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O fascínio pelo medo: elementos que instigam

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Academic year: 2017

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“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”

INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS - RIO CLARO

Rio Claro 2015

POLYANA CRISTOFOLETTI CUSTODIO

O FASCÍNIO PELO MEDO: ELEMENTOS

QUE INSTIGAM

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POLYANA CRISTOFOLETTI CUSTODIO

O FASCÍNIO PELO MEDO: ELEMENTOS QUE INSTIGAM

Orientador: Profª Dr.ª Célia Regina Rossi

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Câmpus de Rio Claro, para obtenção do grau de Licenciada em Pedagogia

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DEDICATÓRIA

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AGRADECIMENTO

Tenho muitas pessoas a agradecer no percurso tanto da escrita deste trabalho quando no percurso que me trouxe até aqui, por enquanto.

Primeiramente, como não podia deixar de ser, agradeço aos meus pais, Neide e Gilmar, que sempre me apoiaram e me incentivaram mesmo quando eu queria me entregar à preguiça e à inercia, puxando minha orelha na maioria das vezes (as vezes até mais que o necessário).

Também agradeço minha irmã Paula, pelas intermináveis conversas, bate-bocas, discussões e arranca-rabos que travamos em todos os lugares e a todas as horas. Mas principalmente agradeço à ela por me dar a sobrinha mais terrível que uma tia pode ter. E à minha sobrinha Sabrina, agradeço por sempre me salvar de não cair em uma demagogia insípida.

Agradeço ainda a toda minha família, uma bagunça de avós, tios, primos, sobrinhos, parentes e agregados que sempre deixaram minha vida de pernas pro ar, como ela deve ser.

Pelos intermináveis fins de semana de estudo, companheirismo e incentivo, às vezes até demais, agradeço ao meu namorado Marcel, que nesses anos provou ter uma paciência impossível, uma calma invejável, um espirito de competição, que embora não reconheça, me instiga a ir adiante, e que gostando ou não, é da minha família e isso não tem mais volta.

O ingresso na Unesp não foi minha primeira experiência em uma instituição de nível superior, fiz outra graduação anteriormente, e isso me trouxe uma vivência ímpar, por isso quero agradecer à minha imensa turma de seis pessoas da Faculdade de Aministração e Artes de Limeira: Jorge, André Stein, André Carriel, Erick e Cecylia.

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Conheci pessoas incríveis na Unesp do campus de Rio Claro, que gostaria muito de agradecer: primeiramente à minha orientadora, professora Célia, que foi extremamente acolhedora, aceitando me orientar mesmo com um tema tão maluco, me recebendo em sua casa para as inúmeras assinaturas e até atendendo às minhas chamadas no Skype mesmo nos domingos à noite.

Agradeço também, muito mesmo, à toda turma de ingressantes do curso de Pedagogia ano de 2012, pelo apoio que tive ao trilhar estes anos. Em especial agradeço às minhas amigas Patrícia, Caroline e Hayla, pelos muitos trabalhos, maluquices e transformações que fizemos juntas, agradeço agora pelo que já fizemos, mas sei que continuaremos a fazer muito mais.

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Mamãe disse à Zequinha Nunca pule aquele muro

Zequinha respondeu: Mamãe aqui tá mais escuro (SEIXAS, 2015) Eu tenho medo do medo que as pessoas têm Não tenha medo do medo que as pessoas têm O sol nasce pra todos, todo dia de manha O mal nasce do medo da escuridão

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RESUMO

O presente trabalho pretende levantar algumas características e reflexões a cerca da construção e sobre os prazeres no medo, procurando partir de uma ótica deste sentimento como provocador de alguns outros. Ou seja, o sentimento de medo é aqui abordado com a face de estímulo para a curiosidade (revelando mistérios) e para a empatia com o diferente, o estranho, levando-nos a questionar o “normal”. O objetivo deste estudo é o de entender, problematizar e discutir o sentimento de medo como possibilitador de busca, de procura, de instigador da curiosidade, construindo assim, uma relação positiva do medo com a infância, apresentando-o como uma relação prazerosa (pelas superações que elevam a coragem para explorar e experienciar a vida, com cuidado e respeito ao diferente), de afeto (pois o medo e o enfrentamento nos transformam) e de descoberta (conhecendo o desconhecido). Para tal, faremos um levantamento mais aprofundado da história do medo, analisando sua evolução, bem como a evolução de seus elementos subjetivos. Desta forma buscaremos também evidenciar em como os elementos de dar medo, na figura dos monstros, acabam sendo subvertidos pelas crianças e passam a perder força na barganha da obediência da criança para com o adulto, para busca de experiências e para servir de potência criativa. Ou seja, tentaremos entender em como as histórias e os elementos que serviam para cercear a experimentação, podem instigar a exploração. Diante disto, algumas questões se levantam: Por que o medo é representado por tantas obras culturais e gera tanto fascínio? Por que muitas vezes sentimos prazer em sentirmos medo? Poderíamos usar, ou já estamos usando, este sentimento para nos desestabilizarmos com o comum, com o normal, com o estranhamento? Para compreender essas questões faremos um levantamento bibliográfico e documental, dentro de uma perspectiva qualitativa, procurando identificar nos personagens do folclore brasileiro populares, algumas reflexões registradas sobre este sentimento e como podem representar (i)mobilidade perante o medo, buscando novas formas de atuar com e sobre ele. Por fim, procuraremos contrapor o medo cerceador com o medo instigador.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 9

2 OBJETIVOS ... 15

2.1 Objetivos Gerais ... 15

2.2 Objetivos Específicos ... 15

3 METODOLOGIA ... 16

4 ENTENDENDO O MEDO ... 19

4.1 Delimitando o Medo ... 20

4.2 O Medo na Historia ... 22

4.3 Os monstros e fantasmas – algumas considerações dos elementos que dão medo ... 27

4.3.1 O corpo do monstro é um corpo cultural ... 28

4.3.2 O monstro sempre escapa. ... 29

4.3.3 O monstro é o arauto da crise de categorias ... 31

4.3.4 O monstro mora nos protões da diferença ... 31

4.3.5 O monstro e a política, as fronteiras do possível ... 33

4.3.6 O medo do mostro é realmente uma espécie de desejo ... 34

4.3.7 O monstro está situado no limiar... do tornar-se ... 34

5 MONSTROS E FANTASMAS CONTERRÂNEOS ... 36

5.1 Os monstros que aprisionam ... 36

5.2 Uma abordagem diferente: juro que vi... Matinta Pereira. ... 38

6 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO MEDO IMOBILIZADOR E DA INVEJA DOS MONSTOS ... 50

6.1 O medo carcereiro ... 50

6.2 A inveja do monstro ... 53

7 MEMORIAL ... 57

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS E UM POUCO MAIS DE DÚVIDAS ... 59

REFERÊNCIAS ... 61

APÊNDICES ... 68

APÊNDICE A - COMPILAÇÃO DOS MOSNTROS BRASILEIROS ... 69

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1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho se debruçará no entendimento e reflexão do sentimento do medo, como potencializador de descobertas, de busca e de prazer, procurando fazer uma análise a respeito desta emoção abordando-a como ferramenta para o trabalho da construção da autonomia, da compreensão do diferente.

Percebemos que mesmo na antiguidade já se estabelecia uma relação muito próxima entre medo, vida e até mesmo prazer. A mitologia grega traz o medo de uma maneira tanto interessante, aproximando-o da criação e da vida, como nos mostra Sutter (2002, p.13)

Na genealogia divina de Hesíodo, Fóbos como personificação do Medo recebe uma filiação definitiva. Seu pai, como não poderia deixar de ser, é o terrível deus Ares, o flagelo dos homens. Mas é então que a simbologia mítica nos surpreende e encanta. Sua mãe é Afrodite, a deusa da fecundidade, a personificação do instinto biológico que assegura a perpetuação das espécies e, consequentemente, deusa do desejo sexual e deusa do amor. [...]

[...], justamente por isso, são símbolos de realidades paradoxalmente opostas e complementares, que subjazem à condição humana, ambígua em si mesma, ontem e hoje.

Ao traçar um histórico da relação entre história da humanidade e o medo, Santos (2003) nos aponta que, ao personificar o medo como um deus, os antigos identificavam este sentimento como externo a si próprio. Sendo uma força externa, ela poderia ser direcionada contra si ou contra seus inimigos, de acordo com a vontade deste deus, daí a necessidade de oferendas e sacrifícios em nome de Fobos em tempo de guerra.

