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As perceções, os valores, as escolhas e estilos de vida têm a sua fonte na história passada única de cada pessoa, quer seja resiliente ou vulnerável ao stress, quer se tenham estratégias de coping adaptativas ou não. As mesmas têm muitas vezes raízes em experiências da infância, sendo o passado tanto um fardo como um recurso (Wong, 1995).

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O conceito de reminiscência associado à velhice aparece cedo na história da Humanidade. Na Grécia Antiga, Platão, na sua obra Ménon, teoriza sobre a reminiscência, associando-a ao conhecimento.

“Pois, pelo visto, o procurar e o aprender são, no seu total, uma rememoração” (Platão In Ménon, 53).

O seu discípulo, Aristóteles, na obra Retórica, associa a reminiscência à velhice, referindo que as pessoas idosas vivem de memórias e sentem prazer nisso.

Vivem de recordações mais do que de esperanças, pois o que lhes resta da vida é curto em comparação com o passado (…). Esta é também uma das razões pelas quais são tão faladores, já que passam a vida a falar de coisas passadas e sentem prazer em recordar” (Aristóteles, n.d. a, In Retórica, 196). Aristóteles dedica um capítulo, no seu livro Parva Naturalia à exploração dos conceitos de memória e reminiscência, afirmando que o que distingue o Homem de outros seres é a capacidade de recuperação (Aristóteles, n.d.b).

Apesar do conceito de reminiscência ter raízes históricas bastante antigas, até ser descrita por Butler, em 1963, como um fenómeno universal e natural em adultos de todas as idades, era vista como sintoma ou causa de deterioração mental (Westerhof et al., 2010; Lin et al., 2003). Foi Butler, quem iniciou os estudos empíricos sobre reminiscência em pessoas idosas, argumentando que a revisão de vida assume uma função positiva, na medida em que ajudaria na resolução de conflitos do passado. A revisão de vida seria funcional para pessoas idosas do ponto de vista da saúde mental (Westerhof et al., 2010). O exercício da reminiscência pode constituir recurso de maestria, sabedoria e gratificação na velhice, capacitando o indivíduo para o presente e preparando-o para o futuro (Wong, 1995). Esta interpretação de revisão de vida de Butler originou um novo campo de pesquisa na área da reminiscência (Wong, 1995).

Em 1971, Lewis publica a primeira investigação sobre reminiscência, na qual analisa as diferenças entre pessoas que fazem e não reminiscência ao nível do autoconceito. Observou que ocorria um aumento significativo na correlação passado/presente do autoconceito nos indivíduos reminiscentes, após aplicação de um fator de stress, sugerindo que a reminiscência e a identificação com o passado poderiam ser mecanismos de defesa em pessoas idosas (Lewis, 1971).

2.1. Reminiscência: conceito

Westerhof e seus colaboradores (2010) referem a necessidade de definições e medidas mais precisas de reminiscência. São vários os autores que procuraram definir o

conceito de reminiscência, sendo referida como um processo de recuperação de

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episódios isolados do passado, de forma relativamente independente (Burnside & Haight, 1992; Cappeliez et al., 2008; Webster & Haight, 1995). Um fenómeno espontâneo que surge em diversos contextos, através do qual um indivíduo relata episódios autobiográficos ou conta histórias da sua vida (Afonso, 2011). Uma forma particular de memória autobiográfica (MA): uma atividade na qual as memórias autobiográficas pessoalmente significativas são recordadas (Bluck & Alea, 2002). A MA codifica, armazena e orienta a recuperação de informações episódicas relacionadas com as experiências pessoais. A reminiscência seria o modo como se acede a essa informação para uso próprio, recuperando episódios gerais ou específicos (Bluck & Levine, 1998).

