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Até o presente momento, discutimos a sobre a potência do medo como instigador para a curiosidade. No entanto, sabemos que esta não é a concepção mais tradicional que temos deste sentimento. Nesta seção abordaremos então, como o medo é uma ferramenta poderosa também para coerção. Infligimos o medo nas crianças para delimitarmos as fronteiras, até onde elas podem chegar, o limite do mundo a se explorar. O medo pode coibir a coragem e a ousadia, mantendo as pessoas no círculo da segurança, privando-os da liberdade. Dessa maneira é com histórias de medo que os mais velhos controlam a inquietação das crianças (TAVARES; ALVARENGA, 2009)

Como adultos nos sentimos responsáveis pelas crianças, queremos evitar que algum mal ocorra à elas, e para isso as advertimos dos perigos do mundo. No entanto este perigo pode, e muitas vezes é, criado por nós mesmos para cercar e proteger nosso mundo. Isso nos leva a nos questionar se “ [...] não é nosso próprio medo que é transformado no medo de todos, garantindo a coesão de nossa vida comum, para além de qualquer possibilidade de assumir novos riscos, de ir além, de superar-se e deparar-se com o novo?” (GALLO, 2009, p. 20)

Mas por que desta privação? O por que meter medo em quem nós amamos? Por que privar a descoberta do novo?

A primeira reposta dessas indagações, que podem ser aglutinadas em uma só: por que tanto controle? Essa questão, nos leva a uma primeira resposta: queremos proteger nossas crianças, queremos que elas não se deparem com os monstros, e por isso as alertamos quanto à existência deles.

Porém, outra questão surge: quem são os monstros? Qual o mal que eles fazem? Discutimos anteriormente toda a potencialidade dos monstros, da instigação que ele nos traz. O monstro pode nos trazer inúmeras descobertas e o prazer em descobrir o mundo, mas os utilizamos para implantar o terror, a imobilidade, pois a maneira com que lidamos com eles, como nas canções de ninar, ou nas próprias histórias de terror, eles infligem danos terríveis. Nas lendas brasileiras, não somos chamados a enfrentá-los, mas a nos afastarmos, a mantermos uma distância segura e obedecer: é um medo disciplinador, que coage, que adestra. Diante disso, é “[...] curioso notar que, em ‘nome do amor’ que temos pelas crianças, também procuramos aniquilar suas paixões pelo mundo, pelas pessoas.” (LEITE, 2009, p. 148)

Milanez (2011), ao analisar a canção “Nana, nenê”8, nos mostra como

uma canção que embala o sono dos bebês é carregada de elementos de medo para promover o disciplinamento do corpo e do tempo. Na canção a Cuca é invocada para punir a criança que não dorme no momento especificado pelo adulto, não disponibilizando o tempo de trabalho dos pais.

Existem outras tantas cantigas de ninar que abordam o medo para fazer com que as crianças se silenciem e durmam. Embora este não seja o foco deste estudo é interessante notar que estes seres medonhos estejam presentes nos momentos de vigília das crianças, um momento que deveria ser de paz e tranquilidade.9

As histórias folclóricas de medo apresentam à priori uma maneira de conter e disciplinar a criança através de uma situação de causa-consequência (HAVENSTEIN, 2010): se a criança não agir de acordo com o orientado pelo

adulto, haverá punições condizentes com a infração, a saber10

9 Para cantigas de ninar da tradição oral que utilizam monstros ver Apêndice B. 10 Ver descrição dos personagens em Apêndice C

Não cumprir uma ordem: ao fazer isto a criança pode ser perseguida e devorada por um monstro, como nas lendas da cuca, boi-da-cara-preta, cabra-cabriola (CORSO, 2010, FRANCHINI, 2011).

Desrespeitar os pais: ela própria se tornará um monstro, como acontece nas lendas do cabeça-de-cuia, bicho-homem e barba-ruiva (CORSO, 2010, FRANCHINI, 2011).

Ir onde os pais não permitem ou não conhecem: o controle pela liberdade é o mais reforçado nas lendas, insistindo com a criança para que não se separe dos adultos, uma vez que pode ser sequestrada, devorada e nunca mais veja sua família. Monstros como chibamba, papa-figo, velho-do-saco e quibungo se encarregam disto. (CORSO, 2010, FRANCHINI, 2011).

Nota-se que estas histórias de dar medo promovem a obediência e autodisciplina da criança, uma vez que ela é advertida dos malefícios que ocorrem para quem não segue as regras do mundo (HAVENSTEIN, 2010 ). No entanto, estas tais regras do mundo são as regras ditadas pelos adultos, cuja finalidade não é discutida com os pequenos, sendo que os primeiros utilizam desta maneira camuflada de disciplinamento para garantir a obediência, onde é transferida para monstros vingativos a responsabilidade pelos problemas ocorridos graças à falta de disciplina. Ou seja, o adulto adverte para a regra, o monstro castiga pela desobediência (CORSO, 2004).

Percebemos então que todo este “amor pelas crianças” nada mais é do que a sede de controle, de ser o mandante da história e da vida, do chamar para si a responsabilidade de existência e do poder: “Paradoxalmente a ação pedagógica do medo, também se transforma na contra-ação pedagógica da coragem e da esperança” (TAVARES; ALVARENGA, 2009, p. 193)

Os monstros do folclore brasileiro não estão em constante vigilância, mas também não se sabe quando irão aparecer. São casos isolados contados pelos adultos, que já viveram mais e conhecem mais histórias, que por sua vez viram ou ouviram falar dos casos, onde as crianças deslizaram e foram punidas. Ou seja, os monstros podem aparecer a qualquer momento, então o ideal é não deslizar nunca. Dessa forma, a disciplina esperada é interiorizada, não é necessária a insistente imposição de conduta ou mesmo a vigilância (FOULCAULT, 2009).

Para Foucault (2009, p. 134), “[...] as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação”, que diferente das formas de conquistar e dominar, procuram internalizar, como vontade própria do sujeito, as regras estabelecidas pelo poder vigente. Nesta prática, ocorre a docilização e coerção por práticas fugidias, as quais por não serem claramente vistas, não são combatidas, na verdade geralmente são até bem vistas, havendo uma eufemização dos mecanismos disciplinares (FOUCAULT,2009, TOMELI, 2015).

Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo. (FOUCAULT, 2009, p. 133-134)

Esta pratica de disciplinamento pelo medo ganha ainda mais força com os contos folclóricos, visto sua proximidade com o imaginário infantil e seu enraizamento popular (CARNEVALI, 2009, GUIMARÃES, 2012).

O medo coíbe a coragem e a ousadia, mantendo as pessoas no círculo da segurança, privando-os da liberdade. É pelas histórias de medo que os mais velhos controlam a inquietação das crianças (TAVARES; ALVARENGA, 2009). A descoberta do desconhecido não é colocada para discussão. É algo que não pode ser falado, que é velado e ignorado. E a “[...] invenção daqueles ou daquilo do qual não se pode falar leva à naturalização do medo e da proibição, ela é também um recurso preferido dos líderes formadores. [...]” (KOHAN, 2009, p. 133). Mas, como discutimos anteriormente, o monstro, ou aquilo que não deve ser pronunciado, nos atrai, nos chama para o proibido, e com isso vamos à próxima subseção.

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