano de compreender partimos da consideração de que sempre há algo no discurso não entendível – quer seja em função da limitação do intérprete (sobretudo nosso mecanismo cerebral que conduz à padronização mental – captando recorrências nas dinâmicas, vale dizer: interferindo na realidade tal como percebida) (VYGOTSKY, 1991), de problemas da própria comunicação ou mesmo por conta do sujeito que fala não saber exatamente o que diz. Por evidente, em seu conjunto, dificuldades dessa natureza prejudicam a análise contextualizada e situada do momento discursivo.

O que alguém queria de verdade dizer em seu depoimento permanece mistério indevassável, porque nem o analista consegue deslindar de todo as entranhas da fala, nem o depoente sabe totalmente de si pra garantir o que disse o que realmente queria dizer (DEMO, 2009, p. 34).

Para nortear nosso exercício de compreensão hermenêutica a partir de leituras exaustivas das entrevistas, optamos por “tecer” uma Rede Interpretativa (LÜDKE E ANDRÉ, 1986), baseada em um conjunto entrelaçado de dois eixos temáticos, estruturados em igual número de dimensões analíticas, cada uma destas desdobradas em uma série de dezesseis categorias empíricas. Tal arranjo teórico, que traz consigo a ideia de “rede”, representa um esforço didático no sentido de facilitar o processamento das informações apreendidas no curso do trabalho (GODOY; BOSI, 2007; KANDEL, 1987), conforme a perspectiva teórica adotada.

Tabela 4 - Rede Interpretativa

EIXOS TEMÁTICOS DIMENSÕES ANALÍTICAS CATEGORIAS EMPÍRICAS

(A) Transferência de renda focalizada na pobreza material

(A.1)

Segurança alimentar/nutricional na aproximação da vertente do bem viver15

Mínimo existencial Bem viver Solidariedade orgânica Consumo Accountability Advocacy (A.2)

Ideologias e relações assimétricas de poder Dissimulação da dominação Reificação da realidade Funcionalização da miséria Liberdade (B) Política compensatória na perspectiva de investimento no capital humano (B.1)

Serviços públicos mediados por condicionalidades

Dádiva

Direito de cidadania (B.2)

Projeção de futuro às famílias beneficiárias

Acomodação Empregabilidade Emancipação

Entendemos por “solidariedade orgânica”, nos limites desse estudo, como um movimento em favor do equilíbrio de uma sociedade incomodada pela pobreza e a fome, algo como um construto que envolve as iniquidades sociais mediadas pelo trabalho ao lado das demandas socioeconômicas voltadas à sobrevivência material.

É contrário à lei da natureza que um punhado de homens seja abarrotado de superfluidades, enquanto faltam à multidão faminta as necessidades

15 As mais recentes constituições latino-americanas, a exemplo da Venezuela e Bolívia, inovam na

configuração política do Estado (diferenciado dos ordenamentos jurídico-constitucionais europeus, fonte de inspiração de todas as Constituições no curso da História do Brasil) ao apontarem para uma transição paradigmática em direção à vertente do bem viver, voltado à proteção da vida nas suas diferentes manifestações e, nesse sentido, aberto a abordagens de direitos que valoram a convivência harmônica com o meio ambiente, sobretudo a partir de novas formas de participação democrática e de controle social das políticas públicas.

básicas (ROUSSEAU, 1762, p. 288).

Nesse contexto, os indivíduos se aproximam entre si e do Estado pela necessidade de troca de serviços e bens, função de uma relação de interdependência, vital para a organização de uma sociedade complexa do tipo capitalista. Na solidariedade orgânica, como revela Durkheim (2010), a diferenciação social dá azo a um sentimento de liberdade individual, mormente quando a consciência coletiva perde a rigidez, abrindo espaço à consciência individual, na qual cada um tem autonomia de juízo e de ação.

Acreditamos que, ao destacar o direito social à alimentação no arranjo político-constitucional do Brasil ao lado do direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (CF, art. 225, caput) e da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental de um Estado Democrático de Direito (CF, art. 1ª, inc. III), nossa nação assumiu a meta de promover a segurança alimentar/nutricional na perspectiva do bem viver. Nesse sentido, consignou a obrigatoriedade de políticas públicas no campo da alimentação e nutrição, ao tempo que favorece a emergência de dinâmicas construtivas legitimadas por novos sujeitos participativos.

Bem viver entendido como um uma condição humana e social tendente à harmonia com o meio ambiente e articulada com transformações paradigmáticas, que envolvem processos sociais em permanente movimento. Tal abordagem da dinâmica da vida se opõe à idéia de qualidade de vida – pressuposta pelo paradigma da globalização – como objetivo a ser alcançado pelos seres humanos. Por outro lado, discute o impacto na sociedade e na natureza da crise cultural contemporânea de inspiração liberal-capitalista, particularmente a determinação das relações assimétricas de poder e da lógica de consumo.