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Quanto a ti, para tua salvação, proponho-me levar-te a bom caminho... [Dante. A Divina Comédia. I, 1] Nos países ocidentais, a medicina científica iniciada por Magendie, logrou êxitos extraordinários e o estudo da filosofia da Medicina tornou-se uma atividade ociosa em face da imensidão de conhecimentos postos à disposição dos médicos com influência direta na prática clínica. No entanto, apesar deste egoísmo muito peculiar da Medicina imposto aos seus discípulos, é lamentável saber que toda a prática médica é governada por conceitos e doutrinas só compreendidos pela discussão crítica filosófica e que só tem interessado a tão poucos. O resultado disso é a desorientação intelectual, a atitude ambivalente frente ao conhecimento e, conseqüentemente, a adesão, aceitação, condescendência ou desconhecimento relativos a doutrinas médicas não ortodoxas, não raro eivadas de concepções metafísicas, meros produtos da fantasia. Talvez seja este um dos motivos pelos quais os médicos, de tão notória influência na opinião pública, não tenham se pronunciado abertamente ou mesmo, como alguns, tenham aderido a essas formas contraditórias ou declaradamente pseudocientíficas de compreender e tratar enfermidades humanas. É exatamente a existência desses desvios significativos acerca dos critérios de validação do conhecimento, que constitui um problema epistemológico relevante e ainda não encarado de frente. Tal carência, ao menos no Brasil, tem permitido o livre exercício de práticas estranhas à natureza da ciência e da Medicina moderna, alheias aos seus rigores metodológicos.

Isso tudo certamente encoraja a geração e a prática de sistemas de patogenia e terapêutica estranhos, permite a negação ou o questionamento da soberania do método científico e reconhece, lamentavelmente, que a Medicina moderna vacila na ambivalência entre a especulação leviana e a atitude científica. Em consequência, fica exposta a fanatismos, a críticas agressivas de fundamentalistas interesseiros, a traficantes de sobrenatural, acatando contradições evidentes, tumultuando o ensino médico e estimulando os sectários desses sistemas artificiosos a pretenderem a criação de um hibridismo médico esquizofrênico.

A discussão crítica dos fundamentos filosóficos da Medicina, dos problemas filosóficos envolvidos na questão do conhecimento e prática médicos feita a seguir, fornecerá os elementos para a compreensão de como o seu corpo de saber foi edificado, como se justifica, como é adquirido, como evolui e em que medida se opõe a outros fundamentos que

pretendem amparar doutrinas diferentes. As escolhas dos métodos de pesquisa e a atitude dos médicos em relação aos problemas clínicos dependem em grande parcela da compreensão e discussão desses fundamentos filosóficos 54.

Esta discussão, pelos motivos que se tornarão aparentes, principia com as diferenças filosóficas entre empirismo e realismo. Na verdade, o problema a ser alcançado e abordado com aferro neste capítulo diz respeito ao conhecimento – como se processa e como evolui. A parte da filosofia que trata deste tema é a epistemologia ou “teoria do conhecimento”. Mas, uma primeira análise norteadora trata da ontologia.

Admite a ontologia a existência de certos princípios cujo conhecimento independe do método da ciência, visto que a percepção da realidade se verifica a partir da visão imediata das essências, intuição e bom senso. Essas convicções, de acordo com Heinemann, não são fundadas na experiência e é comum que se imiscuam com explicações metafísicas ou pseudocientíficas 55. A ontologia tenta descrever a realidade, mas neste afã se torna contrária à ciência (ontologia especulativa). É ela, no dizer de Comte-Sponville, uma parte da metafísica, definida esta no kantismo como fundamento da especulação acerca das realidades supra- sensíveis (que estão acima do que pode ser captado pelos sentidos) 56. Wulf, Pedersen e Rosemberg se referem à ontologia como a teoria do ser, que abarca questões sobre a natureza do pensamento, a natureza e a organização do ser, a realidade do mundo etc., situando-se do lado oposto à epistemologia, que trata de questões sobre o que se pode saber acerca do mundo

57.

Nível de discussão Posições filosóficas

Ontológico Realismo Anti-realismo ou idealismo Epistemológico Racionalismo Empirismo

Modificado de Wulf HR, Pedersen SA, Rosemberg R. 1990. Op.cit. p. 89.

