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Memória, Identidade, Comunidade

Iniciamos nossa análise pela Memória, visto que o ato de narrar é constituído pelo trabalho de recordar, recriar e reavaliar as experiências passadas. Entendemos essa memória como fenômeno construído coletivamente e em constante transformação, portanto, coletiva, social. Sob esse prisma, ala ganhou destaque na obra “A Memória Coeltiva”, do sociólogo Maurice Halbwachs68, na qual se dedicou a discutir a memória individual e a coletiva, a memória coletiva e a histórica e a memória coletiva em sua relação com o tempo e o espaço. Esse último aspecto mostrou-se de vital importância para esta pesquisa, como veremos adiante.

Halbwachs enfatiza a memória coletiva porque por mais que a memória pareça expressar experiências individuais, é constituída por estruturas sociais que antecedem ao indivíduo, até porque não existe o “ser” sozinho. Afirma: “Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, inda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isto acontece porque jamais estamos sós”69

A memória coletiva forma-se a partir de uma “comunidade afetiva” e caracteriza-se por ser fluida e plural, por estar em constante negociação com a memória individual. O conceito de comunidade afetiva, cunhado por Pollak70 refere-se a um grupo que tem em comum um trauma. O caso que ele apresenta é o dos judeus em campo de concentração, que passaram por situações limite de violência e trauma, expressos nas perdas que sofreram: convívio social, família, bens materiais, esperanças, perda da capacidade de narrar o horror, de conversar sobre a experiência vivenciada, o que fez com que muitos sobreviventes do Holocausto mergulhassem em uma vida de silêncio, conforme apontado na obra acima referida. Experiências desse tipo, ou similares a elas quando não expressadas podem constituir uma memória “subterrânea”, ocultada pela dominante, mas quando emerge e invade o espaço público traz à tona reivindicações múltiplas e imprevisíveis a essa disputa da memória.

Ressalvadas as devidas proporções e o contexto histórico, as famílias que se uniram em torno do MTST e do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto de Rondônia, também oriundas de experiências traumáticas específicas, trazem consigo as lembranças dessa vida anterior ao

68 HALBWACHS, Maurice. A MEMÓRIA COLETIVA. São Paulo: Ed. Centauro, 2006. 69 HALBWACHS, op. cit., p.30.

ingresso nesses Movimentos Sociais, constituem uma comunidade afetiva e tentam, por meio dela reconstruírem sua vida e dignidade. O que é coletivo, neste caso, é a falta: de moradia, de emprego, educação, saúde, saneamento básico, transporte de qualidade. Claro que esses problemas não atingem apenas a eles, são vivenciados pela maior parte da sociedade brasileira, contudo, os trabalhadores aos quais nos referimos encontram-se unidos ideológica e geograficamente por essa experiência de “não possuir” e a partir dela buscam alternativas para superar essa situação, que é acima de tudo, de humilhação, de rebaixamento. De acordo com Suzana Lopes Salgado Ribeiro, estudiosa do MST, e fazendo um paralelo entre esses dois Movimentos Sociais (MST/MTST), “(...) pode-se dizer que suas memórias conformam-se a partir de perdas significativas a que foram historicamente submetidos”71.

A experiência de “não possuir” um teto, um trabalho ou não poder contar com serviços sociais de primeira necessidade, como escolas e hospitais, mobilizam as famílias em torno de um projeto, que apresenta dois objetivos: a) a sobrevivência do grupo perante as adversidades peculiares a um país de capitalismo periférico, marcado por uma industrialização tardia, migrações em massa, desemprego estrutural e histórica disparidades na distribuição de renda; b) a transformação social, que alguns integrantes das famílias entendem como algo que deve ser promovido de “cima para baixo”, ou seja, a partir da iniciativa dos políticos, e que outros entendem como algo que deve ser feito por “nós”. Esse projeto está em constante negociação, ora é aceito, ora é refutado pelos membros da família e nele, diversas “metodologias” são testadas: “trabalhar e militar”, “militar e não trabalhar fora da ocupação”, “apenas trabalhar”, “esperar por Deus e pelo Governo”, “ir à luta e não esperar por ninguém”.

Esse projeto, em seu aspecto familiar preocupa-se com “a melhoria de vida”, e em seu aspecto mais amplo preocupa-se com a questão da “cidadania para todos”, da efetivação dos direitos, como pode ser notado nos textos a seguir. Laura, ao ingressar no MTST possui como meta conseguir uma casa não apenas para si, mas para a mãe e os irmãos, a fim de melhorar a condição de vida da família:

[...] um dia entramos na ocupação do Valo Velho, com o sonho de conseguirmos nossa casa, não só para gente, mas para nossas mães também, porque elas pagam aluguel.