No âmbito das várias definições de reminiscência, destacam-se os seguintes aspetos (Westerhof et al., 2010): a reminiscência acontece diariamente, quer partilhemos ou não essas memórias; o facto das memórias autobiográficas poderem ser recuperadas voluntariamente é a base da reminiscência como intervenção e as memórias autobiográficas relatadas resultam da sua perceção e construção das experiências.

Assim, a reminiscência, pode definir-se como o processo mental voluntário e espontâneo de recuperação de memórias autobiográficas, associado a eventos de vida considerados significativos e verídicos para o próprio.

Os conceitos revisão de vida, autobiografia e narrativa são muito próximos do de reminiscência, sendo, por vezes, usados como seus sinónimos, contudo, são distintos.

A revisão de vida define-se como uma pesquisa retrospetiva da existência, um estudo crítico, ou seja, um segundo olhar sobre a própria vida (Burnside & Haight, 1992). Trata-se de um processo mental natural e universal caracterizado pela recuperação voluntária de experiências do passado (Butler, 1974). A revisão de vida implica o relato de vida com uma sequência cronológica, e tem um forte componente avaliativo de reinterpretação das memórias (Afonso, 2011).

A autobiografia consiste num processo planeado de escrita da história de vida, que embora não implique uma sequência cronológica, abrange os principais acontecimentos de vida e pode ou não assumir um cariz avaliativo (Afonso, 2011; Webster & Haight, 1995).

A narrativa reporta-se a uma atividade de contar episódios de vida, histórias passadas, no entanto, ao invés da reminiscência que é mais espontânea e menos organizada, a narrativa implica a narração de histórias estruturadas e com uma sequência lógica (Webster & Haight, 1995).

Assim, a reminiscência, apesar de ser o processo mental que permite estas diferentes formas de recuperar o passado (e.g. revisão de vida, narrativa, autobiografia), distingue-se devido ao seu carácter mais espontâneo, menos avaliativo das experiências

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de vida e menos estruturado, quer na perspetiva cronológica, quer no encadeamento dos temas e eventos recuperados.

O conceito de reminiscência parte de uma noção predominantemente negativa, associada ao idadismo e deterioração física e mental da velhice, preconizada desde os filósofos da Antiguidade, para um conceito mais positivo, veiculado nas últimas décadas, que a caracteriza como um processo mental adaptativo no aproximar do fim da vida (Westerhof & Bohlmeijer, 2014).

Apesar da análise da reminiscência, numa perspetiva de processo mental normativo, não ser objeto de estudo nesta tese, a tabela 4 sumariza as principais bases teóricas em que a reminiscência como técnica de intervenção se fundamenta.

Tabela 4. Principais autores em que a reminiscência como técnica de intervenção se fundamenta. Autor, data Ideia Central

Erikson, 1959 A Teoria do Desenvolvimento Psicossocial enumera 8 períodos de desenvolvimento, associados a conflitos, com tarefas cruciais, cuja resolução permite evoluir para a fase seguinte. No último estádio, o autor postula que a revisão de vida é importante para alcançar a integridade do eu. O objetivo é alcançar a aceitação da própria vida, como sendo inevitável, apropriada e significativa para o próprio, evitando o desespero.

Butler, 1963 Apresentou a revisão de vida como sendo um processo natural e universal, associado à velhice, sendo um recurso de mestria, sabedoria e gratificação.

Baltes, 1987 O autor apresentou dois pressupostos teóricos da Teoria Desenvolvimental de curso de vida: a plasticidade e o crescimento pessoal como resultados entre as perdas e ganhos. A reminiscência é encarada como uma estratégia de manutenção e regulação da perda na velhice, nomeadamente ao nível da identidade.

Watt & Wong, 1991 Desenvolveram uma nova taxonomia com seis tipos de reminiscência. Apresentam a respetiva definição, funções e exemplos de cada tipologia.

Wong & Watt, 1991 Analisaram e identificaram os tipos de reminiscência que se associavam a um envelhecimento bem-sucedido, concluindo que nem todos têm um caracter adaptativo. O envelhecimento bem-sucedido foi associado à reminiscência integrativa e instrumental.

Burnside & Haight, 1992

Analisaram e distinguiram os conceitos de reminiscência e revisão de vida, indicando direções para a sua implementação na investigação e prática de enfermagem.

Haight & Dias, 1992 Examinaram variáveis que contribuem para que a reminiscência conduza ao bem-estar: a individualidade, a avaliação e a estrutura. Webster, 1993 Construiu e validou Escala de Funções da Reminiscência (RFS).

Apresenta 8 funções associadas à reminiscência. Webster &

Cappeliez, 1993

Efetuaram uma revisão sobre as investigações acercada reminiscência e memória autobiográfica, propondo uma perspetiva que integre os dois campos de estudo de forma a reforçar a investigação nestas

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áreas. Haight & Webster,

1995

Publicaram um livro sobre reminiscência: perspetiva teórica, investigação, metodologias e aplicações.

Parker, 1995 Abordou a teoria da continuidade como forma de compreender a reminiscência no ciclo de vida, considerando-a um mecanismo de continuidade e atribuindo-lhe 3 funções: privada, social e cognitiva. Andrews, 1997 Observaram a existência de relação entre a revisão de vida e a

estrutura social: o indivíduo recorda e esquece, mas a sociedade afeta o que é ou não memorável.

Bluck & Levine, 1998 Introduziram o estudo teórico sobre a relação entre reminiscência, MA e o ego. Consideram a reminiscência como forma de MA, sendo um processo de recuperação de acontecimentos. Foi o primeiro passo na investigação conjunta dos dois conceitos e pretendia compreender a tendência humana para contemplar o passado.

Cohen & Taylor, 1998

Reviram os conceitos de reminiscência e suas funções, relacionando- os com a idade e estilos de vida. Apresentam a distinção entre reminiscência e memória autobiográfica.

Tornstam, 1999 Analisou as funções e relações da reminiscência a partir da Teoria da Gerotanscendência. A teoria postula que o desenvolvimento humano é um processo que continua na velhice e pode ser otimizado. A reminiscência contribui não só para a manutenção da identidade mas também para a mudança e reconstrução da mesma.

Bluck & Alea, 2002 Agruparam as funções da reminiscência nas 3 funções da memória autobiográfica: self, diretiva e social. Consideraram a reminiscência como um tipo de MA, requerendo ambas o entendimento das funções de recordar e pensar sobre o passado.

Webster, 2003 Investigou um modelo que representava as funções da reminiscência e da memória autobiográfica. As 8 funções da reminiscência foram organizadas em quadrantes, tendo o seu modelo circunflexo explicado 79.57% da variância.

Cappeliez & O´Rourke, 2006

Apresentaram um modelo da relação entre as funções da reminiscência e a satisfação com a vida, sofrimento psiquiátrico e saúde.

Haber, 2006 Apresentam a distinção entre os conceitos de reminiscência e revisão de vida, focando-se nos pressupostos teóricos, estratégias de implementação e implicações terapêuticas desta última.

Cappeliez, Rivard, & Guindon, 2007

Descreveram um modelo teórico com a relação entre as funções da reminiscência e as suas categorias: self, orientação e criação de laços sociais.

Cappeliez et al., 2008

Examinaram o contexto emocional da reminiscência em pessoas idosas, relacionando-o com as funções da reminiscência.

Peix, 2009 Descreveu a reminiscência como uma abordagem a utilizar na prática diária, para facilitar a comunicação com pessoas com declínio cognitivo. Permite a individualização dos cuidados à pessoa idosa, atribuindo um papel principal à dimensão humana e trajetória de vida. Webster, Bohlmeijer,

& Westerhof, 2010

Propõem um modelo heurístico para a aplicação de terapia de reminiscência, definindo 3 tipologias de intervenção: reminiscência simples, revisão de vida e terapia de revisão de vida.

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