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CAPÍTULO 1 – MEDIAÇÕES, TECNOLOGIA E ENSINO-APRENDIZAGEM

1.1 O conceito de mediação em diferentes tradições teóricas

1.1.3 Mediação nos estudos sociais da tecnologia

Para pensarmos o conceito de mediação com o advento das TDIC é necessário levar em conta que a introdução dos computadores na comunicação adicionou outras várias dimensões às interações, que as moldam e são moldadas por elas. É essencial pensar a introdução da tecnologia como responsável por determinados efeitos nas interações que não eram possíveis anteriormente.

Com o uso das tecnologias o termo mediação refere-se tanto à questão social quanto à técnica. Podemos dizer que há uma mediação tecnológica porque o instrumento utilizado estrutura a prática; e social, porque os sentidos no uso moldam-se pelo corpo social e se regeneram nele (JOUËT 1993). Além dessa visão de Jouët, acrescento que há ainda na dimensão das mediações nos estudos da tecnologia a mediação político- institucional. Como veremos adiante, as diretrizes políticas são responsáveis por moldar determinadas escolhas tecnológicas, portanto passam também a agir como mediadoras políticas.

31 1.1.3.1 – Mediação na Teoria Ator Rede

O filósofo e sociólogo Bruno Latour aborda o conceito de mediação,

mediadores e intermediários a partir da teoria ator-rede11 (TAR), mais especificamente, no texto On technical mediation – philosophy, sociology, genealogy (1994). Nessa vertente teórica, a chave para compreender o funcionamento dos sistemas sócio-técnicos é desconsiderar, por princípio, diferenças de status concedidas a priori para os agentes humanos e não-humanos, e privilegiar, no lugar dessas diferenças, as transformações identitárias e funcionais mútuas sofridas por humanos e não-humanos quando vinculados entre si, algo que a Teoria sociocultural já anunciava, mas que, em Latour, encontra uma formulação radical. Nisso, principalmente, conforme já sugerido, distingue-se a TAR da Teoria da Atividade e das teorias de mediação dos estudos culturais.

Para exemplificar o conceito, Latour (1994) toma o antigo e persistente debate sobre a necessidade, ou não, de banir-se o acesso do cidadão a armas de fogo, em especial, nos EUA e resume as duas posições em jogo no debate, da seguinte forma:

(i) Armas matam pessoas.

(ii) Pessoas matam pessoas, não armas.

No primeiro slogan há uma visão que o autor chama de materialista, na qual a arma atuaria por virtude própria do material dos seus componentes e não pelas qualidades sociais do seu portador. O segundo slogan traz a visão sociológica da Associação Nacional de Armas (National Rifle Association – NRA), na qual a arma não faria nada por virtude própria, seria neutra e agiria apenas de acordo com a vontade ou índole de quem a porta.

Para Latour (1994), ambos os argumentos perdem a validade quando se constata que a fusão entre homem e arma cria um terceiro agente, este sim capaz de matar, cuja ação não pode ser prevista com precisão, justamente porque suas ações resultam de

11 A palavra “ator”, na Teoria Ator-Rede faz referência a entidades humanas e não-humanas; todo ator é ainda

um conglomerado de atributos enredados entre si, ou seja, todo ator é um ator-rede, uma entidade cuja identidade é constantemente renegociada nos processos de sua associação a outros atores (BUZATO, 2011).

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tensas negociações de interesses entre os dois agentes que o constituem, ambos capazes de exercer e transportar agência, embora agências de qualidades e tipos diferentes.

Dito de outra forma, com a criação de um novo agente, criam-se também novas metas para concluir uma ação, que não pertencem a nenhum dos dois agentes originais individualmente. Essa incerteza das metas é chamada pelo autor de translação, ou seja, umdeslocamento, uma direção, uma invenção por meio da qual objeto e sujeito tornam-se uma só coisa e desempenham certa trajetória de ação e de identidade.

Toda translação consiste em diferentes momentos nos quais um ator-focal recruta, persuade e posiciona outros atores, convencendo- os de que, ao atenderem os interesses do ator-focal, estarão atendendo aos seus próprios interesses. Se o processo for conduzido com sucesso, haverá um alinhamento permanente desses interesses, e o ator-rede tornar-se-á não apenas estável como extremamente poderoso. Em verdade, quanto mais heterogêneo for, quanto mais agregar elementos diferentes entre si, mais poderoso será (BUZATO, 2011, p. 04).

É nisso, exatamente, que consiste para Latour (1994) o que podemos chamar de mediação, isto é, o deslocamento e redirecionamento constantes da ação que transforma os agentes envolvidos ao criar uma conexão que não existia anteriormente.

Pensando no contexto das plataformas aqui trabalhadas, se um aprendiz entra no Galanet, ele deixa de ser um sujeito humano que usa unidirecionalmente um determinado site como meio (não-humano) para uma meta definida, qual seja, a de aprender uma língua. A ideia seria pensar o conjunto usuário+plataforma como um terceiro elemento. A identidade desse elemento é dada pelo “enredo” em que ele se envolveu ao conectar-se com a plataforma, já que esta adquiriu sua identidade de plataforma da mesma forma, isto é, inscrevendo-se em translações e conectando-se a outros agentes. No caso do Galanet, pode-se dizer que esse terceiro agente torna-se um “cidadão global” que não se submete à hegemonia do inglês. Já no contexto do Busuu, o terceiro elemento formado pela junção da plataforma com o usuário torna-se um “professor de línguas que ensina de graça”, ou um “aluno que aprende de graça”.

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Quanto à incerteza sobre as metas devido aos deslocamentos e redirecionamentos constantes dos agentes, pode-se pensar em uma rede de outros atores, humanos e não humanos com seus interesses e inclinações individuais, que podem desviar o trajeto percorrido da meta prevista inicialmente. É o caso, por exemplo, do usuário que encontra um parceiro fixo no Busuu e prefere migrar as conversas para o Skype; ou ainda, os alunos que se encontram no Galanet podem achar que em vez de intercompreensão seu real interesse em participar da plataforma é falar a língua do outro e a partir disso iniciarem práticas de teletandem não previstas na plataforma. Os desvios podem acontecer ainda pela impossibilidade de um usuário de acompanhar a velocidade de um chat e resolver mudar o tipo de atividade para a qual destinou tempo no computador, trocando, por exemplo, o site que usa para estudar pelo site que usa para se divertir.

Para prevenir e gerenciar possíveis desvios, os idealizadores das plataformas encontram modos de assegurar uma participação dos usuários introduzindo um certo compromisso em relação a um curso de ação na forma de um contrato, seja ele um contrato didático, como no Galanet, ou termos de uso e licenças de versões pagas, como no Busuu. Esses contratos, no entanto, podem não ser obedecidos. Se não há esse curso de ação e os usuários ficam livres para interagirem como e quando quiserem, também as plataformas têm suas identidades mudadas, e não se podem prever os resultados da sua ação. Sem essa previsão, não há instituição, nem tecnologia e, provavelmente, não há aprendizagem que possa ser reconhecida institucionalmente como tal, a menos que se adicione à translação algum outro elemento capaz de redirecionar as ações e identidades naquele sentido, como, por exemplo, materiais didáticos prescritivos de etapas a serem seguidas, novas formas de “certificação”, a instauração de “currículos ad hoc”, ou coisa semelhante.

Compararas plataformas, portanto, é comparar os caminhos pelos quais os interesses dos atores envolvidos são negociados e os percursos de translação gerenciados por coletivos híbridos sujeitos a movimentos de estabilização e desestabilização sucessivos.

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