• Nenhum resultado encontrado

Maximiliano, Guack e os Botocudos: construção de afinidades

Capítulo 1: A viagem, os antecedentes e a região visitada

1.4 Maximiliano, Guack e os Botocudos: construção de afinidades

É no primeiro capítulo do segundo tomo que o principal interlocutor de Maximiliano no que tange sua interpretação dos índios Botocudos aparece; ao longo deste capítulo que as opiniões proferidas pelo príncipe são constantemente cotejadas e legitimadas por Guack, índio que o acompanha desde a estadia na região de Belmonte63.

Se aos olhos de Maximiliano, os Botocudos são passíveis de serem civilizados, acreditamos que Guack desempenha um papel importantíssimo neste processo. Ao longo do primeiro tomo do diário de viagem, os Botocudos aparecem como criaturas selvagens e de extrema fealdade:

“A vista dos “Botocudos” causou-nos indescritível espanto; nunca viramos antes seres tão estranhos e feios. Tinham o rosto enormemente desfigurado por grandes pedaços de pau, que atravessavam no lábio inferior e nas orelhas: destarte, o lábio inferior fica muito projetado para a frente, e as orelhas de alguns pendem como azas largas sobre os ombros: os corpos bronzeados estavam completamente sujos. [...] Muitos deles tiveram varíola havia pouco: ainda estavam completamente cobertos de cicatrizes e crostas, que, somando-se à grande magreza trazida pela doença, aumentavam ainda mais a fealdade natural.”64

Além das descrições físicas65, Maximiliano oferece explicação ao uso e rituais envolvendo a ornamentação do batoque, ao corte de cabelo, às partes sexuais66, pinturas de corpo, caráter moral, utensílios, língua, rituais mortuários e habitação. Em relação às

63 “Quäck entrementes já fazia parte da expedição, como também Antônio Tira-Cru, o cozinheiro, que

Wied representou de costas com sua espingarda, um chifre de pólvora e um cantil d’água.” LÖSCHNER, Renate. Introdução. Viagem ao Brasil do Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied. Biblioteca Brasiliana da Robert Bosch GmbH. Petrópolis: Kapa Editorial, 2001, p. 31.

64 WIED-NEUWIED, Maximiliano von. Op. cit. p. 175. Maximiliano leva um crânio de um jovem

Botocudo de volta para a Alemanha e o entrega ao gabinete de um de seus principais mentores, Blumenbach. Segundo Manuela Carneiro da Cunha, quando este analisa o crânio, “o classifica a meio caminho entre o orangotango e o homem.”. CUNHA, Manuela Carneiro da. Política Indigenista... Op. cit. p. 133.

65 “A antropologia física do passado foi muito influenciada pelo conceito de “tipo”. A partir de

observações em uma população chegava-se a uma abstração, constituída pelo que o pesquisador considerava como a melhor (ou ideal) representação da mesma.”. SALZANO, Francisco M. O Velho e o Novo. Antropologia física e história Indígena. In.: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos Índios... op. cit., p. 32.

66 Ao comentar sobre as partes sexuais, Maximiliano parece lembrar da tese de Buffon de que os índios

americanos, assim como os animais da região, estavam fadados ao desaparecimento pois eram pequenos e tudo neles, deste modo, era pequeno. (Cf. GERBI, Antonello. La disputa del Nuevo Mundo. Historia de uma polémica 1750-1900. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1993.): “Os órgãos sexuais masculinos parece serem sempre de tamanho medíocre nos povos nativos da América do Sul; desse ponto de vista dá-se com êles o contrário do que acontece com as tribus africanas da raça etiópica, como no-lo informa Blumenbach.”. WIED-NEUWIED, Maximiliano von. Op.cit., p. 278.

demais grupos, para Maximiliano os Botocudos são destituídos de gosto artístico, têm algum grau de civilização, pois não fazem deformações em seus corpos, mas não deixam de ser selvagens, quase animais e extremamente preguiçosos, praticamente movidos à comida e aguardente67. Vez por outra, Maximiliano deixa escapar sua ingenuidade perante os mitos e histórias que escuta sobre os Botocudos e seu preconceito em relação aos negros; apesar de ao longo de todo o diário insistir em dizer que nunca presenciou cenas antropofágicas por parte dos Botocudos, ele diz: “Seja como for, como espero mostrar adiante, esses selvagens não podem ser isentados da culpa de comer carne humana; parece, todavia, certo, que não o fazem por achá-la mais saborosa, senão que raramente se entregam a essa inqualificável abjeção, e só com o fito de satisfazer a sede de vingança. Tem-se dito que os “tapuias” preferem a qualquer outra a carne dos negros; nada posso decidir a tal respeito, mas é também crença que os Botocudos tem os negros como uma espécie de macacos, chamando-os por isso macacos da terra.”68.

