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Vozes e documentos na articulação críticohermenêutica do bolsa família com o direito humano e social à alimentação

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Academic year: 2018

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

UNIVERSIDADE DE FORTALEZA

DOUTORADO EM SAÚDE COLETIVA EM ASSOCIAÇÃO AMPLA AA

MARCOS AURÉLIO MACEDO DE SOUSA

VOZES E DOCUMENTOS NA ARTICULAÇÃO CRÍTICO-HERMENÊUTICA DO BOLSA FAMÍLIA COM O DIREITO HUMANO E SOCIAL À ALIMENTAÇÃO

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MARCOS AURÉLIO MACEDO DE SOUSA

VOZES E DOCUMENTOS NA ARTICULAÇÃO CRÍTICO-HERMENÊUTICA DO BOLSA FAMÍLIA COM O DIREITO HUMANO E SOCIAL À ALIMENTAÇÃO

Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Saúde Coletiva em Associação Ampla UECE/UFC/ UNIFOR, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Saúde Coletiva. Área de

concentração: Políticas, Gestão e

Avaliação em Saúde.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Lúcia Magalhães Bosi

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará

Biblioteca de Ciências da Saúde

S697v Sousa, Marcos Aurélio Macedo de.

Vozes e documentos na articulação crítico-hermenêutica do bolsa família com o direito humano e social à alimentação/ Marcos Aurélio Macedo de Sousa. – 2013. 165f. : il.

Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade Estadual do Ceará/ Universidade Federal do Ceará/Universidade de Fortaleza, Fortaleza, 2013.

Área de concentração: Políticas, gestão e avaliação em saúde. Orientação: Prof. Dra. Maria Lúcia Magalhães Bosi.

1. Programas e Políticas de Nutrição e Alimentação. 2. Segurança Alimentar e Nutricional. 3. Políticas Públicas. 4. Saúde Pública. I. Título.

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MARCOS AURÉLIO MACEDO DE SOUSA

VOZES E DOCUMENTOS NA ARTICULAÇÃO CRÍTICO-HERMENÊUTICA DO BOLSA FAMÍLIA COM O DIREITO HUMANO E SOCIAL À ALIMENTAÇÃO

Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Saúde Coletiva em Associação Ampla UECE/UFC/UNIFOR, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Saúde Coletiva. Área de

concentração: Políticas, Gestão e

Avaliação em Saúde.

Aprovada em ____/ ____/_______

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________ Profa. Dra. Maria Lúcia Magalhães Bosi (Orientadora)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

______________________________________________________ Profa. Dra. Kátia Yumi Uchimura

Faculdade Evangélica do Paraná e Ministério da Saúde (MS/Brasil)

______________________________________________________ Prof. Dra. Márcia Maria Tavares Machado

Universidade Federal do Ceará (UFC)

______________________________________________________ Profa. Dra. Geison Vasconcelos Lira

Universidade Federal do Ceará (UFC)

______________________________________________________ Profa. Dra. Raimunda Magalhães da Silva

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A todos que me toleraram quando vivi a complexidade do drama pessoal de perda da referência de família, período difícil, no qual minha vida social e as atividades do doutorado foram invadidas por uma

profunda e imobilizadora tristeza,

marcado por momentos em que quase nada parecia fazer sentido. Hoje reconheço que toda a experiência passada e os sentimentos a ela relacionados significaram um rito de passagem para uma vida tanto mais

equilibrada e feliz, inclusive na

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AGRADECIMENTOS

Às mulheres que consentiram em participar do estudo e protagonizaram essa obra com sensibilidade e ternura. A elas nossa estima e respeito.

À Eudaziane, minha mulher e parceira ideal, presente em cada seção desse trabalho com inteligência e entusiasmo, ao dedicar esforços ao longo dos últimos dois anos em sucessivas revisões e contribuições no texto, sem a quais essa versão final não seria possível. Sem dúvidas foi a maior e mais imprevisível descoberta durante o período que assinalou esse curso.

Aos informantes chaves e demais colaboradores que creditaram confiança no valor desse trabalho. Todos eles são partícipes de nosso esforço de construção de uma tese acadêmica dialogada com a comunidade.

Aos tradutores que me permitiram acesso a mais de uma centena de obras originalmente publicadas em idiomas estrangeiros e referenciadas nesse texto. Todos eles têm destacada importância hermenêutica nesse estudo, por força de minha limitação na compreensão do inglês, francês, alemão e outros idiomas; em especial agradeço à professora Jéssica, que se designou a traduzir com dedicação e zelo os resumos produzidos ao longo desse trabalho.

À Bruna e Joyce, minhas filhas amadas, que mesmo morando em outro endereço, muito me impulsionam a ser um pai digno, ou ao menos esforçado para merecer, permanentemente, admiração e respeito, a exemplo dos sentimentos que cultivo por elas.

À Malu Bosi pela qualidade e notável inteligência na condução da orientação desse trabalho, apontando caminhos em Pesquisa Qualitativa e muitas vezes provocando incomodações e inquietações que me remeteram à reflexão e ao esforço criativo na direção da produção de inovações científicas e, nesse percurso, a submissão de nove artigos científicos.

(7)

Aos professores Moses e Oscar, das Faculdades INTA, apoiadores incondicionais durante todo o período desse curso.

(8)

“Eu sustento que a única finalidade da ciência está em aliviar a miséria da

existência humana.”

(9)

RESUMO

No contexto da configuração política do direito humano e social à alimentação no Brasil, buscamos neste estudo compreender interesses, valorações e juízos presentes nas vozes de beneficiárias do Bolsa Família e nos textos oficiais desse

programa (BF) – reconhecido como um dos mais abrangentes em matéria de

transferência direta e condicionada de renda com foco na pobreza. A metodologia inscreve-se na tradição da pesquisa qualitativa em saúde, fundada em uma abordagem reflexiva e dialética entrelaçada com a hermenêutica filosófica. Com base em entrevistas dialógicas junto a doze beneficiárias selecionadas conforme critérios baseados na moda da distribuição das famílias inscritas em Sobral-CE –

gênero: feminino, idade: 30-39 anos e dois filhos > 18 anos –, foram analisados criticamente discursos e práxis relacionados ao BF, tomando-os como dimensões do debate acerca dos objetivos prioritários para definição de políticas públicas de alimentação e nutrição. A partir das fontes documentais consultadas e das experiências apreendidas no campo investigativo é interrogada a contribuição atribuída ao BF na indução da trajetória oblíqua da acomodação sob a égide da funcionalização da pobreza. Também é questionada a aproximação da mesma iniciativa estatal com a perspectiva de autonomia (financeira) sustentada, coerente com a premissa do capital humano ao prescrever a formatação de condutas orientadas por práxis higienistas de cuidado em saúde e de pedagogia empreendedora, tendentes a reduzir a pessoa humana a um bem de capital.

Construímos uma rede interpretativaconstituída por eixos temáticos estruturados em

dimensões analíticas desdobradas em categorias empíricas. No cenário investigado, verificamos a singularidade moral das categorias liberdade e empregabilidade para as titulares do cartão do BF e, por outro lado, a materialização da lealdade como vínculo obrigacional forte e tenso na perspectiva da permanência da hegemonia política do agente patrocinador sobre os beneficiários, que devem obediência e explicações para fazer jus à transferência regular de renda, tendendo por isso a assumir posições políticas conservadoras. Adicionalmente, com esteio nas condicionalidades, esses sujeitos se revelam passíveis de investimento e controle estatal sobre seus corpos e esferas das suas vidas privadas. A produção subjetiva apreendida nessa tese desvela a falsa dicotomia acomodação/autonomia, apontando antes para comportamentos estereotipados e, sobretudo, ambíguos, de modo a tornar insubsistente a redução da complexidade de tais fenômenos a uma ou outra polaridade, e, nesse sentido, contraindicando argumentos de natureza maniqueístas ou qualquer abordagem linear que, notadamente por negligencia à dialética dos processos simbólicos, exclua as contradições e os paradoxos inerentes ao programa em questão.

