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Uma abordagem diferente: juro que vi Matinta Pereira

Ao buscarmos exemplos e levantamentos dos monstros folclóricos em vídeos, nos deparamos com uma série intitulada “Juro que vi...”, que traz cinco animações: “O Curupira” (2003), “O Boto” (2004), “Iara” (2004), “Matinta Perera” (2006) e “O Saci” (2009), produzidas através de uma parceria entre a empresa Multirio e alunos da Escola Municipal George Sumner, da rede municipal do Rio de Janeiro, entre os anos de 2001 a 2010.

Toda a construção do roteiro, e da caracterização dos personagens, foram feitos a partir da concepção das crianças, que segundo os relatos dos produtores, traziam ideias bem diferentes daquilo que havia sido previsto, sendo que as próprias crianças sugeriram abordar temas como: novas constituições familiares – em “O Boto” -, a beleza e o consumo – em “Iara”-, a proteção da floresta – em “O Cururpira”-, a velhice e a morte – em “Matinta Perera” - e o trabalho infantil – em “O Saci” (SANTOS, 2013).

Todos os filmes mereceriam uma análise mais profunda, visto sua qualidade de conteúdo e estética. No entanto, por conta do enfoque desse estudo, nos deteremos no curta metragem, Matinta Perera, que aborda dois maiores medos humanos: a velhice e a morte.

Primeiramente, para quem não a conhece, descreveremos a lenda: a Matinta Perera é conhecida como uma coruja de pio agourento, que nas “horas mortas da noite, ouvem o cantar de Matitaperê, quem ouve está dentro logo diz ‘Matinta, amanhã podes vir buscar tabaco’”. (CASCUDO, 1972, p. 374). Reza a lenda que esta coruja é a transformação de um pajé ou uma bruxa (sempre idosos) que em sua forma humana, se mantém em uma perna e pulam para se locomover, semelhante ao Saci (CASCUDO, 1972). Na tradição indígena, a Matinta Perera é o próprio Saci, que se transforma em uma ave que faz os viajantes se perderem na floresta devido seu canto enganador (FRANCHINI, 2011).

A grafia de seu nome varia, na série é grafado como Matinta Perera6, mas

também pode ser conhecida como Matintaperera ou Mati-taperê (CORSO, 2004). Independente da variação, todas as grafias apontam para os termos tupis mati, que em português pode ser traduzido como coisa pequena, e taperera que significa habitante da tapera, sendo que tapera, por sua vez, traduz-se por “maloca ou casebre abandonado”, de forma que Matinta Perera pode der traduzido como “ser pequeno que habita uma maloca abandonada” (CORSO, 2004)

O enredo do curta metragem se inicia com o voo da coruja homônima à personagem, com a narrativa

Esta história aconteceu no interior do Brasil. Lá, costumava-se ouvir o misterioso canto de um pássaro. As pessoas que tinham medo faziam oferendas, diziam que afastava o mal, e com ele, Matinta Perera. Quem esteve lá, me contou esta história assim e disse “juro que vi...”’ (MATINTA PERERA, 2006)

O curta prossegue sem diálogos falados, mantendo a história somente

com as imagens e a trilha sonora7. Após a apresentação, é mostrado um vilarejo

com pessoas assustadas, fechando suas janelas e colocando oferendas em trouxas de pano frente às suas portas. Enquanto isso, a sombra da coruja é projetada nas casas, e acorda um gato que a segue pelos telhados.

6 Por estarmos usando a série para análise, utilizaremos esta grafia.

7E e t evista o edia à “a tos a p oduto a Dias, ate ta ue [...] isto efo çou ai da ais a

questão do contar [...] podemos ver o filme do princípio ao fim e ele contará a história [quase] sem a aç o, ele se asta i e atog afi a e te [...] DIA“, apud “ANTO“, , p. 69

A cena continua em uma janela, onde uma menina segura uma boneca e observa o movimento. Sua mãe apreensiva, a puxa para dentro de casa onde também prepara as oferendas, recolhendo alimentos e bebidas em uma trouxa de pano. No entanto, por distração da mãe, a boneca da menina acaba sendo embalada junto na trouxa e é colocada como oferenda.

A menina fica abalada e corre para salvar sua boneca. Enquanto isso, a coruja passa próximo às portas, com o gato em seu encalço. Quando a menina vai pegar a boneca na trouxa, o gato esbarra com esta que rola para longe dela, próximo ao local onde a coruja pousa, o que faz com que a menina e o gato fiquem imóveis.