Em seu diário, Maximiliano encontra-se com os ‘Botocudos’ em dois momentos distintos: com os de rio Doce, e com os do rio Grande, onde conhece Guack69.A

primeira afirmação feita por Maximiliano a respeito dos ‘Botocudos’70 é que esta denominação é européia, que eles teoricamente descendem dos ‘Aimoré’, mas que tampouco se sabe sobre estes71. A seguir, delimita de certo modo a localização

67 “Uma vez instalados, a necessidade mais imperiosa dos selvagens é a alimentação; não há limites ao

seu apetite, pelo que comem com grande avidez e, enquanto comem, são cegos e surdos para tudo quanto se passa ao redor. Para conseguir a sua amizade, basta que se lhes encha bem o estômago, e, si a isso se acrescentar algum presente, ter-se-á como certa a sua dedicação.”. WIED-NEUWIED, Maximiliano von. Op.cit., p. 285.

68 Ibidem, p. 286.

69 Comentário de Câmara Cascudo a respeito de Guack: “”Um índio Botocudo afeiçoou-se de tal forma a

Wied que este o levou para a Europa. Foi o jovem Quêck, tema de variados estudos na Alemanha e que chegou a falar fluentemente o idioma de seu amo. Com Quêck o príncipe levou igualmente um negro que o servira.” CASCUDO, Luis da Câmara. O Príncipe... op.cit., p. 32.

70 Os demais capítulos dos tomos dizem respeito ao restante da viagem. O apêndice trata de sugestões

oferecidas por Maximiliano “Sobre a maneira de se empreenderem no Brasil viagens relativas à história natural”, e contém vocabulários dos povos indígenas mencionados no diário e um mapa do Brasil com o traçado dos locais percorridos.

71 Sobre a ocupação do sertão leste, Hal Langfur afirma, “It was, however, especially in the Eastern

Sertão that Indians continued to keep the territorial ambitions of colonial society in check. The Puri resolutely held the southern reaches of this tropical and subtropical forest separating Minas Gerais from the Atlantic coast. Their domain stretched from the Paraíba River to the low mountains of the Mantiqueira range and the upper reaches of the Doce River. Ranging roughly from north to south, the Kamakã, Pataxó, Kopoxó, Kutaxó, Monoxó, Kumanaxó, Panhame, Maxakali, Malali, and Makoni inhabited the forests dividing Minas Gerais from coastal Bahia and Espírito Santo, including portions of the Pardo, Jequitinhonha, Mucuri, São Mateus and Doce river valleys. Vying for the territory of these groups, moving across a vast expanse of mountainous terrain extending from the Pomba River north to the Pardo River and beyond, the Aimoré or Botocudo, as they were increasingly called after the middle of the 25

geográfica onde os ‘Botocudos’ podem ser encontrados: próximos ao rio Doce e ao rio Grande de Belmonte. Maximiliano, então, faz rápida referência à guerra iniciada por D. João VI em relação aos ‘Botocudos’; é justamente em relação à guerra que reside a principal diferença entre os ‘Botocudos’ do rio Doce e os de Belmonte. Os ‘Botocudos’ de rio Doce ainda estão em conflito com os colonos, sendo necessária a constante vigília por parte dos postos militares, enquanto que os ‘Botocudos’ de Belmonte já estão convivendo em paz com os colonos. Sobre o rio Doce, onde há oito postos militares, Maximiliano afirma:

“[...] A tribo dos ‘Botocudos’ (assim chamada pelos europeus) vagueia nas florestas, à beira do rio Doce, até as nascentes deste na Capitania de Minas Gerais.