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ABSTRACT

In the context of the political configuration of the human and social right to food in Brazil, this study sought to understand interests, valuations and judgments present in the voices of beneficiaries of Bolsa Familia and the official texts of this program (PBF) - recognized as one of the most comprehensive programs in terms of direct and conditioned income transfer focusing on poverty. The methodology follows the tradition of qualitative health, based on a reflective and dialectical approach intertwined with the philosophical hermeneutics. Underpinned by dialogic interviews with twelve beneficiaries selected according to criteria based on the mode of the

distribution of families enrolled in Sobral-CE – gender: female, age: 30-39 years and

two children > 18 years old – were critically analyzed the discourses and praxis related the PBF, taking them as dimensions of the debate about the overriding objectives for setting of public policies regarding food and nutrition. From the documented sources consulted and the experiences learned in the investigative field is interrogated the contribution attributed to PBF in the induction of slant range of accommodation under the aegis of functionalization of poverty. It is also questioned the approach of the same state initiative with the prospect of (financial) autonomy sustained, consistent with the premise of human capital when prescribing the organization of behaviors driven by hygienist praxis concerning health care and entrepreneurial pedagogy, which tend to reduce the human being person to a capital asset. We have built a interpretative network consisting of thematic axis structured according to analytical dimensions split into empirical categories. In the scenario investigated, we have verified in one hand the moral uniqueness of the categories freedom and employability for the PBF cardholders. And on the other hand, the embodiment of loyalty as a strong and tense obligation bond in the view of the

permanence of sponsoring agents’ political hegemony towards the beneficiaries, who

owe obedience and explanations to justify the regular income transfers, tending thus to assume conservative political positions. Additionally, with the conditionality mainstays, those subjects turn out to be liable for investment and state control over their bodies and areas of their private lives. The subjective production apprehended in this thesis reveals the false dichotomy accommodation/ autonomy, pointing then to stereotyped behaviors and especially ambiguous, so as to make ineffectual the reducing of the complexity of such phenomena to either one or the other polarity, and in this sense contraindicating arguments of Manichean view or any linear approach that notably due to negligence towards the dialectic of symbolic processes, exclude the contradictions and inherent paradoxes in the program in question.

(11)

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 Espirais de bases de dados inter-relacionadas por

triangulação de métodos... 121

Figura 2 Etapas do método de investigação dialético... 125

Figura 3 Passos da análise preliminar... 141

Figura 4 Mapas de localização de Sobral no Ceará e no Brasil... 148

Figura 5 Principais eixos de ação políticas projetadas para serem desenvolvidos conforme concepção inicial do Projeto Fome Zero... 171

Figura 6 Esquema das propostas do Projeto Fome Zero... 172

Figura 7 Execução Financeira (R$ milhões) do Bolsa Família e programas remanescentes, 2003-2006, Brasil... 230

Imagem 1 – Imagem do Alto do Cristo Redentor, ponto mais alto da cidade de Sobral-CE... 147

(12)

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Princípios explícitos da Constituição Federal identificados com o Direito à Alimentação, Brasil, 1988... 73

Tabela 2 Normas da Constituição da República Federativa do Brasil implicadas com o Direito à Alimentação... 75

Tabela 3 Perfil etário e tempo de permanência em programas de transferência condicionada de renda das famílias beneficiárias do PBF objeto das entrevistas... 156

Tabela 4 Rede Interpretativa... 164

Tabela 5 Comparativo entre o número dos moradores de domicílios particulares permanentes em situação de extrema pobreza e a quantidade de beneficiários do PBF, Sobral, Cerá, Nordeste, Brasil... 176

Tabela 6 Famílias inscritas no PBF, Sobral, Ceará, Nordeste, Brasil,

2004-2013... 177

Tabela 7 Evolução do Produto Interno Bruto, 2006-2008, Sobral, Ceará, Brasil... 178

Tabela 8 Tipos e valores do benefício incluso no Bolsa Família conforme critério de composição das famílias com renda familiar de até R$ 70,00 (extremamente pobres)... 180

Tabela 9 Tipos e valores do benefício incluso no Bolsa Família conforme critério de composição das famílias com renda per capita de R$ 70,00 a R$ 140,00... 181

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LISTA DE APÊNDÍCES

Apêndice A – Tópico Guia... 325

Apêndice B Quantidade de titulares do cartão do Bolsa Família por idade, Sobral-CE, março de 2013... 326

Apêndice C Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para

Gestores do Programa Fome Zero / Bolsa Família... 328

Apêndice D Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para

Beneficiários do Programa Fome Zero / Bolsa Família... 329

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABRANDH Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos

AC Análise de Discurso

ADC Análise Crítica de Discurso

CadÚnico Cadastro Único para Programas Sociais

CAISAN Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional

CAP Caixa de Aposentadoria e Pensão

CEF Caixa Econômica Federal

CONEP Comissão Nacional de Ética em Pesquisa

CNS Conselho Nacional de Saúde

CONSEA Conselho Nacional de Segurança Alimentar

CGU Controladoria-Geral da União

CRAS Centro de Referência de Assistência Social

DHAA Direito Humano à Alimentação Adequada

FNDE Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação

FZ (“Programa”) Fome Zero

GM/MDS Gabinete do Ministro / Ministério do Desenvolvimento Social

HP Hermenêutica de Profundidade

IAP Instituto de Aposentadoria e Pensão

IAPI Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INAN Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição

IOCS Inspetoria de Obras Contra as Secas

IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplica

LOSAN Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional

MDS Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome

MPI Ministério Público do Estado do Piauí

MS Ministério da Saúde

MTE Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)

MDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro

MP Medida Provisória

(15)

MEC Ministério da Educação

MTIC Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio

NUNPRA Núcleo de Nutrição e Produção de Alimentos

ONU Organização das Nações Unidas

PAC Programa de Aceleração do Crescimento

PBF Programa Bolsa Família

PET Programa de Erradicação do Trabalho Infantil

PGRM Programa de Garantia de Renda Mínima

PIDESC Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

PLANSAN Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

PNAN Política Nacional em Alimentação e Nutrição

PNSAN Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

PND Plano Nacional de Desenvolvimento

PPA Plano Plurianual

PR Partido da República

SAN Segurança Alimentar/Nutricional

SAPS Serviço de Alimentação da Previdência Social

SECOM Secretaria de Comunicação da Presidência da República

PDT Partido dos Trabalhadores

PSDB Partido da Social Democracia Brasileira

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO... 19 1.1 Objetivos... 32

2 NOTAS SOBRE AS POLÍTICAS DE ALIMENTAÇÃO E NUTRIÇÃO NO

BRASIL: UMA APROXIMAÇÃO DE UM ENFOQUE

HISTÓRICO-CRÍTICO... 33 2.1 Fundamentos históricos da proteção social... 33

2.2 O Estado provedor e a emergência da alimentação como política

pública... 35

2.3 “Alimentação racional” e o processo de formação profissional em

Nutrição... 40

2.4 A configuração da Política Nacional de Alimentação e Nutrição no

contexto da “Guerra Fria”... 45

2.5 Movimentos sociais e mudanças na pauta em alimentação e

nutrição... 50

2.6 Segurança alimentar/nutricional no Brasil: uma meta republicana

articulada à pauta de direitos humanos... 54

3 ALIMENTAÇÃO E NUTRIÇÃO EM MATÉRIA DE SEGURANÇA E

DIREITO: INTERFACES SOCIOPOLÍTICAS NO ÂMBITO DE UMA

PERSPECTIVA CRÍTICO-COMPREENSIVA... 59

3.1 Configuração do Estado democrático para com o imperativo dos

direitos humanos sociais... 61

3.2 Pressupostos conceituais e normativos da Segurança

Alimentar/Nutricional... 66

3.3 A (In)segurança Alimentar e Nutricional e a força do mercado... 69

3.4 A positivação do Direito à Alimentação no contexto da

globalização...