Em nível ontológico, são duas as posições filosóficas: o realismo e o anti-realismo. Chama-se realismo a doutrina que afirma a existência de um mundo real independente do espírito humano, ou seja, que o mundo externo é real e que sua existência independe de nós e que os objetos, estruturas e mecanismos do mundo estimulam nossos sentidos 58, 59. Mayr se

54 Wulf HR, Pedersen SA, Rosemberg R. Philosophy of Medicine: an introduction. 2nd.e. Oxford:

Blackwell Scientific Publications, 1990. p. 16

55 Heinemann F. A filosofia no século XX. 3.ed. Trad. Alexandre F. Morujão. Lisboa: Fundação

Calosute Gulbenkian, 1983. p. 367.

56 Comte-Sponville A. Dicionário filosófico. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes,

2003. p. 424

57 Wulf HR, Pedersen SA, Rosemberg R. 1990. Op. cit. p.14 58Ib. 14

refere a isso como “realismo do senso comum”, ou seja, a admissão da existência de um mundo real independente das percepções humanas, conceito com o qual a maioria dos cientistas concorda, e esclarece ainda que não se trata de admitir objetividade em sentido absoluto, mas admitir que um mundo exista fora da influência da subjetividade das percepções humanas 60. Em Bunge, isto corresponde a idealismo científico, que “postula a existência autônoma do mundo externo, admite nossa ignorância e nos encoraja a explorá-lo”

61. Ainda Bunge, segundo Cupani e Pietrocola, “todas as operações da ciência, principalmente

a formulação de teorias e o teste experimental das mesmas implicam essa crença e ficariam privadas de sentido sem ela” 62.

Para Mayr:

Temos hoje muitas maneiras de testar as impressões dos nossos sentidos por meio de instrumentos e as previsões baseadas em tais observações se verificam tão invariavelmente que pareceria pouco vantajoso desafiar o realismo pragmático ou do senso comum 63.

Parece evidente que as percepções humanas do mundo real nos forneçam uma amostra limitada das características do mundo, como atestam o variado mundo visual, olfativo, auditivo etc. dos animais, mas tais aspectos foram adquiridos porque eles ajudaram a sobreviver e reproduzir no mundo em que eram relevantes para a sua sobrevivência 64.

A posição filosófica anti-realista ou idealista revela total descrença na realidade de um mundo externo, alegando que os objetos são “complexos estáveis de impressões sensoriais cuja causa não está fora da mente” 65. Do ponto de vista gnosiológico, o anti-realismo não admite o conhecimento da realidade em si, porque ela não existe ou porque só conhecemos as imagens, idéias ou conceitos dos objetos chamados à consciência 66.

De acordo com French, uma questão fundamental decorre da discussão sobre a realidade do mundo: o que nos dizem as teorias científicas? O realismo admite, como visto, que as teorias científicas nos dizem como o mundo é tanto em seus aspectos observáveis quanto inobserváveis. Mas, uma visão anti-realista, denominada instrumentalismo, afirma que

59 Comte-Sponville A. 2003. Op. cit. p. 505 60 Mayr E. 2008. Op. cit. p. 59

61 Bunge M. 2002. Op. cit. p. 329.

62 Cupani A, Pietrocola M. A relevância da epistemologia de mario Bunge para o ensino de ciências.

Cad. Bras. Ens. Fís., 9:100-125, 2002. p. 100.

63 Mayr E. 2008. Op. cit. p. 88 64 Ib. 108

65 Wulf HR, Pedersen SA, Rosemberg R. 1990. Op.cit. p. 89. 66 Comte-Sponville A. 2003. Op. cit. p. 289.

as teorias nos dizem como o mundo é, porém somente em seus aspectos observáveis. Uma terceira alternativa, que constitui uma forma mais moderna de anti-realismo, defende que só se pode compreender o mundo em seus aspectos observáveis e apenas como ele pode ser em seus aspectos inobserváveis (empirismo construtivo). No entanto, é o realismo científico que prevalece ao acatar as teorias aceitas pela comunidade científica, que foram testadas seriamente e sobreviveram a estes testes falseacionistas e que são amparadas por um corpo de evidências significativo 67.

O famoso “argumento sem milagres” do realismo, o mais convincente, é que somente o realismo explica o sucesso da ciência e que não faz desse sucesso um milagre. “As teorias científicas são tão espetacularmente bem sucedidas em termos de realizar previsões que então se mostram corretas. Ou isso é um milagre ou essas teorias acertaram.” 68

Um argumento poderoso contra o realismo, ao atacar a validade das teorias científicas, é denominado de metaindução pessimista. Este argumento retira sua argila de uma série de exemplos da história da ciência e não da própria ciência (daí metaindução) e é pessimista porque nega o realismo ao negar a veracidade das teorias científicas. São exemplos a teoria do flogisto, os humores da medicina galênica, a força vital, o éter óptico, a geração espontânea, o éter eletromagnético etc.