Esses selvagens se distinguem pelo costume de comer carne humana e pelo espírito guerreiro: têm oferecido, até agora, obstinada resistência aos portugueses. Se algumas vezes se mostraram amigáveis em certo lugar, cometeram excessos e hostilidades em outro; daí nuca ter havido um entendimento duradouro com eles. Muitos anos atrás, existia um posto militar (‘destacamento’) de sete soldados a oito ou dez léguas do rio Doce acima, no local onde hoje se ergue a ‘povoação’ de Linhares; esse posto estava guarnecido com uma peça de canhão para proteger a projetada estrada nova para Minas. A peça, a princípio, manteve os selvagens à distância, mas, à proporção que foram conhecendo melhor os europeus e suas armas, os temores desapareceram. De uma feita assaltaram repentinamente o “quartel” mataram um dos soldados, e teriam apanhado e massacrado os outros, se estes não fugissem, e procurassem escapar pelo rio, tomando uma canoa, que aconteceu justamente vir chegando com salvação. Não podendo alcançá-los, os selvagens encheram o canhão de pedras e retirar-me para as selvas.”72

Parece-nos bastante significativa a escolha de Maximiliano em descrever a região ocupada pelos ‘Botocudos’ com os quais já se obteve paz. Maximiliano obteve passaportes e autorizações para entrar no Brasil do ministro Conde da Barca. À página 171 do diário, Maximiliano afirma que “o ministro possui consideráveis trechos de terra nesses rincões, às margens do Mucuri, tendo-se tomado medidas para protegê-los dos selvagens.”. Obter condições de paz, em um momento onde é necessário desbravar uma região geográfica, parece ser requisito mínimo; de modo que romper com o mito em torno dos ‘Botocudos’, de comedores de carne humana, selvagens e ameaçadores, se torna imprescindível.

eighteenth century, blocked settlement and exploration for new gold and diamond deposits.” LANGFUR, Hal. Op. cit., p. 223.

72 WIED-NEUWIED, Maximiliano von. Op. cit., p. 149-151.

Através de seu relato, Maximiliano oferece uma espécie de cartilha a respeito dos ‘Botocudos’, legitimada pela sua posição não só como naturalista, mas, sobretudo como europeu. Seria preciso, portanto, colonizar, garantir a supremacia européia antes que a região tão promissora pudesse cair novamente nas mãos de seus habitantes nativos.

Para tal, Maximiliano oferece sua solução em relação aos ‘Botocudos’: “Para cima do Belmonte, no território de Minas Novas, há outro lugar em que os ‘Botocudos’ fizeram plantações; daí também se retiraram novamente para as florestas, tendo os Maxacaris fundado no lugar uma aldeia ou grande ‘rancharia’. Esses exemplos mostram que os ‘Botocudos’ já se vão aproximando da civilização, mas provam, igualmente, que lhes é muito difícil renunciar à vida natural de nômades caçadores, de vez que abandonam com tanta facilidade as plantações feitas por eles mesmos. Somente o aumento da população européia e a diminuição dos terrenos de caça podem induzi-los a uma mudança gradual do modo de vida.”73.

Civilizar, no sentido de estabelecer-se de maneira fixa em um território, com o auxilio e a presença dos europeus, parece ser a opção oferecida por Maximiliano para conseguir lidar com o sertão. Hal Langfur aponta para esta perspectiva74.

73 WIED-NEUWIED, Maximiliano von. Op. cit., p. 242.

74 “By the turn of the nineteenth century, a growing consensus identified the opening of both the Doce

and Jequitinhonha river valleys, not only to gold and diamond exploration but to all manner of commerce, as nothing less than a necessity for future prosperity. The long-held notion that the wilderness barrier served the interests of the state was steadily giving way to the conviction that little had been attempted by way of territorial expansion, that Indian resistance had been largely responsible for frustrating moves to exploit the region’s wealth, and that trade with the coastal population and the wider Atlantic world, not hidden gold, held the key to restoring the captaincy to its former prosperity.”. LANGFUR, Hal. Op. cit., p. 240-241.

Figuras 2 e 3. RICHTER, Johann Heinrich.“Retrato do Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied com o Botocudo Quack”. (assinado e datado 1828). Óleo sobre tela, 210 x 126 cm; e Príncipe Karl de Wied-Neuwied. “Figura de busto do botocudo Quack.”. (por volta de 1830). Óleo sobre tela, 62 x 51,5 cm. LÖSCHNER, Renate e KIRSCHSTEIN-GAMBER, Birgit (reds.). Viagem ao Brasil do Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied. Biblioteca Brasiliana da Robert Bosch GmbH. Petrópolis: Kapa Editorial, 2001.