Figura 1- gato e menina observam a trouxa se distanciando

MATINTA PERERA, 2006

Finalmente pousando, a coruja se transforma em uma velha corcunda com uma bengala e olhos esbugalhados (a transformação é mostrada somente pela sombra projetada nas paredes). Como a oferenda com a boneca está próxima à ela, esta é a primeira que coloca em sua bolsa, deixando-a no local para recolher as demais oferendas.

Figura 2 - sequência da transformação de Matinta Perera

MATINTA PERERA, 2006

Figura 3 - rosto da Matinta Perera

Vendo que a velha havia saído, a menina vai até a bolsa deixada sem guarda, pedindo ao gato que permanecesse de vigia. A menina, procurando sua boneca, acaba entrando na bolsa da Matinta Perera, que, para o desespero do gato e do espectador, já havia terminado de recolher suas oferendas e regressara, pegando sua bolsa, transformando-se novamente em coruja e alçando voo para sua toca.

O gato, então preocupado com a menina, segue a ave, chegando ele também o ninho: um casebre que fica no topo de uma montanha com a mesma forma da velha. Lá ele começa a explorar o local, que é iluminado somente pelas janelas na parede externa. A sonoplastia aliada com os tons terrosos da imagem, nos leva a sentir que nos encontramos dentro de uma gruta de terra úmida.

Figura 4 - Montanha da toca de Matinta Perera

MATINTA PERERA, 2006

Acompanhamos o gato nesta primeira exploração do local, chegando finalmente à um local onde se vê a sombra da velha e a menina juntas atrás de um véu. A velha manuseia uma corda e a menina observa. O gato vai se aproximando. A velha ata a corda na menina e puxa, levantando-a. A imagem é mostrada na perspectiva do gato, que somente vendo a sombra, acredita que a velha havia enforcado a menina. Desesperado, ele corre para salvá-la, mas

transpondo o véu, percebe que na verdade, a velha e a menina, estavam brincando com os cabos de um relógio-cuco.

Figura 5 - sequência da visão do gato, onde a Matinta Perera brinca com a menina.

MATINTA PERERA, 2006

Elas se divertem e depois se abraçam. A velha então, com um gesto convida a menina a explorar o restante do local, que parece se encontrar sob a terra, junto da raiz de uma árvore.

Acompanhamos novamente o gato pela gruta da Matinta Perera, sendo revelados locais belos e enigmáticos, como uma parede cheia de relógios, outra, como um altar com muitas imagens de santos. Um recinto com móbiles de pássaros, estátuas e brinquedos de madeira e instrumentos musicais. Por fim ele entra em um grande viveiro com o teto aberto, repleto de passados soltos. Após esta cena, temos uma visão completa da casa de Matinta Perera.

Figura 6: interior da casa de Matinta Perera

MATINTA PERERA, 2006.

A cena seguinte mostra a velha presenteando a menina com uma capa semelhante à sua, que em agradecimento dá a velha sua boneca. A menina corre então para brincar em um balanço, a velha oferece leite para o gato, que desconfia no primeiro gole, mas logo em seguida se põe a beber com entusiasmo.

A menina deixa o balanço e sobe em um galho alto que sai de dentro da casa por uma janela, este então quebra fazendo com que ela despenque no abismo da montanha. O gato corre para socorrê-la, mas não chega a tempo. Matinta Perera se joga no abismo, e na queda transforma-se na coruja, incentivando a menina a fazer o mesmo, que com ajuda da capa consegue se transformar em um passarinho. A menina pássaro então sobrevoa seu vilarejo,

incentivando os moradores a abrirem a janela e a não temerem mais, e prossegue seu voo.

Figura 7: sequência de transformação da menina em pássaro.

MATINTA PERERA, 2006

O curta termina com o gato percorrendo os telhados e parando em frente a casa da menina. Ele observa uma sombra que se aproxima, descobrindo que ela voltou a sua casa e em sua forma humana. O desfecho conta com a seguinte narração

Esta história acontece no interior do Brasil. Dizem que lá ainda se ouve um misterioso canto de um pássaro. Mas agora, as pessoas vivem em paz, porque quando se vence o medo, transformações incríveis podem acontecer. Se isso tudo é verdade eu num sei, mas quem esteve lá me contou essa história assim e disse: “juro que vi” (MATINTA PERERA, 2006)

Colocamos em discussão aqui a maneira como a morte e a velhice são abordadas no filme, trazendo juntamente com ela a desconfiança, mas também a liberdade e a amizade.

Em um primeiro momento, a velha que é o desconhecido, o monstro, causa terror nos adultos do vilarejo, sendo que os adultos perante sua presença, somente pensem em distanciá-la com oferendas.

A menina também tinha medo da velha, como percebemos em seu cuidado ao esperar que ela se afastasse da bolsa para tentar resgatar sua

boneca. Embora reconheçamos que foi o acaso e a coragem que a fizeram entrar em contato com o diferente (e não a curiosidade), percebemos que isto proporcionou à ela uma nova visão daquilo que era temido.