72

(17)

3.6 Da positividade jurídica à hermenêutica do Direito Social à Alimentação

no Brasil... 84

4 ALIMENTAÇÃO, CONSUMO, NECESSIDADES HUMANAS: UMA APROXIMAÇÃO HISTÓRICO-CRÍTICA... 91

4.1 Necessidades humanas, mercado e devir histórico... 92

4.2 Comércio de alimentos, consumo e a questão da (in)segurança alimentar/nutricional... 93

4.3 A pertinência de uma teoria crítica... 95

5 VALORAÇÕES E JUÍZOS DE MÉRITO DO BOLSA FAMÍLIA NA PRÁXIS EM ALIMENTAÇÃO E NUTRIÇÃO... 98

5.1 Senso comum e ideologia na esteira do conhecimento científico... 99

5.2 Hermenêutica e dialética: convergências à realidade empírica do Bolsa Família... 103

5.3 Práxis em alimentação e nutrição no contexto da transferência de renda para demanda por comida... 109

5.4 O lugar das condicionalidades: oposição ou situação em face da política de direitos humanos sociais... 111

5.5 Condicionalidades e a perspectiva do investimento social em capital humano... 113

6 PERCURSO METODOLÓGICO... 120

6.1 Pressupostos teóricos e metodológicos... 120

6.1.1 Triangulação de métodos: arte e ciência... 120

6.1.2 Articulação da hermenêutica com a dialética do concreto... 124

6.1.3 Hermenêutica na vertente da tradição da teoria crítica... 126

6.1.4 Compreendendo a representação da realidade: linguagem e comunicação... 130

6.1.5 Matriz do estudo... 133

(18)

6.2.1 Tecendo caminhos entre a teoria e a empiria: Análise de Discurso e

suas implicações epistemológicas para o estudo dos

textos/documentos... 137

6.2.2 A análise documental... 140

6.2.2.1 Análise preliminar... 140

6.2.2.2 Análise propriamente dita... 143

6.3 Fazendo o campo: Diálogo com os protagonistas do estudo... 144

6.3.1 A entrevista qualitativa na perspectiva de oportunizar o diálogo franco e aberto... 146

6.3.2 Cenário do estudo... 148

6.3.3 O momento das entrevistas dialógicas... 149

6.3.4 Rede de contatos: mediações necessárias... 151

6.3.5 Beneficiário tipo... 155

6.3.6 Roteiro Guia e saturação teórica... 157

6.4 Processo de codificação das informações qualitativas consoante a Análise Crítica de Discurso... 158

6.5 Rede Interpretativa... 163

7 PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS ÉTICOS... 166

8. O QUE DIZEM OS DOCUMENTOS... 168

8.1 O Fome Zero com o Bolsa Família... 168

8.2 “Programa” Fome Zero: Do projeto político à estratégia de governo com objetivos em alimentação e nutrição... 170

8.3 O Bolsa Família e a erradicação da pobreza... 175

8.4 A propósito da porta de saída do Bolsa Família (se é que há alguma)... 184

9 A VOZ DAS MULHERES BENEFICIÁRIAS DO BOLSA FAMÍLIA... 189

9.1 Demandas de necessidades aos reconhecidamente pobres... 189

9.2 A dimensão econômica da pobreza, planos de governo federal e o cadastro único de programas sociais... 196

(19)

9.4 Advocacy e a perplexidade com as mobilizações de junho de 2013... 203

9.5 “A gente” ante “eles” no contexto da dimensão imaterial da experiência de pobreza... 208

9.6 O apartheid social brasileiro... 214

9.7 O “Lula pai” e a compensação da presença do Estado à ausência paterna... 218

9.8 “Muita gente não recebe (o Bolsa Família) e precisa...”: Dimensões de coordenação e controle do Bolsa Família... 225

9.9 Fiscalização e controle do Bolsa Família... 228

9.10 Dádiva ou favor... 234

9.11 Ócio, trabalho e poder... 239

9.12 “... Tem uma vaquinha que dá leite todos os meses, nem que seja um pouquinho, mas dá, que é o Bolsa Família.”... 247

9.13 O Programa Bolsa Família e o jogo político... 254

10 CONSIDERAÇÕES FINAIS... 263

REFERÊNCIAS... 270

(20)

1 INTRODUÇÃO

A presente investigação inscreve-se na vertente qualitativa da pesquisa em saúde coletiva, em busca de compreender significados e sentidos atribuídos ao Programa Bolsa Família (PBF), procurando avançar na avaliação crítica do processo de criação política e de produção subjetiva daquele programa, cuja relevância e atualidade decorrem, sobretudo, do amplo espectro de abrangência da transferência direta e condicionada de renda em benefício de famílias em condição de pobreza no Brasil.

Ao focar o PBF, nossa pesquisa parte da compreensão hermenêutica que sustenta a efetivação do direito social fundamental à alimentação como pré-requisito indispensável à justiça social. Nesse contexto epistemológico, é pertinente indagar quais os significados com que se reveste o ideal, ético e político, de zerar a fome no Brasil no sentido de concretização da condição humana e social de segurança alimentar/nutricional (SAN) no país?

Antes, porém, foi lançado em 2003 o “Fome Zero” (FZ), pensado conforme o

próprio nome sugere, como um “Programa” de governo de combate à fome, que se

notabilizou de partida pelo repasse às famílias pobres de cupons para troca por comida. Todavia, tal iniciativa nunca existiu verdadeiramente como um programa institucional e, na sequência, foi assumido como estratégia integradora de programas relacionados de algum modo à segurança alimentar/nutricional (SAN), com destaque ao Programa Bolsa Família (PBF). Nesse sentido tem-se o Fome Zero com o Bolsa Família, mas que para efeito desse trabalho preferimos designá-lo simplesmente como PBF.

Na verdade, justamente porque desde 2004 o FZ passou a ser centrado no benefício do Bolsa Família, que representa a unificação de programas pontuais de transferência de renda, verifica-se, mesmo a teor da literatura científica, que o primeiro é confundido ou entendido como transformado no segundo. Sendo assim, se antes tínhamos um conjunto de propósitos apresentados pelos idealizadores do

“programa” FZ, enquanto práxis discursiva, atualmente temos a amplitude de uma

(21)

um contexto da complexa articulação intersetorial e federativa.

Na elaboração da proposta desse estudo partimos da premissa de que, a despeito de contextos internacionais específicos, a velocidade e a intensidade das mudanças ocorridas na dinâmica do mercado internacional em vias de globalização, trazem consigo a exigência de mudanças no desenho e nas funções do Estado, inclusive com a nova configuração das políticas públicas, passando a incorporar a preocupação com as mazelas sociais associadas à fome e à miséria.

Nosso compromisso nesse trabalho envolve também a exploração dos discursos e da práxis presentes no universo empírico do PBF, tomando-os no contexto do debate acerca dos objetivos prioritários para a construção de políticas públicas com foco na pobreza, tangenciando o tema alimentação e nutrição em saúde coletiva.

No âmbito da Saúde Coletiva, Bosi e Prado (2011) discutem perspectivas, limites e significados do binômio alimentação/nutrição, ressaltando a questão da condição (humana e social) de segurança na interface das duas dimensões inerentes à expressão SAN, envolvendo medidas relacionadas à disponibilidade e ao acesso (dimensão alimentar) combinadas à utilização biológica da comida (dimensão nutricional), em um contexto de cidadania (BATISTA FILHO, 2003; MONNERAT, 2007).