Entretanto, já nas primeiras páginas do primeiro capítulo do segundo tomo, eis o que Maximiliano tem a dizer sobre eles, após justificar a sua escolha em tratar dos Botocudos por conta dos poucos escritos verossímeis que se tem:

“A Natureza dotou esses índios de boa compleição, sendo eles melhor conformados e mais belos do que os das demais tribos. Apresentam, em geral, estatura mediana, não obstante apresentarem alguns porte mais avantajado. São fortes, em regra largos de peito e espadaúdos, mas sempre bem proporcionados; mãos e pés delicados. Como nas outras tribos, têm traços fisionômicos muito salientes, as maçãs do rosto grandes, o rosto às vezes achatado, mas, ainda assim, não de raro bastante regular; olhos, na sua maioria, pequenos, às vezes grandes, mas em geral pretos e vivos; lábios e nariz de ordinário grossos. Contam que também alguns existem com olhos azuis, referindo-se a propósito o caso da mulher de um chefe do Belmonte, tida como de grande beleza pelos seus conterrâneos.”75

De criaturas horrendas, passam a ser mais belos que os demais grupos. E como se não bastasse, alguns têm inclusive olhos azuis. Estes são os primeiros indícios da construção de afinidades com os Botocudos – assim como as descrições da natureza tiveram início no âmbito físico, a aproximação de Maximiliano, e assim, dos europeus

75 WIED-NEUWIED, Maximiliano von. Op.cit., p. 274-275.

aristocratas, com os Botocudos, se dá pela beleza e pelos raros olhos azuis. Seja do ponto de vista cronológico, quanto da construção feita por Maximiliano de seu diário, a esta altura, Guack já fazia parte da expedição. Em O Príncipe Maximiliano no Brasil, Câmara Cascudo escreveu alguns parágrafos em suas notas sobre Guack:

“Quando o Príncipe Max de Wied chegou a Porto Seguro soube que o professor de latim, Morreisa de Pinka, possuía vários índios Botocudos que lhe deixara um senhor Aeridos Marcatina da Cunha. Depois de muitas tentativas de compra, recusadas pelo mestre- escola, zu Wied adquiriu do Morreisa um cavalo e uma espingarda e presenteou-o com um binóculo esplêndido. Rendido às amabilidades do explorador, o mestre De Pinka acedeu na venda e Quêck passou a ser propriedade de zu Wied. Acompanhou-o em todas as jornadas, caçando de flecha e sendo duma fidelidade a toda prova. [...]

Era ágil, robusto, animado e grande caçador. Preferia sempre a espingarda ao arco. Nas caçadas seguia alegremente a comitiva fidalga, atirando aos coelhos e raposas. Só mandado é que tomava o velho arco e fazia tiros com flechas.”76

À medida que oferece características genéricas, Maximiliano contrapõe algumas de suas colocações com aquilo que lhe é contado por Guack. Quando, por exemplo, diz que os Botocudos dançavam em suas festas, Maximiliano afirma, “Tem-se dito que para tornar uma festa perfeitamente alegre, homens e mulheres se reúnem em círculo e dançam; Queck porém, um de meus Botocudos afirmou-me nunca ter assistido dança dessa espécie. Em compensação, entregam-se a outros exercícios e divertimentos.”77. Maximiliano passa a descrever estes “outros exercícios e divertimentos”, como se fizesse suas as palavras de Guack.

Ademais, ao discorrer sobre as constantes brigas entre os Botocudos e seus “vizinhos” – outros grupos indígenas e os colonos – Maximiliano reproduz aquilo que escutou em sua estadia na região de Belmonte, sempre referindo-se a Guack para fins de legitimação, como, por exemplo, ao descrever as práticas dos Botocudos quando venciam seus inimigos. “Na região do baixo Belmonte asseguraram-me que se acaso derrubam a flechadas um “pataxó” e cima de uma árvore, deixam-no apodrecer intacto sobre o solo. Esta asserção é todavia desmentida pelo depoimento de meu Botocudo Queck. Das numerosas hordas dessa tribo, que habitam o Rio Grande de Belmonte, algumas há que vivem em harmonia com os portugueses. Entram nesse número as dos chefes (“capitães”) Gipakeiu (Maciengieng), Jeparack, June (Kerengnatnuck) e ainda

76 CASCUDO, Luis da Câmara. O Príncipe... Op.cit., p.56-57. 77 WIED-NEUWIED, Maximiliano von. Op. cit., p. 298.

uma quarta, que todos hoje podem acompanhar nas matas, sem receio.”78. Após este testemunho de Guack, Maximiliano discorre sobre as reclamações de alguns Botocudos em relação a determinados chefes, muito provavelmente feitas pelo próprio Guack, e também sobre a maneira como é feita a “guerra contra os selvagens”79. Ao fim, declara que os europeus ainda não têm força suficiente para tomar conta de toda a mata e alerta quanto ao perigo de que os “selvagens” por ventura se unam, e generaliza concluindo que estes meio de se lutar referem-se a todos os grupos indígenas na costa oriental do Brasil.