Outro argumento contra o realismo é o fato de existirem duas teorias bem apoiadas pela evidência e de se ter que decidir sobre qual delas está mais próxima da verdade, notadamente se elas se opõem ou fornecem explicações diferentes de um mesmo fato. Evidentemente, os realistas haverão de responder que esperam o surgimento de mais evidências para resolver o impasse. É possível supor, no entanto, que isto nunca venha a ocorrer e, assim, a qual teoria dar precedência? Aplicando a navalha Ockham, a resposta é “a mais simples”. Mas, que vínculo tem a simplicidade com a verdade? Um vínculo muito estreito, dizem, pois na natureza não existe sistema orgânico cujos mecanismos operantes desperdicem energia ou sejam excessivamente complexos quando poderiam ser mais simples. É correto supor que uma teoria cientificamente corroborada não pode se revelar falsa no futuro, apesar de preterida por outra melhor. Alega-se comumente que o sucesso da ciência impede que se considerem as teorias científicas como lucubrações passageiras e que serão desmentidas no futuro. O que ocorreu em Hiroshima e Nagasaki, fruto de uma intensa

67 French S. Ciência: conceitos-chaves em filosofia. Tadução André Caludat. Porto Alegre: Artmed,

2009. pp. 93-94.

atividade científica no âmbito da Física, não foi coisa de uma ciência que brinca de dar explicações passageiras, que só valem para determinado momento histórico.

Só em finais do século XX a Medicina aderiu definitivamente ao método científico, bem expressado na chamada “medicina baseada em evidências” e que estabelece uma hierarquia da força das evidências e a metodologia envolvida em cada uma.

Assim, o argumento da transitoriedade do valor das teorias científicas é néscio, pois a ciência é a única atividade humana a experimentar progresso e a fazer previsões com elevado índice de acertos. O argumento da transitoriedade é também perigoso, pois dá alento a fantasistas e asas aos obscurantistas 69 de todos os graus de ignorância, ma fé ou insanidade para que desmereçam a ciência em favor de achismos, crenças, fanatismos e todo o tipo de imposturas intelectuais. Se a discussão crítica é uma preciosidade nas sociedades democráticas, em ciência ela tende a ser mais responsável, pois exige provas do que se enuncia.

Em nível epistemológico o anti-realismo está associado ao empirismo.

A posição empirista merece uma análise mais aprofundada, embora sempre limitada ao escopo desta monografia. Nada mais justo do que iniciar esta discussão com uma citação muito conhecida de John Locke (1632-1704), cujo significado será analisado adiante:

Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um papel branco, desprovida de todos os caracteres, sem quaisquer idéias; como ela será suprida? De onde lhe provém este vasto estoque, que a ativa e que a ilimitada fantasia do homem pintou nela com uma variedade quase infinita? De onde apreende todos os materiais da razão e do conhecimento? A isto respondo com uma palavra, da experiência. Todo o nosso conhecimento está nela fundado, e dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento. Empregada tanto nos objetos sensíveis externos como nas operações internas de nossas mentes, que são por nós mesmos percebidas e refletidas, nossa observação supre nossos entendimentos com todos os materiais do pensamento. Dessas duas fontes de conhecimento jorram todas as nossas idéias, ou as que possivelmente teremos. 70

69 Em Bunge, obscurantista é “Qualquer atitude, escola ou movimento que ataque tanto as abordagens

racionais quanto as empíricas, e promova a cega adoção de dogmas, em seu lugar”. [Bunge M.

Dicionário de Filosofia. Tradução Gita K. Ginsburg. São Paulo: Perspectiva, 2002. p. 266.]

70 Locke J. Ensaio acerca do entendimento humano. Tradução de Anoar Aiex. In: Carta acerca da

intolerância; Segundo Tratado sobre o governo; Ensaio acerca do entendimento humano. John Locke. Trad. Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Livro II, Capítulo I, §2, p. 159

É este o credo empirista: a mente em seu estado original não passa de uma tábula rasa ou de “uma folha de papel em branco onde nela se inscrevem os dados da experiência, ou seja, sobre a qual a prática do mundo externo e a reflexão da pessoa sobre ela mesma imprimirão os sinais que chamamos conhecimento” 71. Para Hegel o empirismo surge da necessidade de um conteúdo concreto diante das teorias abstratas do entendimento, impossibilitadas de progredir para a determinação e vai procurar a verdade na experiência e não no pensamento 72.

Como salientado por Mondin, os filósofos ingleses, diferentemente dos filósofos continentais, como Descartes, que encaravam o problema do conhecimento do ponto de vista das ciências exatas (racionalismo), procuravam uma solução para este problema e, assim, buscavam um método de investigação que satisfizesse as exigências destas ciências (química, botânica, mecânica etc.) 73. A questão central da experiência é a observação de fatos concretos, não de idéias abstratas ou de princípios universais. Assinala Mondin que “... seu objetivo é a superação dos fatos, com a descoberta de relações constantes e leis estáveis, de forma a tornar possível a antecipação de ulteriores experiências” 74. Isso, evidentemente, impossibilitava a metafísica, pois nada se poderia saber sobre questões como a existência de Deus, a origem de todas as coisas, a finalidade da vida, a essência das coisas.

De acordo com Houaiss e Vilar, empirismo corresponde à “doutrina segundo a qual todo conhecimento provém unicamente da experiência, limitando-se ao que pode ser captado do mundo externo, pelos sentidos, ou do mundo subjetivo, pela introspecção, sendo geralmente descartadas as verdades reveladas e transcendentes do misticismo, ou apriorísticas e inatas do racionalismo” 75. Mora remata, acentuando que o termo deriva de vocábulo grego para significar “experiência” e, dentre outras, quer dizer informação proporcionada pelos sentidos. Ressalta ainda dois aspectos do empirismo. Um deles afirma que “todo conhecimento deriva da experiência e, em particular, da experiência dos sentidos”, ou seja, das informações enviadas ao cérebro pelos órgãos dos sentidos, enquanto a outra afirma que

71 Niccola U. Antologia ilustrada da filosofia: das origens à idade moderna. Trad. Maria Margherita

De Luca. São Paulo: Globo, 2005. p. 269.

72 Hegel GWF. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio: 1830/ G.W.F. Hegel; texto

completo, com adendos orais. Trad. Paulo Meneses e José Machado. São Paulo: Loyola, 1995. p. 102.

73Mondin B. Introdução à Filosofia: problemas, sistemas, autores e obras. 6.ed. Trad. J. Renard. São

Paulo: Edições Paulinas, 1980. p. 201.

74Ib. 201.

75 Houaiss A, Villar MS. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

“todo conhecimento deve ser justificado recorrendo aos sentidos”, isto é, não é conhecimento o que não é atestado pelos sentidos 76.

De acordo com Cantu, Jean le Rond d'Alembert (1717-1783) chamou a atenção para o fato de que o empirismo de Locke, aceito cegamente pelo vulgo, deixava de explicar algumas coisas fundamentais, por exemplo, se os sentidos nos oferecem sensações independentes, de que maneira a mente as reúne num só objeto? “Quando pego numa bola de neve, sinto o frio, a resistência, o peso; como é que essas três qualidades sensíveis se reúnem na idéia sensível de uma bola de neve?” 77 Cantu realça também que o teorema de Locke: não há senão sensação, carece, na visão de Jorge Berkeley (1684-1753), de completude, pois “[...] como um amontoado de sensações sobrepostas num ente que não tem senão a faculdade de recebê-las e de conservá-las se pode converter em razão?” 78

Como mencionado anteriormente, a filosofia clássica se preocupava com o problema do “ser”. De fato, os filósofos gregos interessavam-se pelo que as coisas eram e não como apareciam. A partir da Idade Moderna, entretanto, ocorre uma virada temática e a realidade do mundo passa a ser o foco da reflexão filosófica, provocando questões privilegiadas de epistemologia: Como o conhecimento se verifica? O que se pode fazer para evitar o erro?

Com essas questões surge, necessariamente, o problema do método e o advento do cartesianismo. A revolução científica quebrou o modelo de compreensão pelo intelecto (não pelos sentidos) do aristotelismo, o que levou os filósofos a não desejarem mais se enganar e essa preocupação desembocou na epistemologia 79.

São as idéias reproduções de objetos ou criações da mente? 80 Em Platão todo o conhecimento é produzido pelo objeto e para Aristóteles o conhecimento intelectivo resulta da ação conjunta de ambos, mas o conhecimento sensível deve-se à ação do objeto. Kant, afirma que tanto o conhecimento sensível quanto o intelectivo são resultado da ação conjunta do sujeito e do objeto. Enfim,

... o conhecimento representa a dualidade de sujeito e objeto numa relação, de tal maneira que o sujeito tende para o objeto e dele se apossa pelo pensamento, assim como o objeto determina o pensamento do sujeito 81.