Nessa perspectiva, importa ressaltar que a SAN deve ser entendida como uma

condição coletiva na qual se tem – de modo contínuo – acesso físico e econômico à

alimentação suficiente, segura, nutritiva, em harmonia com o meio ambiente, respeitada a base cultural que viabiliza sua produção e o uso sustentável. Tal condição deve ser garantida por políticas públicas (o público assumido como esfera onde agem tanto agentes privados quanto governamentais), competindo primordialmente ao Estado a proteção e a promoção do direito à alimentação.

Cumpre assinalar que nas últimas décadas, o debate acerca dos objetivos prioritários para o planejamento e construção de políticas sociais tem,

invariavelmente, envolvido a SAN – demanda de saúde coletiva, cuja discussão não

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políticas públicas (PESSANHA, 2002). Reconhece-se, nesse campo, o caráter amplo que possui uma política em tal setor, posto que além de procurar promover a justiça social, situa-se como um dos eixos estratégicos do desenvolvimento que associa crescimento econômico e equidade social, como pressuposto de (uma nova) cidadania (NASCIMENTO; ANDRADE, 2010).

Assim, conhecer as condições de possibilidade de uma dada realidade social, circunscrita em uma (por assim dizer) estratégia de governo para mitigar a insegurança alimentar/nutricional e a miséria, requer o estudo de suas dimensões qualitativas, incursionando pelas representações sociais como produção subjetiva e construção político-estatal.

Nesse horizonte, seguindo um percurso hermenêutico, buscamos a apreensão de representações do movimento da realidade percebida, interesse central da pesquisa qualitativa em saúde, cujos pontos de vista dos atores sociais, conforme observa Camargo Jr. e Bosi (2011) devem ser valorados na busca da compreensão dos complexos processos subjetivos e simbólicos subjacentes aos desfechos, ditos objetiváveis, mas não reduzíveis a simples mensuração.

A projeção de convergência do campo do direito com o da alimentação, indo e

vindo, no corpus da tese é provocada pelas inquietudes, desconfortos e incômodos

que marcaram a formação e atuação profissional do autor, acumulando identidade como nutricionista e advogado, combinada a nossa trajetória, tensionada por temas de alimentação e nutrição, no exercício do magistério universitário em cursos da área de saúde. Também foi importante a experiência acumulada ao longo de nove anos com assessoria de programas/projetos sociais, cumprindo em especial monitorar dados quantitativos em saúde e nutrição junto a dezenas de organizações não governamentais em alguns países da América Latina.

(23)

epistemológicas, a exemplo dos índices e indicadores de avaliação do “estado

nutricional” (na esteira do esforço no sentido de associá-los, cruzá-los ou

relacioná-los conforme a lógica linear de determinação do processo saúde/doença) denunciavam a sua própria insuficiência para explorar as múltiplas dimensões presentes na condição (humana e social) de segurança alimentar/nutricional.

Para discutir a concepção da alimentação (adequada e saudável) como direito

em face da empiria pautada no PBF, enquanto objeto síntese de investigação,

adotamos uma determinada perspectiva analítica que entende os discursos como produtores e comunicadores de significados capazes de, uma vez compartilhados, informar e traduzir concepções de mundo, permeadas sempre por certas representações sobre a política e o poder.

Com efeito, as construções discursivas são dimensões integrantes das lutas pela hegemonia, traduzindo ideias que não se restringem a uma esfera cultural supostamente isolada, mas encontram-se materializadas, como argumentaram, entre outros, Williams (1981) e Mouffe (1978), nas práticas sociais e nas instituições em geral.

A investigação por nós empreendida buscou essencialmente apreender dimensões presentes no universo empírico pesquisado, valorando neste processo as falas das mulheres entrevistadas, referências singulares da experiência como beneficiárias de transferência direta e condicionada de renda. Desse modo, nosso desígno interpretativo nesse trabalho foi orientado pela abertura à perspectiva crítica e reflexiva das questões presentes e possibilidades apontadas no campo pesquisado, a exemplo de sofrimento e liberdade, respectivamente.

(24)

Também foi nosso propósito explorar discursos e práxis em alimentação e nutrição no contexto do PBF, tomando-os como dimensões integrantes do debate acerca dos objetivos prioritários para o planejamento e construção de políticas públicas focadas na pobreza. Nesse sentido, buscamos confrontar a dualidade dialética entre emancipação sustentada e acomodação em face da transferência condicionada de renda às famílias em suposta condição de insegurança alimentar/nutricional por recorte econômico.

Por práxis em alimentação e nutrição entende-se, no escopo deste texto, como um modo de viver e de interpretar criticamente significados relativos à idealizada condição humana de segurança alimentar/nutricional, desvelando limites e possibilidades do universo simbólico do comer e da comida em sua perspectiva política, historicamente articulada à concepção de justiça social.

A teor da produção subjetiva de mulheres titulares do cartão do Bolsa Família procuramos analisar nessa pesquisa os desdobramentos políticos e morais da presença da transferência de uma renda mínima e condicionada na vida de famílias em situação de privação material. A discussão seguiu ao lado de uma análise crítico-compreensiva fundada em uma postura reflexiva de temas e dimensões analíticas amparadas na Análise Crítica de Discurso (ADC).

Contudo, analisar criticamente um discurso requer, além de intuição e argúcia, um método capaz de envolver uma série de dimensões sujeito-sujeito à maneira de um encontro aberto e franco entre dois sujeitos que, sabe-se, desempenham papéis diferentes. Desse modo, como lembra Vasconcelos (2005, p. 42):

Esse encontro não termina quando ambos se dão as costas após a entrevista. Existe uma ressonância que permanece num e noutro e que pode causar uma inferência sobre respostas silenciosas, segredos, esquecimentos, tartamudez, alheiamentos, recorrências, etc.

(25)

Com vistas à construção de informações qualitativas que representem percepções e outras dimensões da subjetividade das beneficiárias, optamos pelo emprego da técnica da entrevista dialógica, uma modalidade de conversação em profundidade, aberta à fala livre das entrevistadas, cuja análise

[...] requer que as vozes das mulheres sejam ouvidas muito atentamente e repetidas vezes, para que se possa capturar uma dimensão não tangível às outras modalidades de pesquisa sobre o tema.

(PINZANI; REGO, 2013, p. 18).

No caso, empregamos um Roteiro Guia contendo eixos temáticos desdobrados em questões, ambos harmonizados com a contextualização do objeto da pesquisa, em direção à saturação teórica dos principais temas a ele pertinentes.

Na busca de alcançar uma análise crítica de discurso capaz de refletir as experiências das pessoas envolvidas nessa investigação, na qualidade de contempladas com o benefício em dinheiro, e o lugar do Estado provedor nesse processo, procuramos combinar informações de documentos públicos com informações colhidas nos discursos das beneficiárias do programa, incorporando no texto da discussão uma abordagem reflexiva com base em pressupostos teóricos e conceituais da hermenêutica filosófica, assumida em sua perspectiva crítica e dialética.

No trabalho de campo, a partir das vozes das beneficiárias, foi interessante verificar o surgimento de novos temas e categorias empíricas, ao ponto de nos remeter a seguidas imersões na teoria, desde a revisitação das fontes antes consultadas até a busca de novas referências, de maneira a implicar em maior aprofundamento da análise via diálogos interdisciplinares por indução da empiria.