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ser elemento do mau, um servo de satã (DELUMEAU, 1989; DUBY, 1999 apud SANTOS, 2003).

Por fim, Santos (2003) nos apresenta que com o passar do tempo, este temor se transforma em autocontrole, o homem passa a autorregular suas emoções, e já nas sociedades cortesãs do século XVII e XVIII, o medo opera como forma de controle e coerção, uma vez que é visto como um meio de controle social.

Neste sentido, podemos compreender que o medo foi

[...] adquirindo o aspecto de emoção interiorizada no indivíduo, fruto de uma construção histórica. Fazendo parte do processo de construção psicológica do homem, o medo se constitui como emoção singularizada, constitutiva do psiquismo do sujeito, parte de seu repertório emocional. (SANTOS, 2003, p. 52)

O medo, nesta pesquisa, é compreendido como um sentimento primário (ou básico), ou seja, o medo é algo que sempre foi inerente ao ser humano, sendo também responsável por sua sobrevivência, descoberta e evolução (SANTOS, 2003, PINHEIRO, et. al, 2012). Na compreensão de Prieto, “[...] o medo é um sentimento básico que faz parte do desenvolvimento emocional. Ele nos acompanha ao longo da vida e vai adquirindo novas dimensões e características” (PRIETO, 2002, p. 4).

Sendo inato e interno do ser humano, podemos pensar neste sentimento como uma força mobilizadora do homem, com um grande potencial de estímulo à inquietação. No entanto devemos atentar à linha tênue entre o medo como mobilizador e o terror que imobiliza. Archangelo e Walde (2009, p. 47), diferenciam medo de terror, explicando que

[...] medo tem origem, tem causa, tem nome, enfim – o temor é fluido, móvel e sem nome. Ele impede o sujeito de mover-se em qualquer direção, uma vez que contamina tudo à sua volta. É a atualização de uma experiência infantil muito arcaica, de um tempo em que não temos recursos próprios para pensar e dependemos por completo da ajuda de um outro para dar forma e nome a nossas ansiedades.

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Antonio Nardi, Loiola, aponta o medo como sendo uma ameaça, que quando superada, trás a calma e prazer:

Assim que o cérebro percebe uma ameaça, um sistema chamado circuito interno do medo entra em ação. [...] ele libera neuro-hormônios, neurotransmissores preparando o corpo para defender o organismo. [...] Só que, quando o monstro é de papelão, o cérebro percebe a pegadinha e suspende a produção de substâncias. E a alta de dopamina, que deixa o corpo atento e alerta durante esses momentos, dá a sensação de prazer e calma. (NARDI, 201? apud LOIOLA, 2013, s/p)

Ainda sob esta ótica Tuan (2002) explica ainda que,:

[...] em pessoas saudáveis, os momentos de medo, das surpresas esperadas, mas desconhecidas, são relacionados com o prazer da superação, logo as pessoas tendem a “[...] procurar estresse agradável – eutress – como a felicidade que sentimos após vencermos o medo

em esportes arriscados [...], uma vez que o risco representa dificuldades que podem ser avaliadas e controladas” (TUAN, 2002, p. 322, grifo do autor).

Ou seja, diferente da lógica da busca pelo conforto e pela paz, percebemos que muitas vezes as sensações de tensão causadas pelo medo são buscadas e bem quistas, reforçadas pela segurança do “faz-de-conta”.

Concomitante a isto, percebemos que os ramos de entretenimento têm buscado nos elementos de dar medo, como na recaracterização de monstros, por exemplo, um chamariz para vender mais (GENS, 2004). Dessa forma, exposições ao risco e à inquietação – aos elementos que dão medo – são buscadas pelas pessoas, aja visto a permanência dos parques de diversões e dos filmes ou histórias de terror.

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roupagem do medo também é uma manifestação cultural (TUAN, 2002; SANTOS, 2002; SANTOS, 2003).

Porém estes elementos mantêm algumas características em comum, sendo relacionados à ameaça da paz e a integridade, ou então são temidos por serem desconhecidos e estranhos (TUAN, 2002)

É esta última característica que nos chama a atenção: tememos aquilo que nos é estranho, o que ainda não compreendemos. Freud (1996) nos explica que não tememos o inteiramente desconhecido, mas sim aquilo que temos algum indício de existência, nunca aquilo que desconhecemos por completo ou conhecemos em profundidade, ressaltando que “[...] o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar” (FREUD, 1996, p. 234). Em um exemplo, um dos maiores temores da humanidade é a morte, pois sabemos que ela existe, mas não sabemos exatamente o que ela é.

Assim, entendemos que aquilo que sentimos medo é algo que está escondido, o qual temos algum vislumbre, mas não sabemos o que é. E como reagimos em face a este desconhecido? Ora, temos duas opções: podemos ignorar e evitar este elemento, ou podemos buscar compreender e conhecer este desconhecido. Neste ultimo sentido podemos estabelecer uma relação entre o medo e a curiosidade, a vontade de descoberta instigada pela desestabilização do até então compreendido.

Tuan (2002) nos explica que curiosidade e segurança vêm do mesmo radical, latino cura, que significa ansiedade e cuidado. Neste sentido reflete,

Em um lugar seguro estamos cuidados e estamos descuidados. Mas nunca completamente descuidados porque o mundo está cheio de surpresas. [...] Ser curioso é sentir ansiedade e necessidade de diluir esta ansiedade com mais indagações. Se temporárias a surpresa e a ansiedade podem ser agradáveis, desde que possamos controla-las. (TUAN, 2002, p. 312)

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instigação conseguida pelo prazer do medo, a criança sinta confiança em ser desafiadora e curiosa.

Sabemos, no entanto, que a ótica mais recorrente da relação entre o medo e a curiosidade é contrária a nossa ideia. Pensando no dito popular “a curiosidade matou o gato”, como uma advertência para não sermos curiosos, é pelo medo (de morrer) que o faz. Ou seja, existe uma contraposição nas facetas do medo: uma como instigador e outra, cerceador.

Neste sentido, nos questionamos se esta faceta cerceadora também não pode ser subvertida. Se mesmo colocando como impedimento, o perigo não pode ser transgredido.

É aqui que entram as histórias folclóricas e orais. Em várias lendas e contos populares os personagens estão em situação de risco, ou são eles próprios que causam os riscos. Mas mesmo assim há o enfrentamento destes riscos, há a curiosidade dos personagens ou dos leitores/ouvintes em transgredirem as regras impostas pelos perigos, para desafiarem o imposto e estabelecerem eles próprios uma relação com a situação.

EIRAS (2011), ao abordar o conto Barba Azul, de Perreaut1, nos questiona

se haveria história caso a heroína não entrasse no quarto proibido, salientando que “[...] mal a narrativa introduz uma proibição, o receptor, ainda que horrorizado, exige a transgressão. [...] a curiosidade que nos cabe, a nós, leitores, é mais insustentável do que o medo.” (EIRAS, 2011, p. 284)

Acreditamos aqui serem necessários parênteses: percebemos um movimento (tanto da literatura, quanto de animações e filmografias), que repagina as histórias e atenua as figuras que antes traziam medo. Admitimos que isto é valido para a construção da segurança, mas percebemos que isto tira o prazer do risco e torna o enfrentamento desnecessário. Com estes novos “fantasminhas camaradas” as crianças ficam seguras demais e não são impelidas ao enfrentamento (logo à transgressão).

Tendo em vista o prazer no medo, queremos apresentar a ideia de transgressão das regras impostas e de compreensão do diferente. Ou seja,

1 Charles Perrault (1628 -1703), escritor e fabulista francês. Seus trabalhos apresentam diversas

situações de conflitos humanos (principalmente de cunho social). O conto do Barba Azul, inserido na

olet ea: Co tes de a e l’Oye, e po tugu s Co tos da Ca o hi ha, o ta a histó ia de u a

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diante das facetas do medo, este trabalho busca compreender e como se o dá fascínio do medo, para assim percebê-lo como propulsor da criatividade, do desafio, entendimento em respeito às diferenças. Dentro deste entendimento, podemos pensar em formas de trabalhar histórias e contos, para que sejam aproveitados como estimulantes para a curiosidade, e não para a obediência cega.

Inicialmente faremos um levantamento mais aprofundado da história do medo, analisando sua evolução, bem como a evolução de seus elementos subjetivos, procurando demonstrar o que já pontuamos anteriormente: que com o passar do tempo os elementos de medo mudam de roupagem, mas permanecem em essência.