76 Mora JF. Dicionário de Filosofia. Tradução Roberto Leal ferreira, Álvaro Cabral. 4. ed. São Paulo:

Martins Fontes, 2001. pp.205-208.

77 Cantu C. História Universal. v.XXVII. São Paulo: Editora das Américas, 1955. pp. 67-68 78Ib. 73

79 Aranha MLA, Martins MHP. 1986. Op. cit. p. 165. 80 Mondin. B. 1980. Op. cit. p. 21.

Mas, uma questão fundamental que, necessariamente, se impõe é como provar que o pensamento do sujeito tem do objeto concorda com o objeto, ou seja, como determinar a validade do conhecimento?

O processo pelo qual o conhecimento se verifica é um problema complexo da filosofia, tanto quanto é complexo determinar a confiabilidade do conhecimento. O racionalismo cartesiano é o primeiro caminho apontado. René Descartes (1559-1642) é o primeiro filósofo a analisar a questão e a propor um método para a obtenção de uma verdade primeira ou para raciocinar corretamente 83, 82.

Descartes deu prioridade ao sujeito sobre o objeto e colocou como fundamento do conhecimento a proposição cogito, ergo sum, a certeza do próprio pensamento e da própria existência, desenlace de uma cadeia argumentativa que parte do ceticismo absoluto a qualquer crença ou convicção. Constata em seguida que duvidar consiste necessariamente em pensar, o que conduz à irrefutável certeza de que o sujeito pensante realmente existe. De fato, em seu

Discurso ele inicia que se duvide de tudo, tanto da realidade exterior, quanto do seu próprio corpo. Neste estado de dúvida completa, a única coisa que lhe parece verdadeira é o fato do seu ser duvidar. Isto implica em um ser que duvida, que questiona. Ora, quem duvida pensa. Eis aí o fundamento da sua proposição. Inevitável conseqüência de seu filosofar, pois o ser que pensa, que usa a razão e, portanto, que raciocina, é a primeira verdade que se impõe. Desta maneira, só através do pensamento (da razão) pode-se chegar a todas as verdades possíveis. Parece evidente que, ao estabelecer o privilégio da razão, ele rejeita o conhecimento sensível como forma de apreensão da realidade. 83, 84, 85

Descartes valorizou a razão, a evidência racional. Para Severino, ele criou a tradição subjetivista; quem conhece é o sujeito, o espírito humano, a razão 86. A conseqüência disso é que só podemos conhecer com certeza o mundo da consciência, as nossas idéias e algumas destas são inatas. Assim, a realidade ou está na nossa consciência ou não poderá ser conhecida. O termo “evidência”, introduzido na filosofia por Descartes, significa a constatação de uma verdade, que se apresenta à mente como clara e distinta, que não suscita qualquer dúvida, ou seja, uma intuição verdadeira, passível de ser assim identificada pelo exercício da dúvida metódica. Por exemplo: os corpos, qualquer que seja a sua forma, possuem uma extensão.

82 Niccola U. 2003. Op. cit. p. 220.

83 Severino AJ. Filosofia. São Paulo: Cortez, 1994.

84 Aranha MLA, Martins MHP. 1986. Op. cit. pp. 166-167. 85 Niccola 2003. Op. cit. p. 220-221.

Outra conseqüência do cartesianismo é a dualidade psicofísica ou dicotomia corpo- mente, de acordo com a qual o homem é um ser duplo, constituído por uma substância extensa e outra pensante. Para Descartes, o corpo era passível de estudo pela ciência, enquanto a mente era acessível apenas à reflexão filosófica 87.

A idéia de que os sentidos não possibilitam verdade alguma é contestada no empirismo, que reserva autoridade suprema à percepção sensível ou à observação direta, como já mencionado.

Em quase todas as doutrinas filosóficas, distinguem-se essas duas tendências.

Para Popper, o problema do empirismo esbarra na questão fundamental acerca da fonte última do nosso conhecimento. Será a observação essa fonte? 88

Assim, a epistemologia toma de assalto a reflexão filosófica no século XVII, fazendo nascer duas correntes filosóficas que fundamentalmente se opõem: o racionalismo e o empirismo. A grosso modo pode-se dizer que o sistema racionalista limita os homens à razão

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