No curso de nosso giro compreensivo baseado na teoria crítica, muitas vezes foi necessária a resignificação (ou mesmo mudanças) dos pressupostos teóricos e conceituais apreendidos junto ao núcleo de ciências sociais e humanas do campo da Saúde Coletiva. Foi nesse movimento de permanente diálogo que a nossa proposta

de pesquisa – uma vez sistematizados e integrados eixos temáticos, diretrizes

(26)

documentos e as vozes consignadas em nossos dados.

O discurso político-ideológico do PBF constituiu uma unidade privilegiada de análise, tendo sido interpretado particularmente em face da lógica do modo de produção e consumo do mercado capitalista. Para tanto, com frequência, foi importante considerar os documentos que oficializam a construção e o implemento da iniciativa em confronto com os discursos dos sujeitos sociais envolvidos como beneficiários de tal política social.

Noutro sentido, procedemos à validação dos achados do campo na triangulação com uma análise de documentos oficiais e uma revisão sistemática do objeto de estudo na interface do campo da Saúde Coletiva com a literatura em ciências sociais e humanas.

Sendo assim, na perspectiva de uma estratégia de diálogo interdisciplinar

aberto às facetas distintas dos nossos dados – e, por conseguinte, de uma

diversidade de dimensões analíticas – optou-se nesse trabalho pelo uso da

triangulação de métodos, assumindo-se desse modo uma postura hermenêutica que buscou articular reflexividade e dialética do concreto. Para tanto, nosso empreendimento analítico valorou o entrelaçamento entre o discurso sobre o Bolsa Família e seus desdobramentos no contexto envolvido, considerando com primazia o ponto de vista dos beneficiários em contraste com a linguagem técnica dos documentos oficiais, agregando-se na discussão uma variedade de formulações teóricas sobre os temas destacados.

(27)

Exploramos nesse trabalho, ainda que não de modo exaustivo, a premissa da autonomia sustentada das famílias consoante à perspectiva desenvolvimentista de investimento no capital humano, com foco na superação da pobreza material. Tal idéia, por força da combinação de práticas higienistas e pedagogia empreendedora,

traz em si uma forte componente de biopoder (FOUCAULT, 2010). Nessa articulação

interpretativa, de partida, questionamos a vertente do pensamento liberal que

destaca a pessoa humana como bem de capital, e, nesses termos, “coisificado” como

alvo de investimento econômico e objeto de disciplinamento de sua conduta em face de serviços públicos preconizados como dever do Estado e direito de cidadania na Constituição Federal.

Não foi nossa pretensão um proceder de análise maniqueísta – vale dizer, do

tipo bem versus mal – quanto ao mérito do PBF. Procuramos, sobretudo, avançar na

discussão da realidade concreta desse programa, buscando a apreensão de uma série de relações históricas e materiais, nas quais ele se inscreve, incluindo as movimentações envolvidas e as contradições inerentes a sua existência.

No nosso processo de construção analítica valorizamos as evidências de que em um mundo cujas desigualdades sociais são cada vez mais aprofundadas, a consciência humana vai incorporando gradualmente a solidariedade como categoria ética, resultante de uma sensibilidade eficaz e transformadora em direção à justiça

social (SACHS, 2000 apud DEMO, 2002). Nesse sentido, o Estado vem adotando

salvaguardas e medidas compensatórias em favor das sociedades mais empobrecidas (KOERNER, 2003).

Na realidade, o debate acerca da distribuição desigual de renda no Brasil não é recente, nasceu nos anos 1970 e não parou mais. Já naquela década prevalecia a

força explicativa da Teoria do Capital Humano para justificar as diferenças regionais

(28)

No Brasil dos anos 1990, com esteio em um processo internacional identificado com as origens do Estado de proteção social (notabilizado pelo avanço dos direitos de cidadania), houve uma efervescência da luta contra a miséria e a fome. Passam a prevalecer nesse período concepções mais abrangentes de sistemas de proteção social, em uma perspectiva de solidariedade para com os excluídos dos meios de produção, e, por efeito, à margem do consumo

(MONNERAT et. al., 2007; AZEVEDO; BURLANDY, 2010).

Dados de 2006 revelam que 95% da população infantil frequentava a Escola no Brasil, ao passo que apenas 33% dos jovens haviam terminado naquele ano o ensino médio. Tal fato é suficiente para justificar, conforme propugna o senador Cristovam Buarque, um esforço nacional em favor da universalização da frequência às aulas até a conclusão do Ensino Médio (BRASIL, 2007a), como também no sentido de oportunizar o acesso a uma educação pública e de qualidade.

Cumprem então às diferentes esferas de governo, no plano de solidariedade orgânica e justiça social, empreenderem programas comprometidos com objetivos e metas em alimentação e nutrição, sustentados por abordagens focadas na superação da pobreza. Nesse sentido, surge em 2003, o Programa Bolsa Família

(PBF), anunciado como parte do então “Programa” Fome Zero (BRASIL, 2003a), de

abrangência nacional, com a pretensão de promover os cidadãos privados do mínimo existencial (em termos materiais) a uma condição de dignidade como pessoa humana, e nesse prisma prover um direito social.

(29)

O PBF como modalidade de transferência direta de renda, não obstante enuncie o propósito de favorecer a emancipação sustentada das famílias mais empobrecidas, paradoxalmente parece estabelecer algumas condições objetivas propícias à acomodação dos beneficiários àquela ajuda externa (e nesse sentido um viés assistencialista), a exemplo da conversão da própria situação de pobreza

material em “zona de conforto” apta a justificar a permanência da retribuição em

dinheiro. A adesão a tal benefício financeiro significa, nessa perspectiva,

acompanhar as recomendações dos agentes estatais, em um plano de suposta “boa

vontade”, para com o enfrentamento da problemática da exclusão social. Nessa

perspectiva, a adesão àquela medida compensatória de renda com

condicionalidades – como adiante será exposto – significaria acompanhar as

recomendações dos agentes estatais, em um plano de suposta “boa vontade” para

com o enfrentamento da problemática da exclusão social.

Assim, como alerta Demo (2002), o discurso acerca da solidariedade, exposto com um dos fundamentos das políticas compensatórias, pode ser qualificado como tendencioso, pois ao tempo que não passa de meras ajudas residuais, traz implícito um efeito de poder, distanciado da projeção de emancipação autônoma das populações implicadas.

Nesse contexto de crítica ao que está posto no discurso oficial do Bolsa Família, apontado como o mais abrangente programa social do Brasil (UCHIMURA et al., 2012), é pertinente a singularidade de uma abordagem fundada no questionamento político propriamente dito, capaz de abranger as relações desiguais de poder envolvidas (inclusive aquelas de cunho clientelista, movidas por propósitos eleitorais escusos) na discussão do aporte de dinheiro para demandas em alimentação e nutrição, ainda mais quando exigidas das famílias condicionalidades em saúde e educação e assistência social.

(30)

Por outro lado, uma vez destacada a SAN no eixo central das políticas públicas

do Brasil – também motivada por indicadores sociais, insurge a importância de

procurar compreender as movimentações em favor do ideal de zerar a fome no país. Para tanto, se faz oportuno recuperar a trajetória de dez anos do PBF até a sua projeção atual de expansão para 16,2 milhões de brasileiros até 2014, via Ação

“Brasil Carinhoso”, no governo Dilma (BRASIL, 2011a).

Nesse debate aberto, resolvemos construir uma análise crítico- compreensiva da práxis discursiva do PBF, enfocando-o no ambiente de conjuntura do país e de seus determinantes, em associação com a discussão da problemática da fome como

miséria social – expressa na forma de violação ao direito à alimentação. A idéia foi

avançar com uma abordagem qualitativa daquela medida distributiva de renda no âmbito de uma articulação estratégica para garantir o mínimo existencial em matéria de alimentação e nutrição, e, nesse passo, em direção à almejada promoção socioeconômica.