Com isto em mente, trataremos sobre a potencialidade do medo, caracterizado pelos monstros, iniciando a discussão a respeito do vislumbre do medo como libertador. Aqui apresentaremos diversas facetas dos monstros que podem nos ajudar a perceber os monstros como seres mais do que somente assustadores.

Em seguida, voltaremos ao nosso recorte das lendas folclóricas brasileiras, procurando identificar os personagens medonhos e a maneira como são apresentadas às crianças, observando registros da tradição oral, bem como suas transcrições e adaptações. Abordaremos aqui primeiramente a abrangência medonha de nossos monstros e como são comumente usados para coagir e, para contrapor esta faceta cerceadora, analisaremos o curta-metragem “Matinta Perera”, que de certa forma, antecipou nosso entendimento do medo com uma potente ferramenta voltada para a instigação, e o apresentou em um enredo um tanto provocador ao discutir a velhice e a morte (ambas tão temidas pelos homens).

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2 OBJETIVOS

2.1 Objetivos Gerais

Entender o sentimento do medo como propulsor da criatividade, desafio entendimento e respeito às diferenças.

2.2 Objetivos Específicos

 Entender o fascínio pelo medo;

 Analisar os monstros das lendas folclóricas;

 Apresentar duas faces do medo: como carcereiro (cerceador da liberdade) e

como incitador de descobertas (subversivo e, desconstrutor).

 Entender o medo como potência, em uma perspectiva de enfrentamento,

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3 METODOLOGIA

Considerando a abrangência desse estudo, optamos por fazer uma pesquisa de cunho qualitativo, com enfoque nas pesquisas bibliográficas e documentais. Entendemos que a pesquisa aqui projetada sugere esta abrangência, uma vez que buscamos entender como se dá o envolvimento das pessoas com um sentimento, não de maneira mensurável, mas sim sob um em como as pessoas lidam com nosso objeto de estudo, pois o tema aqui abordado

[...] trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores, das atitudes. Este conjunto de fenômenos humanos é entendido aqui como parte da realidade social, pois o ser humano se distingue não só por agir, mas por pensar sobre o que faz e interpretar suas ações dentro e a partir da realidade vivida e partilhada com seus semelhantes O universo da produção humana que pode ser resumido no mundo das relações, das representações e da intencionalidade e é objeto da pesquisa qualitativa[...] (MINAYO, 2009, p. 21)

Bogdan e Bilken (1994) elencam as seguintes características para a pesquisa quantitativa: fonte direta de dados - onde o contexto do objeto é inserido – descrição – descrição textual da situação / objeto de estudo – processos - maior importância pelo processo do que pelo resultado – indução – os fatos / percepções do objeto vão se revelando de acordo com o processo – e por fim, significado – o que o significado do objeto influencia outros fenômenos. Os autores ainda consideram que em cada pesquisa, dependendo de cada objeto de estudo, cada uma destas características vai ser abordada com mais ou com menos intensidade (BOGDAN; BILKEN,1994).

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Trataremos nesta pesquisa de um sentimento que é vislumbrado em todas as eras da história humana, bem como nas suas mais diferentes sociedades. Diante desta ampla abordagem, procuraremos fazer uma pesquisa bibliográfica, para através das produções existentes, conseguirmos compreender a relação entre o medo e o prazer, para assim identificarmos este sentimento como mecanismo de cerceamento ou de instigador da curiosidade, possibilidade e descobertas das diferenças.

Neste sentido, Gil (1999) nos explica que a principal vantagem da pesquisa bibliográfica é o fato de ela disponibilizar ao pesquisador uma ampla quantidade de fenômenos, maior que poderia pesquisar pessoalmente, se tornando particularmente importante quando o problema de pesquisa requer dados muito dispersos no espaço.

Utilizaremos também como material, histórias do folclore brasileiro para a pesquisa. Sabemos que as lendas do folclore brasileiro têm sua base na oralidade e que por isso varia bastante em cada região e em cada época, afinal como já dizia o ditado popular “quem conta um conto, aumenta um ponto”. Desta forma reconhecemos que, se nos pautarmos somente em publicações em livros, a pesquisa, muito provavelmente, ficará empobrecida. Por outro lado, sabemos que pelo mesmo motivo a pesquisa se tornaria inviável se não nos apoiássemos em compilações já feitas. Desta forma, abrangeremos também documentários e compilações escritas a respeito destas histórias, materiais documentais que não são abrangidos pela pesquisa bibliográfica, sendo incorporados na pesquisa documental, uma vez que,

O elemento diferenciador está na natureza das fontes: a pesquisa bibliográfica remete para as contribuições de diferentes autores sobre o tema, atentando para as fontes secundárias, enquanto a pesquisa documental recorre a materiais que ainda não receberam tratamento analítico, ou seja, as fontes primárias. (SÁ-SILVA; ALMEIDA; GUINDANI, 2009, p.06)

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Escolhemos este recorte, pois estes contos permeiam a nossa construção psicossocial, como nos mostra Bettelheim (2002, p. 06)

Através dos séculos (quando não dos milênios) durante os quais os contos de fadas, sendo recontados, foram-se tornando cada vez mais refinados, e passaram a transmitir ao mesmo tempo significados manifestos e encobertos - passaram a falar simultaneamente a todos os níveis da personalidade humana, comunicando de uma maneira que atinge a mente ingênua da criança tanto quanto a do adulto sofisticado. Aplicando o modelo psicanalítico da personalidade humana, os contos de fadas transmitem importantes mensagens à mente consciente, à pré-consciente, e à inconsciente, em qualquer nível que esteja funcionando no momento. Lidando com problemas humanos universais, particularmente os que preocupam o pensamento da criança, estas estórias falam ao ego em germinação e encorajam seu desenvolvimento, enquanto ao mesmo tempo aliviam pressões pré-conscientes e inpré-conscientes.

No entanto, levando em conta o grande universo destes contos e suas variantes regionais, utilizaremos como base duas compilações a respeito dos personagens folclóricos brasileiras: os livros “Monstruário” de Corso (2004) e “As 100 melhores lendas do Folclore Brasileiro” de Franchini (2011). Entendemos que as obras de Câmara Cascudo, nos trariam uma maior abrangência e profundidade, mas isso tiraria o foco da pesquisa, não havendo tempo hábil para tal aprofundamento. No entanto, as obras utilizadas muito de baseiam neste autor, trazendo ainda alguns outros e por isso estas sistematizações nos pareceu mais produtiva, pois os personagens são apresentados de maneira mais direta e com fontes um tanto mais variadas.

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4 ENTENDENDO O MEDO

Para podermos iniciar uma discussão a respeito do fascínio do ser humano por sentir medo, primeiramente precisamos compreender com um pouco mais de profundidade este sentimento.

Como já levantado anteriormente, o medo é um sentimento primário, universal e experimentado por todos os seres humanos e animais. É um mecanismo de defesa que deixa o indivíduo alerta para tomar reações rápidas, ou mesmo uma paralisação.

De maneira sistematizada entendemos que

No estrito e estreito do termo, o medo (individual) é uma emoção-choque, frequentemente precedida de surpresa, provocada pela tomada de consciência de um perigo presente e urgente que ameaça, cremos nós, nossa conservação. Colocado em estado de alerta, o hipotálamo reage por uma mobilização global do organismo, que desencadeia diversos tipos de comportamentos somáticos e provoca sobretudo modificações endócrinas. Como toda emoção, o medo pode provocar efeitos contrastados segundo os indivíduos e as circunstancias ou até reações alternadas em uma mesma pessoa [...]. Ao mesmo tempo manifestação interna e experiência interior, a emoção de medo libera, portanto uma energia desusada e a difunde por todo organismo. Essa descarrega em si uma reação utilitária de legítima defesa, mas que o indivíduo, sobretudo sob o efeito das agressões repetidas de nossa época, nem sempre emprega com discernimento. (DELUMEAU, 1996, p. 23. grifo nosso)

Esta última afirmativa da análise de Delumeau reforça a ideia da importância do trabalho com este sentimento. O medo tem uma reação utilitária, mas que precisa ser empregada com discernimento, desta maneira não podemos simplesmente evita-lo, mas sim canalizá-lo para algo positivo.

No entanto, como também reforçado na citação anterior, o medo pode gerar uma estagnação, uma sensação de impotência que nada têm a contribuir com o desenvolvimento do indivíduo.

Mas o que nos dá medo? Esta provavelmente é a dúvida que rege este capítulo. Para tal procuraremos entender a diferença entre um “medo construtivo” distinguindo-o do “medo paralisante”.

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porém, com mais precisão, que não há provas concretas e sistematizadas de sua existência). França (2011) articulando sobre os prazeres estéticos do medo concorda que o maior temor humano é a morte, pois é o supremo desconhecido, mas através da literatura (aqui percebemos que também cabem as histórias orais e outros tipos de narrativa como filmografias, sonografias etc.) é possível experimentar o risco e a morte com certa segurança, uma vez que

O medo produzido pela imaginação do sujeito, que projeta a imagem de seu “eu morto” e com ela sofre, assemelha-se aos mecanismos ficcionais de identificação entre leitor e personagem. Em outras palavras, o processo que nos conduz a experimentar nosso medo mais primitivo, universal e intenso – o medo da morte – poderia ser encarado como similar ao que nos leva, no ambiente ficcional, a sentirmos medo sem efetivamente corrermos risco. A esse tipo de experiência chamamos de medo artístico. (FRANÇA, 2011, n/p.)

Tendo esse termo “medo artístico” em mente discutiremos as potencialidades para a construção de autonomia e instigação da curiosidade através de uma insegurança segura, que proporciona medo e inquieta. Considerando este “medo artístico” como algo imaginário que ofereça à pessoa uma maneira segura de se encontrar em diferentes situações.

Também neste capítulo, procuraremos identificar o modo como o sentimento do medo se transformou ao longo da história, transformando da mesma forma os elementos de dar medo.

4.1 Delimitando o Medo

Para propormos o medo como instigador de descobertas, acreditamos ser necessário uma delimitação do termo “medo”, precisando qual faceta estamos trabalhando. Inicialmente levantamos alguns termos comumente relacionado aos medos: angustia, terror e horror. A respeito destes dois últimos, Silva (2011, p. 12-15) nos explica que,

A distinção básica entre horror e terror consiste no primeiro ser da ordem do psicológico e o segundo da ordem física. [...]

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[...] Por outro lado, a concepção de terror envolve uma ameaça externa, algo que vem de fora e é parcial ou inteiramente desconhecido.

Sobre a angústia, encontramos em Delumeau (1996, p. 26) a seguinte explicação “[...] como o medo, a angústia é ambivalente. É o pressentimento insólito e espera da novidade; vertigem do nada e a esperança de uma plenitude”.

Neste sentido, entendemos que o horror e a angústia estão relacionados com o medo psíquico (imaginário ou dedutível) enquanto o terror está relacionado à reação física perante um perigo.

No entanto, é necessário lembrar que o que o medo é positivo, é incitador de novas possibilidades de conhecimento, de criação, de entendimento daquilo que causa estranhamento. Mas ele também causa insegurança, instabilidade,

[...] quando prevê ameaças que, por serem ainda mais imprecisas, nem por isso são menos reais. Estimula então a mobilização do ser. Mas uma apreensão demasiadamente prolongada pode também criar um estado de desorientação e inadaptação, uma cegueira afetiva, uma proliferação perigosa do imaginário, desencadear um mecanismo involutivo pela instalação de um clima interior de insegurança (DELUEMAU, 1996, p, 26)

Portanto consideramos que há uma linha tênue entre o medo que movimenta e o medo que paralisa, que o fascínio pelo medo (logo sua potencialidade instigadora) se dará quando se é submetido ao perigo com alguma proteção, alguma segurança que permita a mobilidade. Sendo assim, em linhas gerais, trataremos do medo como movimento, ação e superação, levando em conta que este sentimento é um desdobramento de provocações de horror e angústias, inseridas em uma atmosfera de segurança.

Em uma abordagem mais voltada ao estudo da sociedade e dos medos coletivos, Santos (2003) explica que além das reações biológicas e instintivas, o medo no ser humano sofre prioritariamente a influência da cultura.

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terror, de susto, de pavor. É uma tentativa de pensar a emoção a partir desse olhar que não pode descartar ou minimizar a importância do aspecto social. (SANTOS, 2003, p.50)

Seguindo a mesma linha, Milanez define que os medos “refletem os tabus que uma sociedade não quer dizer e colocar à mostra solfejando seus sons de maneira alta e clara.” (MILANEZ, 2011, p. 252). O que nos leva à próxima sessão.

4.2 O Medo na Historia

Para procurarmos entender uma potencialidade positiva no sentimento de medo primeiramente precisarmos entender como se dá este sentimento nas pessoas. Mais uma vez enfatizamos que o trabalho aborda não os medos implicados diretamente em riscos físicos, mas sim os medos residentes na imaginação. Desta forma uma hipótese já pode ser levantada: os elementos de dar medo são pertencentes e criados pelas pessoas, logo variam de acordo com a época e lugar.

Tendo em mente esta variante, para compreendermos como se dá o medo em nossa sociedade, parece-nos necessário traçarmos, em grossas linhas, a evolução destes elementos e como eles mobilizaram as sociedades humanas. Reconhecemos que somos frutos de uma sequência histórica, nossa sociedade não surgiu do nada, mas é resultado de uma consequência construída através do tempo.

Também neste sentido, reconhecendo o histórico cultural brasileiro, que sofre prioritariamente influência europeia (colonos), africana (escravos) e indígena (nativos) (CASCUDO,2002), entendemos que muitos dos nossos elementos de dar medo têm por base a cultura desses povos. Infelizmente, os registros bibliográficos e documentais sobre o medo referentes aos povos colonizados e escravizados são escassos (para não dizer inexistentes), portanto admitimos que neste momento, trataremos com mais detalhes sob uma ótica europeia.

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diversidade cultural ocidental, delimitou sua pesquisa à Europa entre os séculos XIII à XIX. Mesmo com este recorte temporal, o autor, assim como nós neste trabalho, precisou entender um pouco como se dava o medo nas épocas anteriores à que ele se propôs a aprofundar, desta forma, referente à antiguidade, ele resume que

[...] os antigos viam no medo um poder mais forte do que os homens, cujas graças contudo podiam ser ganhas por meio de oferendas apropriadas, desviando então para o inimigo sua ação aterrorizante. E haviam compreendido – e em certa medida confessado – o papel essencial que ele desempenha nos destinos individuais e coletivos. (DELUMEAU, 1996, p. 21)

Santos (2003) amplia a análise de Delumeau, entendendo que na antiguidade o medo era compreendido como externo ao ser humano: um deus que agia sobre os homens tirando sua coragem e tornando-o fraco e inseguro.

Cabe aqui algumas considerações que já nos deixam algumas pistas para compreendermos o principal questionamento deste trabalho: a relação do prazer e da instigação que os elementos de medo nos trazem. Miram Sutter (2002), trazendo a perspectiva da personificação divina do medo na mitologia grega nos explica que “da união desses dois extremos antagônicos de um todo, pulsão de vida (Afrodite) e pulsão de morte (Ares), nascem Fóbos e seus dois irmãos: Deímos (o terror) e a bela Harmonia” (SUTER, 2002, p.13). Em outras palavras, os gregos entendiam que o medo, o terror e a harmonia faziam parte da mesma família, literalmente falando. Podemos aí entender uma primeira tentativa de organizar uma aproximação entre esses sentimentos que são à primeira vista conflitantes.

No entanto, estes sentimentos eram entendidos como externos às pessoas: não era possível “tomar as rédeas” dos próprios sentimentos, uma vez que eles eram influenciados por divindades que atendiam às oferendas que melhor lhe apetecessem. Nesta situação de vulnerabilidade, o que fazer quando não se pode agradar o deus que nos ataca à seu bel-prazer?

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origem do mal, teve grande influência no desenrolar da história europeia, pois assim como Deus, sua “jurisdição” não se atinha somente à vida, mas principalmente à vida após a morte (LIEBEL, 2004).