Maria da Paixão expressa sua perplexidade com relação à política habitacional e o caráter de necessidade humana de um lugar par morar:

Meu Deus, para gente ter uma moradia não precisava tanta coisa! Somos seres humanos, cada ser humano merece ter um teto para morar O que acho errado no nosso governador, é eles permitirem que tenha pessoas vivendo assim no nosso país e eles ainda são capazes de nos negar um lugar para viver. Ninguém aqui está querendo luxo, mansão, estão querendo um cantinho para morar porque não têm condições de pagar um aluguel, aluguel está difícil! Eu pago R$: 220,00 de aluguel e só falto morrer, tem horas que falta o leite da Caroline, falta a fralda, falta o pão de cada dia dentro de casa, mas tenho que pagar o aluguel! O que estamos atrás é de uma moradia, não é de luxo, de mansão, de apartamento chique. Queremos simplesmente um lugar para viver. É necessário, todo ser humano precisa de uma moradia.

Carla também aponta para o caráter político do problema habitacional e de como a negação de direitos influi negativamente na sociedade:

Muitos direitos e necessidades não são respeitados, como o direito/necessidade de ter um lar, uma casa, um emprego e isso acaba refletindo negativamente na sociedade. Por falta de um lar para morar, por falta de um emprego, o índice de marginalização tem crescido cada vez mais, e como conseqüência disso, a violência.

Parece haver, todavia, no que tange ao desenvolvimento desse projeto familiar, uma dificuldade em conciliar as duas esferas: a pública e a privada, o que levou Tonho a se pronunciar nesses termos:

Hoje, particularmente, se eu falar para você que não luto por uma melhor condição financeira estarei mentindo. Hoje luto mais pela questão financeira, por causa da minha esposa, mas se não fosse isso, seria apenas luta pelo povo, luta por justiça social... Ainda sou comprometido com essas causas, sempre serei, mas agora a prioridade é o bem-estar da Laura, que conheci também na luta e que tem os mesmos princípios e ideais que eu.

Ana Terra pronuncia-se sobre o aspecto coletivo, político e seu projeto de vida nestes termos:

Não é abrir mão da vida ou de certo tipo de vida, é querer ter um outro. Não é abrir mão de ter dinheiro ou fazer uma carreira “bem sucedida”, é querer ter outras coisas que não dinheiro e que o dinheiro impede a gente de ter... E ter outras coisas que não uma “carreira bem sucedida”, porque esse “bem sucedida” é um falseamento, uma interpretação.

Os dois aspectos (privado e coletivo) estão presentes nos projetos das famílias colaboradoras desta pesquisa. É evidente a busca por uma existência material mais confortável: o

desejo de Maria da Paixão retornar para sua casa e sua terra, o desejo de Caio de conseguir uma casa para abrigar a família que acaba de formar, a preocupação de Camila em conseguir um lugar que seja seu; assim como é evidente a leitura política que colaboradores como Carla, Marcos e Filipe fazem do fenômeno do “desrespeito aos direitos” e decidem, ou não, se engajar na luta pela sua efetivação.

Se o principal elemento da memória coletiva dos grupos estudados é a falta, sentida e vivenciada de modo específico pelos indivíduos, mas em uma comunidade que produz discursos e ações singulares a esse respeito, a identidade também é elaborada sobre esse suporte.

A vida pelo “não” identifica e diferencia essas pessoas, mas a construção dessas identidades não é algo simples e realizado sem conflito e argumentação, pois naquelas comunidades afetivas (ocupações João Cândido e Chico Mendes) chegam pessoas a toda hora, pessoas que não se conhecem e que trazem consigo experiências diversificadas do “não ter”. Há as que migraram de outras ocupações de sem-teto, que possuem conhecimentos da vida em Movimento Social72, há as que sempre viveram nas ruas, as que possuíam casa e a perderam, as que possuem casa, os jovens que moravam com os pais e saíram de casa em busca de liberdade, os que acreditam estar apenas “temporiamente”73 na condição de sem teto, os intelectuais orgânicos, os que foram para lá porque não havia outra alternativa, e os que foram por uma escolha de militância.

Muitos chegam às ocupações praticamente sem identidade, pois a dignidade ferida não os permite sequer reconhecerem-se como inteiramente homem ou inteiramente mulher e nem mesmo como brasileiros, nordestinos ou sulistas. Levam para as ocupações os fragmentos de sua luta. Não possuem mais o emprego ou a vida escolar, que lhes dava a identidade de “profissional do ramo de...”, de “trabalhador” ou “estudante”. Falta a casa que lhes conferia a identidade de “dona de casa” e com isso, muitas vezes a própria família se desintegra, o que afeta também a identidade de “pai de família e mãe de família”. Diante dessa perda é preciso construir novas identidades, a começar pela de “sem-teto” e tal tarefa não é fácil, pois se refere não apenas ao que somos, mas a como os outros nos reconhecem, a como nos vêem. Sabe-se que muitas vezes essa visão é preconceituosa e estereotipada e que as ações se moldam sob a visão, o que aumenta o desconforto daquele que está em foco.