Adicionalmente, problematizamos a articulação entre senso comum, ciência e ideologia na compreensão do preceito do investimento em capital humano com vistas à superação da pobreza estrutural (e com ela a fome enquanto expressão de miséria) através de pacotes de serviços públicos consignados na Constituição Federal como direito-dever fundamental.

Como parte do trabalho de campo, optamos por realizar as entrevistas, imediatamente após o final de um quadriênio da administração municipal do PBF (correspondente ao mandato do prefeito), assinalando desse modo uma coincidência com o período regular de nossa permanência nas atividades do curso de doutorado. Sendo assim, os resultados traduzem o momento de fechamento da gestão local do programa, entre os anos de 2009 a 2012.

Sustentamos que um trabalho hermenêutico voltado a entender o sentido de um direito (se é que há algum) aplicável na melhoria da condição humana, deve ser buscado também no texto das leis e em suas relações intertextuais (em face do contexto ampliado do sistema jurídico e seus determinantes), que lhe conferem relativa autonomia. Por tais considerações, foram consultadas fontes do direito

(31)

da lei em sentido estrito – decretos, portarias e outras normas jurídicas e administrativas, que compõem o produto da construção jurídica do ideal político de acabar com a fome e a miséria no país.

No afã de avançar por fronteiras do conhecimento, entendemos que nesse trabalho de tese a consideração das interfaces históricas, socioeconômicas e políticas do direito à alimentação é condição indispensável para a construção de uma investigação crítica e para a análise/discussão fundamentada dos processos de enfrentamento da insegurança alimentar/nutricional no Brasil.

Na esfera da literatura científica, nacional e internacional, é notável uma lacuna em termos de abordagem qualitativa da dimensão moral e política de temas emergentes em alimentação e nutrição, que demandam produção de conhecimento

no campo da saúde coletiva. Faltam análises com enfoque em perspectivas

crítico-compreensivas da vertente humana e social fundamental do direito à alimentação, considerando-se, em particular, necessidades e interesses subjacentes às políticas

públicas, vale dizer, a “realidade sensível”, tal como percebida pelas pessoas

envolvidas nos programas sociais. Segundo Assis et al (2008), a literatura de

avaliação de tais programas enfatiza, basicamente, o potencial transformador dos

indicadores.

A propósito da pertinência da realização de pesquisas qualitativas, em um extenso trabalho experimental para aferir o impacto de programas governamentais

no campo da alimentação e nutrição – estruturado (matrizes) por categorias e

dimensões pré-estabelecidas, Santos e Santos (2008a) verificaram a limitação do modelo tipo estrutura-processo-resultado, sobretudo por omitir a discussão de aspectos políticos e estruturais. A ampliação das dimensões de análise é tida e reconhecida pelas autoras como imprescindíveis ao longo da pesquisa (sob pena de comprometer a qualidade da análise) para contextualizar conjuntura e outras ambiências da própria administração pública executora. Na mesma linha argumentam os textos de Uchimura e Bosi (2002) e Bosi e Uchimura (2007).

(32)

realidade para aproximar-se cada vez mais do cenário vivenciado pelos beneficiários no cotidiano da investigação. Destarte considerado o processo de tessitura das narrativas, buscamos identificar as estruturas de sentido para tornar apreensível o tempo vivido (RICOEUR, 2010) com a transferência condicionada de renda, valorando os significados dessa experiência na conjuntura de uma política pública focada na dimensão material pobreza.

O percurso metodológico desse trabalho não envolve mensurar eventual impacto, eficácia ou efetividade do PBF na (in)segurança alimentar/nutricional dos sujeitos beneficiários, ou ainda, seus efeitos na redução de manifestações sistêmicas da fome e da pobreza no país. Mesmo sem desmerecer a importância de tais aspectos, pretende-se avançar na avaliação do processo de criação política e de produção subjetiva deste programa, considerando, em especial, as arenas sociais onde se travam toda ordem de conflitos e convergências de interesses.

Com tais considerações e propósitos acadêmicos, dois pressupostos teóricos nos desafiam:

1) Na concepção do PBF a miséria social dos famintos no Brasil foi institucionalizada como uma questão de direito a uma renda mínima na lógica de inclusão social do modo de produção capitalista;

(33)

1.1 Objetivos Geral

o Compreender interesses, valorações e juízos presentes na voz de

beneficiárias do Bolsa Família e nos textos oficiais desse programa, tangenciando a dimensão da alimentação como direito humano e social.

Específicos

 Caracterizar os determinantes sócio-históricos e a configuração jurídica do

Bolsa Família no âmbito de uma análise crítico compreensiva que o destaca na trajetória das políticas de alimentação e nutrição do Brasil;

 Analisar distintas dimensões do discurso oficial e da práxis do Bolsa Família ante a lógica do modo de produção e consumo do mercado capitalista e da segurança alimentar/nutricional;

 Compreender a experiência de mulheres beneficiárias da transferência direta e

condicionada de renda tal como por elas percebida, na perspectiva do contraste acomodação/emancipação;

 Analisar convergências e divergências entre os textos oficiais e a fala das

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2. NOTAS SOBRE ASPOLÍTICAS DE ALIMENTAÇÃO E NUTRIÇÃO NO BRASIL: UMA APROXIMAÇÃO DE UM ENFOQUE HISTÓRICO-CRÍTICO

O propósito desse capítulo é recuperar criticamente a trajetória das políticas de alimentação e nutrição no Brasil, desde a origem da proteção social motivada pela miséria e a fome até a configuração da SAN como meta republicana articulada à pauta de direitos humanos, destacando-se o modelo de estado provedor em face dos direitos sociais. Por tal contextualização histórica, uma vez considerada a relevância do paradigma ético e moral da dignidade da pessoa humana e da reconfiguração do Estado para o enfrentamento da pobreza material, notadamente a miséria social da fome, procuramos problematizar o preceito da SAN no Brasil face à temática dos direitos humanos e do princípio da cidadania plena.

Para tanto, resolvemos partir de uma perspectiva analítica na qual os discursos são entendidos como produtores e comunicadores de significados que, compartilhados, informam e traduzem concepções de mundo, permeadas por representações acerca das relações de poder. Assim, construções discursivas são assumidas, nesta discussão, como dimensões integrantes das lutas pela hegemonia, traduzindo ideias que não se restringem a uma esfera cultural supostamente isolada, mas se encontram materializadas, tal como sustentado por Gramsci (1978), nas práticas sociais e no conjunto das instituições.

2.1 Fundamentos históricos da proteção social

A preocupação com os infortúnios da vida acompanha a história da civilização desde os tempos mais remotos. Contudo, a civilização evolui no sentido de reduzir as ameaças da vida e os efeitos de adversidades capazes de vulnerar a existência humana. Pode-se afirmar que comportamentos dessa natureza têm algo do instinto comum aos demais animais, a exemplo do hábito de guardar alimentos para consumo em dias mais difíceis. O diferencial seria o nível de complexidade do nosso sistema de protetivo, assinalado pela racionalidade (IBRAHIM, 2005; MORRIS, 2010).

(35)

verificados na História Antiga, em sociedades com algum grau de organização, atuando, ressalve-se, sem qualquer mediação estatal nessa tarefa. Posteriormente criaram-se normas para assegurar a sobrevivência dos trabalhadores em seus

infortúnios, a exemplo do Código de Hamurabi e da Lei das Doze Tábuas. Ambos

tinham o escopo de garantir a dignidade humana através da realização da assistência caritativa às pessoas em dificuldades materiais, uma vez impossibilitadas para o trabalho (FELIX, 2009).