No entanto, considerando que a doutrina cristã prega o livre-arbítrio humano, caberia às pessoas escolherem suas atitudes, de forma que o mal e o pecado estariam no interior de cada um, sendo que as atitudes em vida teriam consequências também após a morte. Delumeau nos explica que isto, dentre outras tantas coisas, foi uma das formas de disseminar e reforçar o cristianismo e a conduta gerenciada pelos padrões da igreja católica, pois

O homem nada pode contra a morte, mas – com a ajuda de Deus – lhe é possível evitar as penas eternas. A partir daí, um medo – teológico- substituía um outro anterior, visceral e espontâneo: medicação histórica, medicação assim mesmo, já que proporcionava uma saída ali onde não havia senão o vazio. (DELUMEAU, 1996, p.37)

Ou seja, se por um lado com o cristianismo o homem começa a compreender o medo como algo interno, não induzido por algum outro ser, por outro ele acaba por temer a si próprio e principalmente da vida após a morte. Com isso a igreja católica reforça e garante seu poderio e sua influência no controle das pessoas, pois,

A singularidade que o Diabo e o Inferno adquirem na Idade Média, impregnada no imaginário coletivo e nos valores sociais, marca a agregação em torno do cristianismo unificador que se impunha sobre múltiplos poderes locais conflitantes. O crescimento do medo corresponde ao crescimento do poder simbólico da Igreja, que constrói a imagem do Maligno e da feiticeira num combate acirrado aos resquícios do paganismo demonizado. (MUCHEMBLED, 2001apud LIEBEL,2004, p. 209)

Nesse momento, o medo que antes era algo negociável com um deus para atingir um inimigo, agora é visto como uma maneira de coerção. Inferimos aí que o medo, tanto na antiguidade quanto no medievo é considerado uma potente arma: quem tem controle do medo dá as cartas para aqueles que têm medo.

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que o povo - essencialmente os camponeses – tenha medo. (DELUMEAU, 1996, p. 15)

Como já indicado anteriormente, partimos prioritariamente de uma ótica da Europa Ocidental, visto que é a fonte mais completa e sistematizada que obtivemos em nosso levantamento bibliográfico. No entanto, Santos (2002) traz essa ótica, com outra compreensão. A autora discute como se deu uma política de preconceito racial muito antes do discurso de raça em si. Chamando a atenção para o exótico (ao europeu) negro africano e nativo indígena, iniciou-se uma construção de fascínio e temor, que justificaria mais adiante a escravatura e a aculturação. Em rápidas palavras, seu artigo explica que durante a Idade Média tudo relacionado à cor preta era relacionado ao obscuro, logo ao demônio, e por extensão, as pessoas negras eram consideradas como pertencentes ao demônio. “Piedosos” que eram os católicos europeus empreenderam então, uma força-tarefa para promover a expiação dos pecados dos negros através do trabalho no lugar que seria o resquício do Éden, onde feras e humanos conviviam sem nenhum pudor corporal: as colônias latino-americanas. Segundo a autora isso justificava e ainda dava uma causa nobre à escravidão negra, acrescentando ainda que a aculturação e escravidão indígena era bem mais branda e, mais mal vista do que a mesma prática com os negros.

Neste sentido, Santos (2002) nos traz como este discurso toma mais força quando reforçado pelo medo, pois

O negro, desta forma, pode ser visto como o outro do branco, um duplo, como aquele que, ao surgir diante do branco, lhe remete a essa sensação de estranhamento, de terror, de algo que solicita, de alguma forma, uma simbolização. Essa simbolização ocorre através da construção, em primeiro lugar, do exotismo. [...] (SANTOS, 2002, p. 281)

Sendo o negro o “outro”, o “exótico”, em uma cultura ortodoxa como a cultura europeia medieval, podemos imaginar como foi fácil implantar e sustentar o discurso da submissão desses povos de cor negra, encarado como combate ao mal destes “monstros demoníacos”. Sustentados por um discurso do medo do branco se escurecer, combate-se o temor dos negros subjugando-os.

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negro, por sua vez, pode representar a desrazão, a loucura (a bílis negra que obscurece), o feio, o injusto, a animalidade. Ou, de uma forma mais radical, o negro pode simbolizar o estranho. Esse veio conduz a pensar a oposição branco/negro como a tradução mais acabada de sentimentos profundos gerados pela capacidade e pela incapacidade de simbolizar. (SANTOS, 2002, p. 280)

Sendo esta seção destinada à um prévio levantamento dos medos em cada momento histórico, deixaremos um aprofundamento da discussão a respeito do medo do outro para os próximos capítulos, continuando assim a discussão a respeito dos medos nos diferentes momentos históricos.

Já na modernidade, com o antropocentrismo iluminista, o Diabo perde espaço, e o medo não é mais o da danação eterna, mas sim das tecnologias e descobertas científicas, das monstruosidades que elas poderiam trazer.

Surge então o gênero fantástico, no qual Satã vê seu poder diminuído e sua própria realidade questionada. Na literatura inglesa, ao contrário, observa-se o roman noir com um ambiente carregado de terror, o Diabo externo e um caminho mais longo à personalização do Mal do que na França, onde o “cristianismo da danação” não surte mais efeito num meio anticlerical. Mas isso não inibe a vulgarização do universo demoníaco, visível na literatura “frenética”, com Frankenstein, de Mary Shelley, sendo dito um “demônio” – porém, foram os homens que o tornaram mau. (LEBEL, 2004, p.211)

Mas, o que dizer do medo em nossa contemporaneidade? Admitimos que ainda mantemos muitos dos temores, mas acrescentamos alguns mais. Bauman (2008) dedica todo um livro para analisar o medo na contemporaneidade, dentro de seu conceito da liquidez do nosso tempo, afirmando que vivemos um tempo de angústias e que

Nossa vida está longe de ser livre do medo, e o ambiente líquido-moderno em que tende a ser conduzida está longe de ser livre de perigos e ameaças. A vida inteira é agora uma longa luta, e provavelmente impossível de vencer, contra o impacto potencialmente incapacitante dos medos e contra os perigos, genuínos ou supostos, que nos tornam temerosos (BAUMAN,2008, p. 15)

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se, neste contexto, há algum vislumbre de potência de mobilização e abertura, ou se não temos alguma opção exceto nos resguardarmos numa individualidade endêmica e profunda.

Na afirmação de sempre tivemos medo e ele se enraíza cada vez mais em nosso ser e cada vez mais restringe nossa mobilidade, surge a ideia de tornar a doença o remédio, tal qual uma vacina. Não podemos exterminar o medo, de modo a não sermos mais susceptíveis à ele, mas acreditamos que podemos usá-lo como potência.

A difusão do medo relaciona-se diretamente com a institucionalização da vida em sociedade, uma vez que a socialização do homem, nos espaços privados e coletivos, apenas é possível a partir de práticas de dominação social e política sobre os indivíduos. É então possível pensarmos a existência de uma cultura do medo, em que os mitos de castigo são instrumentos fundamentais, como parte da institucionalização da vida coletiva na sociedade (VILHENA et al., 2011).

4.3 Os monstros e fantasmas – algumas considerações dos elementos que dão medo

Esta análise histórica do medo nos leva a traçar alguns itens recorrentes, uma espécie de ponto comum entre as épocas que nos servirá de ferramenta para filtrarmos os contos folclóricos que abordaremos.

Temos medo de seres estranhos: em todas as épocas, as pessoas temem aquilo que conhecem mas se não entende.

Temos medo daquilo que ameaça: se uma vez comprovado o risco que o elemento pode oferecer o medo é reforçado, e somente com uma boa segurança (sabendo que é fictício ou que está com equipamentos que o protejam) e pode ser enfrentado.

Temos medo da morte: considerado fim último é podemos dizer que é a junção dos dois primeiros, pois é conhecido, mas não compreendido e elimina a integridade do corpo.

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que buscaremos compreender e propor ideias de como pensar nelas como instigadoras da curiosidade e da compreensão do diferente.

Como propulsores do medo à priori, os monstros geram fascínio seja em crianças como em adultos. De maneira bastante didática Cohen (2000) elabora sete teses sobre os monstros, sendo que estes ensaios nos ajudam a entender a relação entre os monstros e os sujeitos no contexto em que coexistem.

Seguiremos esta linha2, abordando o conceito do autor, complementando

quando necessário, com alguns outros para termos uma visão mais clara de como podemos abordar as potencialidades do medo.