Ao entrar em contato com algo diferente e temido, com o “monstro” do vilarejo, podemos inferir que a menina pode:

Ter um novo rol de conhecimento, a casa da Matinta Perera, onde ela teve acesso à um conhecimento acumulado, diferente que ela tinha, representado pelos diversos itens na casa;

Quebrar um preconceito de que aquela Matinta Perera era um ser de pura ganância, visto que ela ofereceu um presente, ou de pura maldade, visto que ela socorreu a menina.

Superar seus próprios medos e agir por sua conta própria: a menina reconheceu que não havia motivo real para temer a Matinta Perera, além de ela própria criar asas para salvar-se.

Alcançar uma liberdade que antes nem ela e nem o vilarejo imaginavam, pois ao se libertar do terror, eles puderam abrir as janelas.

Os temas velhice e morte são abordados de forma muito poéticas no filme. Matinta Perera está longe de ter feições harmoniosas- a personagem é enrugada, corcunda e com um nariz protuberante - sua casa é bastante bagunçada e com itens que parecem ser velhos e esquecidos, que causam uma sensação de confusão e memória. Inferimos que isto representa a finitude está presente na vida do homem, mas que não conseguimos encarar.

Este é um medo que aterroriza, que engessa, um medo o qual não ousamos falar e enfrentar, não há curiosidade que nos faça enxergar a velhice e o fim como parte de nós e de quem amamos. No entanto, por incomodar a animação nos põe a pensar: por que será nos fere a vista ver pessoas enrugadas e encurvadas? Por que nos incomodamos com a ideia de que haverá um fim para todos?

A figura do velho, representada pela Matinta Perera é inquietante, pois o velho é em si a representação da morte em forma de humano, pois representa o último estágio da vida humana e a diminuição da capacidade produção – tanto física quanto intelectual (LOUREIRO, 2000, FRANCO, 2007, SILVA, 2012), e em “[...] uma sociedade que se identifica com a juventude, os idosos podem causar, no mínimo, certo desconforto social” (FRANCO, 2007, p. 111). No entanto, em

nosso tempo, pouco somos chamados a discutir aquilo que a primeira vista nos desagrada, aquilo que nos parece feio ou mal, então temas como envelhecimento e morte são constantemente deixados de lado (SILVA, 2012), como se o fato de não falarmos destes temas eles fossem afastados. E de certa forma,

[...] a sociedade “adestra” os ímpetos amargurados desse grupo, proporcionando esquecimento da sua condição de proximidade da morte. De certa forma, isso implica um controle, uma espécie de contenção social acerca da consciência diante do inevitável contato com a morte. Nesse sentido, continuamos a caminhar como se a vida fosse ilimitada, o que confere ao idoso um poder sobre-humano, de continuidade infinita. (SILVA, 2007, p.112)

A morte é inerente à vida, isso é um fato inquestionável. Mas tememos a morte, pois não a conhecemos, mas principalmente a encaramos como um fim da contagem do nosso tempo produtivo (LOUREIRO, 200; SILVA, 2012). Não conseguimos conceber a ideia de em algum momento nosso ciclo se findar, e o relógio parar de rodar.

O tempo aparece como um marcador ambíguo: de um lado apresenta a finitude e de outro, a infinitude. Lidamos com a dualidade do tempo e a compreensão de que tempo é vida. Ele marca os ciclos, fases e as etapas, modulando o ontem e o amanhã, buscando acompanhar o curso da natureza humana. Tudo coexiste no tempo e no espaço e assim definimos a nossa temporalidade (SILVA, 2012, p. 276)

Existem várias maneiras de compreensão do significado desta abordagem da finitude. Cunha (2010) trazendo a abordagem filosófica do termo em Epícuro, Russel e Sartre, esboça como as concepções filosóficas são muito divergentes neste tema, uma vez que a morte humana pode ser encarada como simplesmente o fim do corpo e o ideal é viver o presente, sem temer ou discutir a morte (Epicuro), como um fim do corpo, mas não do “espírito” – aqui entendido como hábito e memória (Russel), por fim, a morte também pode representar o absurdo da própria existência, uma vez que ela já está predefinida com um fim (Sartre).Todos os três autores citados por Cunha (2010) demonstram uma visão pessimista e estagnante da morte, parecem reforçar um medo paralisador e negativo. Loureiro (2000), por sua vez, coloca que o imaginário, a maneira como

encaramos a morte, pode ser uma arma contra esta estagnação, perante a finitude, e que,