A origem da proteção moderna aos mais pobres remonta até meados do século XIV, com as relações de dependência e troca entre os senhores e os servos, resultando na criação de estruturas mínimas para lidar com a fome e as doenças. Tais ações solidária e coletivamente empreendidas foram intensificadas a partir do horror com a peste negra (1348-9) (HOBSBAWN, 1979).

Anos mais tarde, o fechamento da quase totalidade dos mosteiros, em 1536, juntamente com a desagregação da estrutura social medieval, fez com que, na Inglaterra do início do século XVII, a ajuda aos necessitados passasse de ato voluntário para uma obrigação a ser custeada com imposto pago e administrado por comunidades paroquiais (circunscritas em territórios legitimados pelo Estado monárquico) (IBRAIM, 2005).

Naquele período, existia um grande número de ingleses desempregados, vários deles em uma vida de mendicância, peregrinando em busca de comida. Tal fato agredia a sociedade a ponto de provocar a coroa inglesa a empreender esforços para minorar tão absurdo flagelo social. Assim, em 1801 foi editada a Lei dos Pobres (Poor Relief Act), instituindo uma política de transferência de dinheiro aos que não reunissem condições mínimas de sustento. Para boa parte da doutrina especializada em seguridade social (GOES, 2012; OLIVEIRA, 2005) esse foi o momento da história onde efetivamente o Estado iniciou sua participação na assistência aos socialmente desvalidos.

(36)

capitalista, mas agora amenizado por práticas humanistas e solidárias para com os trabalhadores explorados (ou sem oportunidade de emprego) (BARBOSA, 2010; MONTANO, 2012).

A encíclica do Papa Leão XIII tornou-se um marco das prescrições feitas pela Igreja ao Estado no que concerne à proteção do proletariado, do trabalho e da propriedade; e, ao mesmo tempo, um "convite para os operários católicos se associarem" de modo a fazerem face ao comunismo e evitarem "dar seus nomes a sociedades de que a religião tem tudo a temer". (GONÇALVES et al, 2010, p. 98)

Sendo assim, ações desenvolvidas pela Igreja mobilizavam recursos junto à sociedade para executar ações de caridade e misericórdia aos mais pobres (CASTRO, 2008) (muito embora, com a crescente absorção do trabalho humano na indústria, a condição de pobre fosse, basicamente, reconhecida como uma condição operária). Tal influência religiosa representou o marco do regramento jurídico da seguridade social, sensibilizando muitos governantes por conta do sentimento de

obrigação cristã para com a proteção e o amparo aos pobres (GONÇALVES et al,

2010).

No Brasil, a partir do século XVI os governantes, preocupados com a instabilidade social em razão do problema da fome, decorrente de extensos períodos

de secas (invasões de terra, saques, etc.), recorreram a “socorros públicos”,

modalidades de ajuda humanitária na forma de doação de alimentos, diretamente, ou o equivalente em dinheiro para adquiri-los. Medidas dessa natureza foram vitais naquelas situações de emergência, mas que, via de regra, além de incertas, negligenciavam as causas estruturais do problema. A propósito do tema, no

longínquo 1890, Rodolfo Teófilo (2002, p. 244, grifos nossos), no romance “A Fome”,

dedicado à seca de 1877, já alertava:

A distribuição dos socorros públicos em dinheiro e, por meio de cartões, o novo presidente proibiu logo que assumiu a administração da província.

2.2 O Estado provedor e a emergência da alimentação como política pública

(37)

nutrição no Brasil, em sua dinâmica histórica, considerando a miríade de programas e serviços, mais ou menos institucionalizados nesse campo, resolvemos adotar o entendimento de Matildes da Silva Prado (1993, p. 23), como segue:

Política de Alimentação e Nutrição [como] conjunto de medidas adotadas pelo Estado, visando “proteger” determinados segmentos sociais, através da implantação de programas e serviços voltados para a questão de produção, comercialização, distribuição e consumo de alimentos.

Para aquele professor baiano, recuperar a conjuntura nacional em cada momento histórico é condição que se impõe à compreensão das políticas de alimentação e nutrição, destacando-se nessa trajetória a correlação de forças entre os movimentos sociais e o poder estatal (PRADO, 1993).

Embora ações de Estado para com a questão alimentar e nutricional da população tenham sido empreendidas desde o início da colonização portuguesa no Brasil, somente no ano de 1909, com a criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), o país passou a ter uma referência institucional em políticas públicas de alimentação. Com esse órgão, o governo de Nilo Peçanha procurou criar condições de acesso à água no semiárido brasileiro, devastado por grandes estiagens (BRASIL, 1909).

Na passagem do Estado liberal-oligárquico ao Estado intervencionista-burguês (em período de cerceamento das liberdades democráticas) foram estabelecidos instrumentos e mecanismos para uma Política Nacional em Alimentação e Nutrição (PNAN), como parte do conjunto de programas sociais do então governo de Getúlio Dorneles Vargas (VASCONCELOS, 2005b; FROZI; GALEAZZI, 2004).

(38)

Contudo, para compreensão da historicidade da PNAN, como de resto, qualquer política social daquele período da história do Brasil, faz-se necessário, como sugerido anteriormente, reportar-se ao contexto político e econômico de transformação ocorrida em fins do século XIX, com a substituição do governo imperial pela república burguesa de inspiração positivista.

Naquele período houve grandes mudanças no modelo de produção da economia, com o açúcar brasileiro perdendo importância e, com isso, diminuindo sensivelmente a força política da oligarquia rural situada no eixo Norte-Nordeste. Paralelamente, cresce bastante a demanda de exportação do café, o que faz

emergir – no lugar dos produtores de alimentos (principalmente cana-de-açúcar) do

Nordeste e os de metais em Minas Gerais – a aristocracia dos cafeicultores

paulistas. Essa última, ao contrário das anteriores, passa a investir grandes montantes de capital na nascente indústria brasileira (PRADO JR, 2006).

A contar da libertação dos escravos e da entrada progressiva de imigrantes no Brasil para as lavouras de café, as cidades conquistam progressiva autonomia em relação à tradicional vida rural. Logo, a terra farta de cafezais passa a representar, sobretudo, uma fonte de renda para custear a vida nos centros urbanos. Enfim, as cidades ganharam novo sentido com o café, ou, mais especificamente com o seu valor elevado na pauta de exportação. Toda essa situação teria prejudicado sensivelmente o modo de vida rural baseado na produção para o autoconsumo (HOLANDA, 1987).

Em plena primeira Guerra Mundial, mesmo adotando uma postura oficial de neutralidade, o Brasil viveu uma severa crise de desabastecimento acompanhada de grande aumento nos preços dos alimentos (pressionados pela venda direta aos países aliados em conflito) (FAUSTO, 2006). Justamente nesse período, através do

Decreto 13.069, criou-se o Comissionário de Alimentação Pública, com o propósito

de monitorar o comércio atacadista de alimentos, através do controle do abastecimento e preços (BRASIL, 1918).

(39)

tentativa de regulação do mercado de açúcar (LINHARES; SILVA, 1979; PRADO, 1993).

Para melhor compreensão daquela iniciativa pioneira no âmbito de uma política nacional de alimentação, é preciso considerar que na década 1910, a exportação de café, sustentáculo da economia do eixo sul-sudeste, caiu

severamente. No nordeste, as seguidas secas – sobretudo o horror vivido em 19151

– criava uma situação de medo e instabilidade social de difícil controle. Por outro lado, a greve geral iniciada em julho de 1917 surpreendeu a indústria e o comércio, dada a organização operária, sem precedentes na história do Brasil, com importantes lideres imigrantes, diversos dos quais identificados com o anarquismo e o comunismo (VICENTINO; DORIGO, 2010; PRADO, 1993).