4.3.1 O corpo do monstro é um corpo cultural

O monstro é formado pelo aspecto cultural. Abordamos em especial esta tese na primeira seção deste trabalho, quando discorremos sobre os medos através das épocas. No entanto, focamos aqui a ideia de que além de mudar conforme a época, os monstros também correspondem à sua cultura, logo a corporeidade do monstro (ou até mesmo sua falta de corporeidade) se dará pela deturpação dos padrões considerados normais e aceitos. Para Cohen (2010, p. 27) “O corpo monstruoso é pura cultura. Um constructo e uma projeção, o monstro existe apenas para ser lido: o monstrum é, etimologicamente ‘aquele que revela’, aquele que adverte’, um glifo em busca de um hierofante”. Ou seja, o monstro é aquilo que destoa do momento cultural (MILANEZ, 2011)

França (2011, n/p), parece concordar com esta afirmativa ao discutir que

[.,.] a atribuição de impureza à monstruosidade estaria relacionada à percepção de que o ser monstruoso transgride ou viola esquemas de categorização cultural. Seres ou coisas intersticiais, que não podem ser arroladas a uma única categoria conceitual de uma cultura, costumam ser tomadas como impuras [...] como muitos monstros do gênero do horror, que são, de algum modo, uma mistura de elementos constitutivos distintos.

Vilhena et al. (2011) trazem um levantamento um tanto mais pontual respeito da corporeidade dos monstros (ou do próprio medo). Ao pesquisarem com crianças de diferentes classes sociais da cidade do Rio de Janeiro, eles

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trazem como as realidades projetadas por cada classe pode balizar a manifestação do medo nas crianças. Primeiramente, os autores ressaltam a problemática de que “[...] os medos tradicionalmente infantis, como de escuro e das diversas figuras imaginárias representante do desconhecido e estranheza, saem de cena dando lugar a medos que são frutos diretos da realidade em que esses indivíduos vivem.” (VILHENA, et al., 2011, p. 176)

Concluem as pesquisas mostrando que

Inicialmente, observamos que nas classes médias e altas o medo de ladrões, sequestros e favelas foi extremamente evidenciado. Em contrapartida, nas classes baixas, além das referências à violência dos homens, o medo de animais (ratos, lacraias, cobras) e eventos inesperados como atropelamento revelam um distanciamento claro de percepções e atuação do sujeito perante a um mesmo sentimento (VILHENA, et al., 2011, p. 178)

Ou seja, em algum momento o “monstro tradicional”, aquele imaginário e “vencível” perdeu espaço para um tipo de monstro que oferece um risco real, e que está muito além da capacidade da criança (e muitas vezes do adulto) de enfrentar. Neste sentimento de medo pouco podemos construir, uma vez, diferentemente de tentar entender e criar empatia com o estranho, este se torna um perigo claro à própria integridade, causando ainda mais o distanciamento, pois “[...] estamos vivendo um tempo no qual os medos não são combatidos e sim patologizados, medicados e estereotipados. Isto leva os sujeitos a comportamentos individualistas, nos quais o que está além do próprio território é visto como ameaçador.” (VILHENA, et al., 2011, p. 184). Esse tipo de temor é o do medo-líquido, angustiante e individualizador, que nos priva da liberdade e da aproximação dos outros (BAUMAN, 2008).

4.3.2 O monstro sempre escapa.

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Por sua condição enigmática, o monstro sempre escaparia das tentativas de se aprisionar seu significado e, por conseguinte, sua ameaça [...] a lógica que fundamenta a existência de um monstro está sempre mudando, razão pela qual nunca se apreende totalmente o monstro, nem se neutraliza sua ameaça, encaixando-o na normalidade. (FRANÇA, 2011, n/p.)

Podemos dizer que quando apropriamos deste conceito para reforçarmos nossa ideia de medo como instigador, uma vez capturado, dissecado e compreendido, o monstro nos é conhecido e uma vez catalogável e decifrável, ele tem de se apresentar com um novo desafio, uma nova “ameaça” a ser enfrentada.

Corroborando esta afirmação, Prieto (2002) numa abordagem menos pontual, lembra que “o conceito moderno sobre monstro está aproximado ao desconhecido e à surpresa” (PRIETO, 2002, p.5), ou seja, o monstro também pode ser entendido como o diferente, aquilo que não dominamos.

Neste sentido, os monstros imaginários, como os monstros das lendas folclóricas que não se prendem a uma única história e não podem ser esmiuçados, nos gera um fascínio constante, insaciável. Existem algumas tentativas na compilação destes monstros, a exemplo de duas obras que utilizamos neste trabalho, como o Monstruário (CORSO, 2004) e As 100 Melhores Lendas do Folclore Brasileiro (FRANCHINI, 2011), além dos diversos

estudos de Câmara Cascudo (1972,2002)3. No entanto todos eles admitem que

estas compilações têm como intuito registrar para que estas histórias não se percam, sendo esta sistematização mais uma forma didática de apresentá-los e registra-los, do que estuda-los propriamente dito.

Interessante notarmos aqui que, mesmo em um momento que nos distanciamos do mundo das crendices no qual estas criaturas folclóricas se colam, estes monstros continuam causar espanto. À isto Corso (2004) nos lembra que o tempo dos mitos ainda estão valendo, afinal temos ainda nossos próprios monstros mitológicos (como extraterrestres, máquinas que se vingam de humanos, apresentadores de televisão que trazem bênçãos a troco de algo), então, pergunta o autor, por que não entendemos os mitos brasileiros? Por isso também nos dedicamos a fazer este recorte: os monstros brasileiros são

3 Os anos citados são referentes às obras que consultamos para esta pesquisa, no entanto este é um

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bastante medonhos e suas formas de assustar são igualmente criativas, porque não nos assustarmos com eles?

4.3.3 O monstro é o arauto da crise de categorias

Desencadeando a ideia de que o monstro não pode ser catalogável, ele é o novo, aquilo que difere do que é conhecido, mas também não é tão misterioso que sua presença não possa ser identificável (COHEN, 2010). Logo, os monstros sempre representam as discussões e a quebra de preceitos de uma determinada época ou local. Donald (2010), ao analisar as histórias em filmes e livros de terror nos explica que o que nos leva a ver estas histórias é o incômodo causado pelo estranho freudiano, e que seu “desconfortável apelo consiste no fato que o que aparece como estranho e amedrontador acaba sendo algo que, em certo sentido, nós já sabemos” (DONALD, 2010 p. 114)

Novamente entendemos o monstro como questionamento e mudança. Aquele que ameaça o senso comum e a segurança de uma ideia fixa. Esta ideia aproxima com o entendimento de riso de Larrosa (2010) onde nota-se que aquele sempre mostra a finitude de tudo (ser, ideia, posição), logo nada é sério a ponto de não ser risível.

Nessa concepção, Larrosa (2010) explica que o riso e o personagem que estimula o riso (o pícaro, o bobo e o bufão) tem como “função” rir e questionar o sério, mantendo assim sempre as portas abertas e as amarras soltas para um constante questionamento a respeito do sério e do real. À isto vêm de encontro também os monstros, que sempre espreitam nossa segurança e nosso engessamento. Eles conseguem se infiltrar nas menores frestas e quebrar nosso sossego, seja no meio da noite ou nos dias mais claros.

Como já explicitamos anteriormente o monstro é nos desafia a vencê-lo, e para vencê-lo, temos que conhece-lo. Por fim para conhece-lo temos que questioná-lo. Neste movimento de conhecer nosso próprio inimigo, surgem questionamentos tanto quanto ao monstro quanto a nós mesmos, e é nestas indagações que o monstro pode se revelar como destruidor das certezas e arauto das crises daquilo que já catalogamos, empacotamos e arquivamos.

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Até o momento Cohen (2010) dá a entender que tudo o que é diferente do aceito é tido como um monstro e neste processo o ato de eliminar o monstro se mostra heroico, reforçando assim que o poder vigente encontra-nos próprios dominados os combatentes para sua hegemonia.

Para Carvalho (2004, p.16)

Simbolicamente, o perigo está associado à ambigüidade estrutural que torna o indivíduo liminar inclassificável dentro dos padrões preestabelecidos: ele é pura contradição e ambivalência, deve ser segregado parcial ou completamente do reino dos estados ordenados da cultura.