É neste momento que as palavras de Maximiliano voltam-se à questão da antropofagia, cerne de toda a discussão envolvendo os índios Botocudos. Maximiliano inicia sua colocação a este respeito afirmando que muitos observadores podem ter se enganado quanto à prática antropofágica por parte dos índios brasileiros já que “os membros dos macacos, depois de secos, assemelham-se muito aos das pessoas e poderiam ter passado como tais.”. Contudo, afirma também que nem por isso a prática antropofágica não seja comum, descrevendo as práticas dos tupinambás e demais índios da costa para rituais com este fim; Maximiliano chega inclusive a indicar em nota que se leia a “história verídica de Hans Staden”sobre o assunto. Por fim, afirma que “todas essas tribos tupis acham-se civilizadas nos dias de hoje, persistindo porém o hábito da antropofagia em algumas tribos de “tapuias”, como os Botocudos e os “Puris”.”. Novamente é Guack quem legitima esta sua afirmação:

“Quando se interrogavam os Botocudos de Belmonte sobre esse horrível costume, negavam sempre a sua existência entre eles; acrescentavam porém usarem-no ainda Jonué e outros compatrícios seus: que faria ele então dos braços e pernas cuidadosamente cortados aos inimigos mortos? Além disso, o que contou o jovem Botocudo Queck, tira qualquer dúvida a respeito. Durante muito tempo receou ele falar-me a verdade sobre o assunto; resolveu, porém, finalmente fazê-lo, depois que lhe assegurei saber que todos os da sua horda, no baixo Belmonte, haviam desde muito tempo abandonado aquele hábito. Contou-me então a cena que vou narrar, e de cuja verdade devemos tanto menos duvidas, quanto mais difícil nos foi conseguir dele a sua descrição.” 80

É evidente que os índios, Botocudos ou quaisquer outros, não afirmariam aos ventos, em plena época de disputas territoriais e perseguições, que praticavam antropofagia ou qualquer outro tipo de coisa que fossem negativas aos olhos dos

78 WIED-NEUWIED, Maximiliano von. Op.cit., p. 300. 79 Ibidem, p. 300-302.

80 Todas as notas deste parágrafo remetem a Ibidem, p. 303.

portugueses e luso-brasileiros; se é que é sequer plausível tomar a possibilidade que a prática existia entre alguns indígenas como a norma geral para todos. Certamente havia rixas entre os índios aglomerados próximos a diferentes bases militares; um grupo acusaria o outro para obter benesses para si. Nos parágrafos que seguem o acima citado, Guack mais parece dizer com muitos detalhes aquilo que no fundo, Maximiliano queria ouvir e depois publicar para que outros europeus vissem, do que de fato poderia ter acontecido. Além disso, Guack há muito transitava entre os portugueses e luso- brasileiros, entre as bases militares – era tradutor da expedição, não só do ponto de vista lingüístico, mas também em relação aos modos e costumes – já estava muito próximo e inserido no contexto das disputas coloniais para ter presenciado qualquer tipo de cena de cunho antropofágico.

Guack torna a aparecer ao longo deste capítulo para questionar a afirmação dos portugueses de que os Botocudos conheciam remédios contra mordidas de cobras81, para negar a afirmação de Eschwege de que os Botocudos podem chegar a ser tão brancos quanto os europeus82, e para afirmar a sua crença na monogênese étnica dos

grupos indígenas das Américas, apesar de afirmar que “é extremamente difícil decifrar o mistério da origem de muitos grupos raciais da América”83. Maximiliano conclui o capítulo afirmando que os índios brasileiros estão muito aquém de muitos dos povos das Américas, inclusive daqueles visitados por Humboldt, e que os brasileiros pouco interesse despertam para fins de estudos84: