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MEMÓRIA AUTOBIOGRÁFICA NO DÉFICE COGNITIVO

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2.1. CARACTERÍSTICAS DA MEMÓRIA AUTOBIOGRÁFICA

A MA abrange informação relacionado com o próprio, num registo simultâneo de imagens e factos respeitantes a acontecimentos passados (Gonçalves, 2006). Trata-se de um processo de reconstrução de experiências pessoais, à luz do presente e geradas a partir de um conhecimento de base (Bluck & Levine, 1998; Conway & Pleydell-Pearce, 2000; Gonçalves, 2006). Representa um tipo de memória única do ser humano (Bluck & Liao, 2013; Fivush, Habermas, Waters, & Zaman, 2011) que recupera e interpreta os eventos passados, sendo rica em emoções, motivações, pensamentos e avaliações da história de vida (Fivush et al., 2011). A MA foca o self em interação com os outros e o mundo, ao longo da história de vida, que se insere num contexto cultural (Fivush et al., 2011).

A MA assume um papel central na identidade, nas emoções e noutras dimensões que definem cada pessoa (Serrano, 2002). A MA é, assim, fundamental para o self, para as emoções e para se situarem as experiências do indivíduo, inserido numa cultura, ao longo do tempo. O objetivo da recuperação, integração e reconstrução de memórias autobiográficas na velhice é alcançar a integridade do Eu, isto é, o desenvolvimento de um conjunto de auto esquemas positivos, realistas e que proporcionem um sentido de coerência e integridade ao individuo (Afonso, 2011). Consequentemente, a MA, é objeto de estudo de diferentes áreas da psicologia: cognitiva, social, desenvolvimental, clínica e neuropsicológica (Conway, & Pleydell-Pearce, 2000).

A recuperação de eventos pessoais significativos, também, emoções e sentimentos associados às memórias evocadas (Fivush et al., 2011; Levine, Lench, & Safer, 2009). Neste sentido, a recuperação de memórias autobiográficas positivas pode desencadear alegria ou orgulho, enquanto as recordações negativas podem originar sensações de stress (Levine et al.,2009).

O estudo experimental da memória humana partiu da perspectiva inicial que a considerava uma faculdade unitária para a sua diferenciação em subsistemas (Baddeley, 2001). A distinção entre memória semântica e memória episódica proposta por Tulving e Donaldson (1972) considera que a memória semântica se reporta ao conhecimento sobre o mundo e a informação genérica adquirida em diferentes contextos, sendo possível usar-se em diversas situações. A memória episódica refere-se à capacidade de recuperar eventos individuais, sendo específica, com capacidade para representar um acontecimento específico, localizado no tempo e espaço (Tulving, 1972).

A MA é tipicamente considerada um subtipo de memória episódica (Afonso, 2011; Gonçalves, 2006; Serrano, 2002), sendo tida como a mais complexa forma de memória humana, resultante da interação entre a memória episódica, as emoções e um sentido de

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continuidade do eu ao longo da história de vida (Piefke & Fink, 2005), que recorre a factos semânticos, muitas vezes de cariz autobiográfico (Gonçalves, 2006). A memória episódica permite recuperar eventos de vida que têm em conta a experiência subjetiva e convertem em única a vida de cada individuo (Serrano, 2002).

O declínio na memória episódica foi amplamente investigado, tanto a nível do envelhecimento normal como nas situações patológicas, todavia, os estudos sobre MA são mis escassos (Berna, Schönknecht, Seidl, Toro, & Schröder, 2012). Vários problemas assolam a pesquisa sobre memória autobiográfica, sendo a questão da fidedignidade o aspeto mais frequentemente citado (Stuart-Hamilton, 2002; Afonso, 2011). A mesma história, narrada em diferentes momentos da vida pode ter a mesma trama básica, mas os pormenores recuperados serão diferentes (Stuart-Hamilton, 2002). Os resultados dos estudos sobre memória em pessoas idosas indicam que, embora algumas medidas de memória episódicas e semânticas declinem antes dos 75 anos, a partir dessa idade, todas as habilidades cognitivas diminuem de forma estatisticamente significativa, embora a magnitude do declínio varie (Small, Dixon, & McArdle, 2011). Podem ocorrer alterações na MA devido a várias patologias, podendo essa perda ser completa (e.g. trauma craniano) ou parcial, afetando independentemente cada subtipo de memória (Afonso, 2011; Lallane et al., 2014).

A literatura subdivide a MA numa componente semântica e numa componente episódica (Berna et al., 2012;Lalanne, Gallarda, & Piolino, 2014). A dimensão semântica da MA armazena os conhecimentos gerais sobre o próprio (traços da personalidade, locais e nomes de pessoas conhecidas) e sobre eventos gerais do passado (férias, viagens), não contextualizados (Berna et al., 2012;Conway, 2005; Lalanne et al., 2014). A MA episódica armazena as memórias de eventos pessoais específicos, inseridos num contexto temporal e espacial, tais como o dia do casamento, o primeiro dia de escola (Conway, 2005; Lalanne, Gallarda, & Piolino, 2014), imbuídos numa sensação de reexperiência do acontecimento (Berna et al., 2012). Apesar desta divisão da MA, os seus dois componentes estão em constante interação (Conway, 2005; Gonçalves, 2006; Lallane et al.,2014; Martinelli, Anssens, Sperduti, & Piolino, 2013).

2.1.1. Funções da memória autobiográfica

As funções da MA podem ser abordadas de duas perspetivas: o uso e a adaptatividade. Em relação ao uso da MA, o principal interesse é analisar o motivo explicativo do facto dos indivíduos recordarem acontecimentos de vida (mundanos ou significativos) durante longos períodos de tempo (Bluck et al., 2005). A adaptatividade refere-se à função intrínseca, ao propósito (adaptativa/não adaptativa) inerente à

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recuperação dos eventos de vida (Bluck et al., 2005) explicitada pelos autores através de uma tentativa de agrupamento das funções da MA com a reminiscência (Bluck & Alea, 2002).

As funções da MA foram inicialmente categorizadas em diretivas (planeamento do presente e perspectiva do futuro), direcionadas ao self (continuidade e integridade do eu) e sociais (criação de laços interpessoais) (Pillemer, 1992). Partindo desta categorização, vários autores exploraram as diferentes funções da MA, tendo sido feito, inclusivamente, uma tentativa empírica de validar a ligação entre estas funções da MA e as funções da reminiscência num modelo de três fatores (Bluck et al., 2005):

I. Função diretiva: as memórias específicas de experiências de vida servem para informar, guiar, motivar e inspirar, proporcionando modelos que podem contribuir para a resolução de problemas atuais para a adaptação ao futuro (Pillemer, 2003; Bluck et al., 2005). A função diretiva encontra-se correlacionada com as funções de resolução de problemas e identidade da RFS (Bluck et al., 2005). As experiências passadas são usadas para se planificarem comportamentos, recuperar e reinterpretar informações para resolução de problemas (Afonso, 2011).

II. Função do self: a recuperação de memórias autobiográficas serve para manter a continuidade do eu (Bluck & Levine, 1998). Trata-se da vertente mais explorada nos estudos de MA (Afonso, 2011; Pillemer, 2003). Bluck et al. (2005) considera que esta função se correlaciona unicamente com a função de identidade da RFS, nomeadamente com aspetos da continuidade do eu, permitindo a manutenção de uma identidade autobiográfica e um auto conceito coerente ao longo do ciclo de vida. Esta função de manutenção de uma visão favorável do Eu é particularmente importante em situações de stress que impliquem mudança (Afonso, 2011)

III. Funções sociais: serve para desenvolver e manter relações sociais (Pillemer, 1992) fornecendo material para conversação (Bluck et al., 2005). A MA correlacionava-se com as funções de conversação e ensino/informação da RFS: um factor de manutenção de relações e outro de criação de novos laços sociais (Bluck et al, 2005). Por um lado, a MA permite desenvolver novos contactos e relações sociais através do conhecimento de episódios significativos da vida do outro. Por outro lado, a função social da MA permite a manutenção das relações sociais existentes, fomentando a empatia (Bluck et al, 2005).

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