[...] é papel da educação formar pessoas que entendam que o conflito entre os elementos da vida e da morte como complementares, não apenas binários, mas como elementos que, no conflito constante, geram novas posturas de vida ou de morte; uma multiplicidade de visões de mundo surge e o homem escolhe, ou se deixa escolher, a qual e por qual se agregar (LOREIRO, 2010, p. 72)

A possibilidade de escolha efetuada pela maneira que encaramos a morte nos incita a pensarmos em uma nova perspectiva. Franco (2007) nos convida a pensar a finitude de outra maneira. Segundo a autora, se não houvesse a finitude, ou a consciência humana de finitude, não haveria cultura, pois não seria necessário ensinar as gerações vindouras o conhecimento adquirido. Dessa forma também o próprio fazer humano não seria atualizado nem modificado com o passar do tempo, pois as novas gerações não teriam algo a se contrapor.

Em ultima análise a finitude se mostra como uma reguladora democrática da existência, uma vez que, dá a cada geração uma oportunidade de governar.

Em outras palavras, a aceitação da ideia de finitude pode nos mover para a elaboração da memória. Fazemos então o mesmo caminho da menina de “Matinta Perera”, ao perceber que a antecipação de que teremos um fim nos faz viver, registrar e transmitir nosso conhecimento.

Uma cena bastante intrigante em que este tabu é abordado é quando o gato chega no viveiro de aves. Corso (2004, p. 133), nos explica que

Para alguns indígenas, as almas dos recém mortos podem ser sugadas para dentro de determinados pássaros. As almas ficam com esta forma transitória antes de irem para o ‘outro lado’ ou ainda (mais raro), por meio dos pássaros, elas podem voltar e visitar nosso mundo.

Esta informação combinada com a cena, nos leva a crer que aquele recinto era um local onde a alma e a memória das pessoas eram protegidas: guardadas, mas livres (o teto era aberto), de forma que não fossem esquecidas mas também que não fossem sufocadas.

Neste sentido o curta nos leva a refletir, como somos inseguros e temerosos a respeito de nossa finitude, mas que isso que pode ser tão horrível, pode ser também libertador quando aceitamos e entendemos a perda como um

processo que faz parte do viver. Desta forma, antes de ofertarmos tudo o que temos para uma juventude eterna, seria mais libertador que vivêssemos a liberdade que temos como seres vivos.

Interessante é notar que a insegurança e instabilidade também apareceram no processo de construção do curta metragem, por que, nem os próprios adultos e tampouco as crianças se sentiam confortáveis em discutir a morte e a velhice. A produtora Dias, em entrevista concedida à Santos (2013, p. 72,73), relata que

Sentíamos que era importante falar destas questões metafísicas. Porque o ocidente não fala disto com as crianças. Porque as crianças têm muitas perdas. E porque a questão da morte está presente em vida, inclusive. [...]. Nós achávamos que a questão da morte estava muito próxima também da questão do velho com o novo.

[...]

Foi o trabalho mais difícil porque as crianças, no geral, deixavam perceber uma depreciação, um abandono por aquele que fazia o papel do mais velho.

[...]

Era difícil para a equipe falar, assim como era difícil para as crianças, era difícil para a gente trabalhar a morte. Eu nunca tinha trabalhado a questão da metafísica, a gente nunca tinha trabalhado efetivamente isto. Entao eu acho q foi mais difícil por isso.

Por fim, algo muito mais inquietante também é demonstrado no curta: embora a morte seja associada à velhice, ela pode aparecer para qualquer ser vivo em qualquer momento (LOUREIRO, 2000, FRANCO, 2007, SILVA, 2012). A menina, embora muito jovem também pode morrer, também pode virar pássaro-memória

Este é um exemplo de uma história de medo e de descoberta. Acreditamos que muito embora os personagens não foram curiosos e não foi o medo, o instigador da descoberta no enredo, é o medo e o imaginário do medo, fornecido pela personagem Matinta Perera, que prende o espectador e que nos mostra uma nova perspectiva daquilo de que antes tínhamos medo. Somos um pouquinho como o gato, e seguimos Matinta Perera cheios de desconfiança, mas somos surpreendidos por uma liberdade que não estávamos esperando.

6 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO MEDO IMOBILIZADOR E DA INVEJA DOS MONSTOS

Embora a presente pesquisa tenha como principal enfoque a abordagem do medo como incitador, seria ingenuidade não considerarmos também seu caráter carcereiro.

Mas qual o motivo desta insistência em paralisar de medo? Qual o motivo para tanto horror? Por que privar a liberdade e a descoberta?

Acreditamos ser necessária esta discussão para encontrarmos as dissonâncias na pratica da coerção pelo horror, para assim vislumbrarmos melhor as potencialidades libertadoras do medo.

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