O monstro representa o quão frágil são os conceitos instituídos, que o tido como o normal, o padrão e aceitável é questionável e transitório, ou para usarmos o conceito de vida líquida de Bauman (2007) como nossa compreensão de mundo toma a forma do recipiente (regras da sociedade) que estamos inseridos. Dessa forma o monstro é um perigo à quem pode deter o poder sobre os demais, à quem dita as regras, pois ele tem a força de quebrar os recipientes e derramar todo o líquido, e nisso,

Ao revelar que a diferença é arbitrária e flutuante, que ela é mutável antes que essencial, o monstro ameaça destruir não apenas os membros individuais de uma sociedade, mas o próprio aparato cultural por meio do qual a individualidade é constituída e permitida (COHEN, 2010, p. 40)

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4.3.5 O monstro e a política, as fronteiras do possível

Donald (2010) nos aponta que o monstro delimita o território do conhecido e as “imagens do monstruoso ajudam a definir as fronteiras da comunidade” (DONALD, 2010, p. 110). Ele se espreita nos limites daquilo que temos como familiar e com isso ele nos lembra de que há sempre coisas além do que conhecemos. Neste sentido, ele assume formas que nos amedontram para não ultrapassarmos este limite, nos lembrando de que “a curiosidade é mais frequentemente punida do que recompensada, que se está mais seguro protegido em sua própria esfera doméstica do que fora dela” (COHEN, 2010, p. 41).

No entendimento de Larrosa (2010) a possibilidade é aquilo que é provável, calculado a partir de uma compreensão de realidade e os limites que ela possa ser mudada, sendo que as “duas dimensões do possível o remetem então, ao saber e ao poder: é possível o que sabemos que pode acontecer e é possível o que podemos converter em real” (LARROSA, 2010 p. 193). O monstro se situa então na fronteira daquilo que tem probabilidade de existir, ou seja, de certa forma ele está entre o possível e o impossível, ele guarda esta fronteira para que não a ultrapassemos, para nos preservar no possível, no real.

Mas como discutimos anteriormente, a realidade é constituída a partir de uma ótica dominante, logo o monstro nos guarda dentro do território do possível, mantendo de fora o impossível, aquilo que não se sabe e não se pode (LARROSA, 2010). Guardando a fronteira, o monstro sinaliza até onde está nosso conhecimento, ou seja, há algo além desta fronteira, algo que não conhecemos e não podemos. Por que não podemos? Por que não sabemos? Como resistir à tentação destas perguntas?

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chamariz para a fronteira entre o possível e o impossível. Não é difícil imaginar porque nos ensinam que eles são tão ruins.

4.3.6 O medo do mostro é realmente uma espécie de desejo

Neste momento é onde percebemos que o monstro na verdade representa aquilo que nos é proibido, é aquele que pode o que não podemos, que vai onde não fomos. Ou seja, ele tem a liberdade que não temos e os invejamos, por que a terra do monstro “são mais do que as obscuras regiões do perigo incerto: elas também são domínios de fantasia feliz, horizontes de libertação” (COHEN, 2010, p. 49)

Mas de maneira óbvia não conseguimos aceitar que sejam tão mais livres que nós, logo queremos ocupar o espaço deles. É aí que, talvez more o prazer no sentir medo: queremos ser os monstros, pois as “criaturas que aterrorizam e interditam podem evocar fortes fantasias escapistas; a ligação entre a monstruosidade com o proibido torna o monstro ainda mais atraente como uma fuga temporária da imposição” (COHEN, 2010, p. 48).

Carvalho (2004) em um estudo sobre a relação do Diabo (o maior dos monstros católicos) e o riso, entre outras coisas nos mostra como por desafiar constantemente os poderes divinos (poderosamente único), ele acaba por se tornar um ser divertidamente livre, e que a condição em que se encontra “reside justamente na capacidade de transformar a sujeira em algo criativo, que pode ser percebido como agradável ou prazeroso” (CARVALHO, 2004, p. 17). Temos então pelo menos um motivo para nossa empatia e prazer no medo e com os monstros: eles nos apresentam uma liberdade que nos é negada, uma fronteira a ultrapassar, horizontes novos a descobrir.

Ao discutir a ideia de sublime de contida em Burke (1958), Donald (2010) explica que o sublime se envolve com a incerteza, ou como dissemos anteriormente com a impossibilidade (LARROSA, 2010), e que o sublime “[...] envolve poderosas emoções, redutíveis, em última instância, aos viscerais processos de prazer e dor” (BURKE, 1958 apud DONALD,2010, p. 120).

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Como anteriormente explicado, não capturamos o monstro, pois quando o fazemos (o dissecamos e o compreendemos totalmente) ele não é mais um monstro. No entanto, quando isto acontece criamos outro monstro ou ainda o monstro que é capturado, se transforma e novamente vira um monstro, reiniciando o ciclo espiral.

É como se fossemos ao encontro do mostro no horizonte e quando finalmente chegamos a ele, ele toma novamente distância. Nesta nova distância, ele novamente nos instiga a ir adiante. Neste processo de gato-e-rato, o monstro nos leva a questionar nossos saberes, nossas certezas, para chegar onde ele está, precisamos trilhar o caminho dele, neste caminho entende-lo e com isso,

Esses monstros nos perguntam como percebemos o mundo e nos interpelam sobre como temos representado mal aquilo que tentamos situar. Eles nos pedem para reavaliarmos nossos pressupostos culturais sobre raça, gênero, sexualidade e nossa percepção da diferença, nossa tolerância relativamente à sua expressão. Eles nos perguntam por que os criamos. (COHEN, 2010.p. 55)

Ou seja, os monstros assim como “[...] os personagens cômicos são seres que estão implicados, que não entendem, que não participam, que estão sempre por fora, a certa distância do que acontece [...]” (LARROSA, 2010, p. 178). Estando por fora, não querem entrar, mas de certa forma, nos convidam a sair.

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5 MONSTROS E FANTASMAS CONTERRÂNEOS

A cultura brasileira é permeada de diversas culturas, por isso suas lendas e personagens apresentam uma miscigenação das etnias que por aqui viviam e ainda vivem. Ou seja, temos no mesmo rol cultural personagens da cultura europeia, indígena e africana (CASCUDO, 2002). No entanto, esta cultura não é muito valorizada pelos próprios brasileiros (CORSO,2004), preferindo se assustar com abóboras, do que com monstros com boca e garras pelas costas, ou ainda insistem em uma miscigenação forçada colocando o Saci como soldado contra o Halloween.

Esta seção é dedicada ao levantamento das histórias do folclore brasileiro que tragam elementos de dar medo, em especial os monstros e os fantasmas. Salientamos que por ser uma cultura muito diversificada, procuraremos nos ater às histórias que já foram compiladas e sistematizadas em mídias como livros ou filmes, desta forma, poderá haver variações regionais que destoem das versões aqui narradas. Diferentemente dos contos de fadas europeus, existem inúmeras histórias relacionadas aos personagens folclóricos, de modo que trataremos mais dos personagens que da história em si.

Não queremos aqui desmerecer as histórias e personagens folclórica de outros países, mas como brasileiros devemos conhecer nossos mitos, pois o “[...] Brasil migrou do campo para a cidade e esqueceu no fundo do sertão e das matas os seus monstros e outros seres da imaginação” (CORSO, 2004,p. 13). Desta forma, este trabalho também se propõe a manter na memória estes mitos nacionais.

5.1 Os monstros que aprisionam

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pois não nos representam. No entanto, o autor reforça a ideia da capacidade de atualização dos monstros, enfatizando que “[...] esses personagens não vão ser escutados para serem repetidos, mas para que nossa época possa fazer novas versões. Os mitos atravessam tempos, mas trocam de roupa. Cada geração dá seu colorido, recicla, introduz algo novo.” (CORSO, 2004, p. 14). Isso demonstra a força e a vivacidade dos monstros brasileiros, que não devem ficar trancados em museus ou livros, mas sim habitar a memória de diversas gerações.

No entanto, o que também nos chamou a atenção para este recorte foi a grande proporção de seres que dão medo. Ao sintetizarmos o Monstruário de

Corso (2004), percebemos que dos 66 mitos levantados4, 50 deles metem medo

(ameaçam a integridade fica e/ou mental das pessoas). Ou seja, nossos mitos são em sua maioria assustadores.

Da mesma forma, o levantamento organizado por Franchini (2011) no livro “As 100 melhores Lendas do Folclore Brasileiro”, apresenta também seu próprio “monstruário”, que muito coincide com o de Corso (2004) nos apresentando ainda mais alguns mitos (medonhos, é claro).

Em nossa sintetização, traçamos alguns pontos convergente entre os mitos, percebendo que eles remetiam à algumas características comuns. Este desenho é somente para apresentarmos estes monstros de maneira didática, entendermos que isto em si já é uma depreciação da imensidão destes seres, mas é o único jeito que dispomos para segurá-los um tempo no papel.