Por volta de 1915, ao passo que a elite cafeeira aumentava o padrão econômico de vida em virtude do êxito nas exportações, a maioria dos brasileiros convivia com a carestia e o desabastecimento de alimentos e outros bens de consumo indispensáveis (FAUSTO, 2006).

Contudo, foi com fundamento, dentre outros, na necessidade de ampliar a produção nacional para exportação de alimentos aos países aliados (hoje

identificada como preocupação com a “segurança alimentar”) que o Brasil resolver

decretar uma série de medidas para organizar o abastecimento alimentar (LINHARES, 1979).

(...) Considerando que o Brasil, assim de concorrer efficientemente para a alimentação dos paizes alliados e manter o equilibrio de sua balança commercial internacional, tem o maior interesse em que sua exportação seja a mais variada e copiosa que fôr possivel;

Considerando, porém, que, a exemplo das nações belligerantes e até neutras, essa exportação deve ser fiscalizada e mantida dentro de certos limites, afim de que se não aggrave ainda mais a carestia da vida que já se faz sentir em alguns centros populosos do paiz, tornando cada vez mais difficil a subsistencia de todos, especialmente a do operariado;

Considerando que o Governo Brasileiro, si por um lado cumpre com firmeza seus deveres de alliado, não póde, por outro lado, deixar de attender aos

1 Consoante à impressionante narrativa de Raquel de Queiroz no clássico “O quinze”, escrito em 1930, a insuficiência de água e alimentos no sertão nordestino deu causa naquele ano a muito sofrimento e morte (vidas abreviadas pela inanição).

(40)

justos reclamos das classes consumidoras, cujos legitimos interesses podem e devem ser conjugados aos dos productores;

Considerando, finalmente, que se trata no caso de verdadeira medida de necessidade publica e como tal de natureza inadiavel; (...)

(BRASIL, 1918)

Avançando algumas décadas na história até os anos de 1930, os inquéritos

realizados a partir de 1932 – primeiramente em Recife com Josué de Castro –

desnudaram a crítica situação alimentar e nutricional em diferentes estratos populacionais no Brasil (L´ABBATE, 1988; CASTRO, 1946). À época, já sob a administração de Getúlio Vargas (à frente do governo provisório no período 1930/34), o país sofria com os nefastos efeitos de uma crise econômica mundial (queda do poder aquisitivo, desabastecimento, desemprego, etc.), cujo epicentro teria sido a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em novembro de 1929 (FAUSTO, 2006; FURTADO, 2007).

O advento do ano de 1930 assinala a derrocada do poder capitaneado pela política café-com-leite, protagonizada pela conjugação de forças entre a oligarquia cafeeira paulista e os latifundiários mineiros. Essa mudança na elite dominante do Estado foi causa de uma grave tensão política, cuja instabilidade cresceu ainda mais quando o presidente Vargas nomeou o militar João Alberto Lins de Barros, pernambucano e ex-guerrilheiro da Coluna Prestes, como governador de São Paulo.

Malgrado a economia nacional já revelasse exaustão desde meados da década de 1920, por força da violenta queda de preços do café no mercado externo, a dramática desvalorização das ações no mercado financeiro em todo o mundo, por

efeito do aludido crash da bolsa estadunidense, promoveu uma redução, sem

precedentes, dos negócios no mercado internacional, motivando o fechamento em série de fábricas (FIGUEIRA, 2011).

(41)

periférica) despontava como um dos primeiros a superar a crise. No entanto, foram

preservados os aparelhos de dominação do período anterior (VICENTINO; DORIGO,

2010; PRADO JR, 2006).

2.3 “Alimentação racional”e o processo de formação profissional em Nutrição

No Brasil dos anos 1930 e 1940, durante o Estado Novo, a alimentação do

brasileiro – assumida como problema, cuja solução deveria compreender as suas

dimensões fisiológica, dietética, higiênico-sanitária e social – converteu-se em objeto

de interesse para pesquisadores da nascente ciência da nutrição, produzindo-se uma expressiva quantidade de estudos sobre carências nutricionais e outros temas relacionados. Muitos intelectuais, atuantes no serviço público, entre eles Josué de Castro, buscavam alinhar seus interesses científicos com as políticas estatais desenvolvimentistas, voltadas à integração nacional, que marcaram a história política do Brasil nesse período (RODRIGES, 2011; CHAVES, 2009; PRADO, 1993; LINHARES; SILVA, 1979).

Foi um período no qual a alimentação teve destacada importância, tanto que se criou no serviço público e na iniciativa privada (com incentivo fiscal) um conjunto

de órgãos e divisões especializados em fomentar ações de “alimentação racional” –

incluindo-se, além da educação alimentar, a regulação da produção agropecuária e

da comercialização de alimentos, com vistas a superar o “subdesenvolvimento”.

Nessa tarefa, destacaram-se a Seção de Nutrição da Divisão de Organização Sanitária do Departamento Nacional de Saúde e o Serviço Técnico de Alimentação Nacional da Coordenação da Mobilização Econômica, de onde partiram políticas sociais, articuladas a setores empresariais, resultando na criação, dentre outras estruturas, de restaurantes populares, do Serviço Central de Alimentação, da Delegacia Executiva de Produção Nacional (Ministério da Agricultura) e do Serviço Social da Indústria (Federação Nacional da Indústria) (RODRIGES, 2011; LIMA, 1997; CASTRO, 1946; SILVA, 1996; PRADO, 1993).

(42)

Serviço de Policiamento da Alimentação Pública, junto ao Departamento Estadual de Saúde, dirigido a fiscalizar locais de venda e produção de alimentos (SÃO PAULO, 1938).

O campo profissional em nutrição no Brasil surgiu no contexto das mudanças econômico-político-sociais e culturais do país 1930-1940, junto com sua afirmação como disciplina implicada com tal cenário em transformação. A formação de nutricionistas no país começou em São Paulo e Rio de Janeiro nos anos 1939 e 1940. Os primeiros Cursos de bacharelado foram criados na Universidade de São Paulo, em 1943 (a partir do curso de nutricionista técnicos do Serviço Central de

Alimentação do IAPI – Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários) e na

Universidade do Rio de Janeiro (inicialmente vinculado ao SAPS – Serviço de

Alimentação da Previdência Social) (VASCONCELOS, 2001).

Durante a segunda guerra mundial, em meio às severas dificuldades de logística comercial com o mercado externo, a ciência da nutrição foi frquentemente empregada pra justificar o interesse empresarial de ampliar o consumo interno de determinados alimentos, prejudicados pela redução da pauta de exportação, como ocorreu com a laranja.

A conjuntura da produção de laranjas, em 1940, possibilitava uma tentativa de intervenção pela via educativa. Paula Souza fora aos microfones da Rádio Educadora para inaugurar a Campanha da Laranja. (...) os produtores paulistas estavam às voltas com dificuldades de exportação do produto para a Europa, tradicional mercado de consumo dessa fruta. (...) o que denota uma articulação de interesses entre a promoção da saúde pública (no caso, dos bons hábitos alimentares) e a ampliação do mercado consumidor interno para itens da lavoura nacional (no caso, a laranja). (...) Comer laranjas passaria a ser, a partir de então, um ato patriótico e parte do esforço de manutenção da produção econômica brasileira, diante da situação de guerra na Europa (RODRIGUES; VASCONCELLOS, 2007).

Imagem

Tabela 1  –  Princípios explícitos da Constituição Federal identificados com o Direito  à Alimentação, Brasil, 1988
Tabela  2  –   Normas  da  Constituição  da  República  Federativa  do  Brasil  implicadas  com  o  Direito  à  Alimentação
Figura 1 -  Espirais de bases de dados inter-relacionadas por triangulação de métodos
Figura 3  –  Passos da Análise preliminar
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