Pois bem, no cruzamento de dados entre os mitos brasileiros e nossa

delimitação do medo temos5:

Medo de sermos capturados, impedidos de sair: nos mitos da Alamoa, Cotaluna, Iara, Loira-do-Banheiro e Velho-do-Saco.

Medo de espíritos: Alma-Penada, Berrador/ Bradador, Bruxa,

Cachorra-da-Palmeira, Chibamba, Cumacanga, Dama-de-vermelho, Diabo,

Matintaperera, Pé-de-garrafa, Pisadeira, Porca-dos-sete-leitões, Saci.

4 São 67 mitos, mas excluímos do quadro a história do nome do rio Amazonas pelo motivo que conta tão

some te o po u do o e do io, a histó ia i te essa te, as u fato histó i o- itológi o isolado.

5 Para este estudo fizemos uma compilação dos dois livros: Monstruário e As 100 melhores lendas do

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Monstros que devoram: Capelobo, Chupa-cabra, Cobra-que-mama, Ewaipanomas, Gorjala, Jaguarão, Labatut, Lobo-mau, Mapinguari, Onça-boi, Papa-figo, Quibungo, Tapiora

Mata somente por prazer: Ipupiara

Mata por vingança: Anhangá, Boitatá, Curupira, Kilaino

Assusta ou agride (mas não mata): Barba Ruiva, Bicho-papão, Boi-da-cara-preta, Cabeça-de-cuia, Cabra-cabriola, Cobra-grande, Corpo-seco, Cresce-e-míngua, Cuca, Cupendiepes, Lobisomem, Marajigoana, Mula-sem-cabeça, Pinto-pelado, Tutu.

Percebemos assim que a cultura brasileira é permeada de monstros assustadores que tem como intuito aterrorizar e disciplinar as pessoas. Ora, por isso mesmo, visto toda potencialidade de instigação à curiosidade que vimos nos monstros, temos nestes terríveis seres, um vislumbre de transgressão.

5.2 Uma abordagem diferente: juro que vi... Matinta Pereira.

Ao buscarmos exemplos e levantamentos dos monstros folclóricos em vídeos, nos deparamos com uma série intitulada “Juro que vi...”, que traz cinco animações: “O Curupira” (2003), “O Boto” (2004), “Iara” (2004), “Matinta Perera” (2006) e “O Saci” (2009), produzidas através de uma parceria entre a empresa Multirio e alunos da Escola Municipal George Sumner, da rede municipal do Rio de Janeiro, entre os anos de 2001 a 2010.

Toda a construção do roteiro, e da caracterização dos personagens, foram feitos a partir da concepção das crianças, que segundo os relatos dos produtores, traziam ideias bem diferentes daquilo que havia sido previsto, sendo que as próprias crianças sugeriram abordar temas como: novas constituições familiares – em “O Boto” -, a beleza e o consumo – em “Iara”-, a proteção da floresta – em “O Cururpira”-, a velhice e a morte – em “Matinta Perera” - e o trabalho infantil – em “O Saci” (SANTOS, 2013).

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Primeiramente, para quem não a conhece, descreveremos a lenda: a Matinta Perera é conhecida como uma coruja de pio agourento, que nas “horas mortas da noite, ouvem o cantar de Matitaperê, quem ouve está dentro logo diz ‘Matinta, amanhã podes vir buscar tabaco’”. (CASCUDO, 1972, p. 374). Reza a lenda que esta coruja é a transformação de um pajé ou uma bruxa (sempre idosos) que em sua forma humana, se mantém em uma perna e pulam para se locomover, semelhante ao Saci (CASCUDO, 1972). Na tradição indígena, a Matinta Perera é o próprio Saci, que se transforma em uma ave que faz os viajantes se perderem na floresta devido seu canto enganador (FRANCHINI, 2011).

A grafia de seu nome varia, na série é grafado como Matinta Perera6, mas

também pode ser conhecida como Matintaperera ou Mati-taperê (CORSO, 2004). Independente da variação, todas as grafias apontam para os termos tupis mati, que em português pode ser traduzido como coisa pequena, e taperera que significa habitante da tapera, sendo que tapera, por sua vez, traduz-se por “maloca ou casebre abandonado”, de forma que Matinta Perera pode der traduzido como “ser pequeno que habita uma maloca abandonada” (CORSO, 2004)

O enredo do curta metragem se inicia com o voo da coruja homônima à personagem, com a narrativa

Esta história aconteceu no interior do Brasil. Lá, costumava-se ouvir o misterioso canto de um pássaro. As pessoas que tinham medo faziam oferendas, diziam que afastava o mal, e com ele, Matinta Perera. Quem esteve lá, me contou esta história assim e disse “juro que vi...”’ (MATINTA PERERA, 2006)

O curta prossegue sem diálogos falados, mantendo a história somente

com as imagens e a trilha sonora7. Após a apresentação, é mostrado um vilarejo

com pessoas assustadas, fechando suas janelas e colocando oferendas em trouxas de pano frente às suas portas. Enquanto isso, a sombra da coruja é projetada nas casas, e acorda um gato que a segue pelos telhados.

6 Por estarmos usando a série para análise, utilizaremos esta grafia.

7E e t evista o edia à “a tos a p oduto a Dias, ate ta ue [...] isto efo çou ai da ais a

questão do contar [...] podemos ver o filme do princípio ao fim e ele contará a história [quase] sem

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A cena continua em uma janela, onde uma menina segura uma boneca e observa o movimento. Sua mãe apreensiva, a puxa para dentro de casa onde também prepara as oferendas, recolhendo alimentos e bebidas em uma trouxa de pano. No entanto, por distração da mãe, a boneca da menina acaba sendo embalada junto na trouxa e é colocada como oferenda.

A menina fica abalada e corre para salvar sua boneca. Enquanto isso, a coruja passa próximo às portas, com o gato em seu encalço. Quando a menina vai pegar a boneca na trouxa, o gato esbarra com esta que rola para longe dela, próximo ao local onde a coruja pousa, o que faz com que a menina e o gato fiquem imóveis.

Figura 1- gato e menina observam a trouxa se distanciando

MATINTA PERERA, 2006

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Figura 2 - sequência da transformação de Matinta Perera

MATINTA PERERA, 2006

Figura 3 - rosto da Matinta Perera

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Vendo que a velha havia saído, a menina vai até a bolsa deixada sem guarda, pedindo ao gato que permanecesse de vigia. A menina, procurando sua boneca, acaba entrando na bolsa da Matinta Perera, que, para o desespero do gato e do espectador, já havia terminado de recolher suas oferendas e regressara, pegando sua bolsa, transformando-se novamente em coruja e alçando voo para sua toca.

O gato, então preocupado com a menina, segue a ave, chegando ele também o ninho: um casebre que fica no topo de uma montanha com a mesma forma da velha. Lá ele começa a explorar o local, que é iluminado somente pelas janelas na parede externa. A sonoplastia aliada com os tons terrosos da imagem, nos leva a sentir que nos encontramos dentro de uma gruta de terra úmida.

Figura 4 - Montanha da toca de Matinta Perera

MATINTA PERERA, 2006

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transpondo o véu, percebe que na verdade, a velha e a menina, estavam brincando com os cabos de um relógio-cuco.

Figura 5 - sequência da visão do gato, onde a Matinta Perera brinca com a menina.

MATINTA PERERA, 2006

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Acompanhamos novamente o gato pela gruta da Matinta Perera, sendo revelados locais belos e enigmáticos, como uma parede cheia de relógios, outra, como um altar com muitas imagens de santos. Um recinto com móbiles de pássaros, estátuas e brinquedos de madeira e instrumentos musicais. Por fim ele entra em um grande viveiro com o teto aberto, repleto de passados soltos. Após esta cena, temos uma visão completa da casa de Matinta Perera.

Figura 6: interior da casa de Matinta Perera

MATINTA PERERA, 2006.

A cena seguinte mostra a velha presenteando a menina com uma capa semelhante à sua, que em agradecimento dá a velha sua boneca. A menina corre então para brincar em um balanço, a velha oferece leite para o gato, que desconfia no primeiro gole, mas logo em seguida se põe a beber com entusiasmo.

Imagem

Figura 1- gato e menina observam a trouxa se distanciando
Figura 2 - sequência da transformação de Matinta Perera
Figura 4 - Montanha da toca de Matinta Perera
Figura 5 - sequência da visão do gato, onde a Matinta Perera brinca com  a menina.
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Referências

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