Diante da situação apresentada as pessoas que nela se vêem inserida entendem como necessária a construção de nova identidade, porém vivem momentos de angústia e incerteza

72 Sabem, por exemplo, que a vida nesses Movimentos deve ser vivida prioritariamente “no coletivo” e não no

“individual”, no plural e não no singular. Lembro de uma colaboradora que perguntou a um militante antigo: “Como eu vou fazer para sobreviver aqui se não tenho emprego? Ele disse: “Sua pergunta está errada, aqui não tem o “eu”, tem o “nós”. Coletivamente é que garantimos o nosso sustento”.

73 Esse “temporariamente” está relacionado a um tempo muito curto, de dias ou meses. Diz respeito a pessoas que

quanto a se é esta a via correta a ser percorrida. Se é a “identidade de sem-teto” que deve ser construída. De acordo com Halbwachs,

“Quando algum acontecimento [...] obriga a que nos transportemos a um novo ambiente material, antes que a ele nos tenhamos adaptado, atravessamos um período de incerteza, como se houvéssemos deixado para trás toda a nossa personalidade: tanto isso é verdade, que as imagens habituais do mundo exterior são partes inseparáveis de nosso eu”74

Percebemos então que a identidade possui vínculos profundos com o espaço porque, é sobre ele que as comunidades se constroem e dialeticamente, constroem o espaço, moldando-o à suas necessidade e sensos estéticos. Richard Morse, em entrevista concedida a José Carlos Sebe Bom Meihy75 ao recordar seus estudos sobre moradia e o sacrifício pelo qual os pobres passavam

quando eram obrigados a abandonar seus cortiços, ressalta que estes não poderiam saber facilmente substituir o sentido de comunidade que haviam desenvolvido, o que se explica pelo fato de que é no espaço que a vida é estabelecida. Nele imprimimos nossas marcas e cada um dos objetos que ele abriga nos lembram as pessoas de nossa convivência, portanto, “quando os membros do grupo estão dispersos e nada encontram em seu novo ambiente material que recorde a casa e os quartos que deixaram, mas permanecem unidos pelo espaço é porque pensam nessa casa e nesses quartos”76.

A identidade dos integrantes do MTST e do Movimento dos trabalhadores sem-teto de Rondônia é elaborada, dessa forma, em espaços definidos: acampamentos localizados em terrenos urbanos que não cumprem sua função social, em uma comunidade unida por experiências dolorosas que os levou a situação de degradação social e que se mantém unida pelo que sobrou da casa, ou seja, sua recordação. Essa casa perdida pode ser a casa própria, a casa paterna, a casa da infância ou mesmo a casa que nunca existiu, mas que a pessoa deseja ter.

O processo de criação de identidade está em constante movimento, não é algo consolidado, definitivo e único. Com relação aos desafios próprios desse processo, gostaríamos de destacar que o “ser sem-teto” só costuma ser bem-aceito se vier acompanhado da identidade de “trabalhador”: trabalhador sem-teto, trabalhadora sem-teto. Isso porque o trabalho é um valor bastante prezado nas sociedades capitalistas. Por meio dele o trabalhador espera receber uma “recompensa” pecuniária suficiente para o sustento de sua vida e da vida de sua família. Por seu intermédio os donos dos meios de produção almejam aumentar suas tachas de lucro, tomando

74 HALBWACHS, Maurice. A MEMÓRIA COLETIVA. São Paulo: Ed. Centauro, 2006, p.157.

75 MEIHY, José Carlos Sebe Bom. A COLÔNIA BRASILIANISTA. São Paulo: Nova Stella Editorial, 1990, p.139-

para si a diferença entre o valor produzido pelo trabalho e o salário pago ao trabalhador (Mais- Valia)77.

Essas identidades são forjadas em comunidade: coletivamente e em um espaço de uso em comum. No que se refere a esse último, destacamos que é onlugar onde as famílias em busca de moradia indicam em suas narrativas, que sentem acolhidas, que se sentem também “em família”. É onde encontram maior segurança e de onde retiram força para continuar a vida e mais que isso, para lutar por uma vida melhor. Nas palavras de Bauman, a comunidade é:

“(...) o lugar “cálido”, um lugar confortável e aconchegante. É como um teto sobre o qual nos abrigamos da chuva pesada, como uma lareira diante da qual esquentamos a mão diante de um dia gelado. Lá fora, na rua, toda sorte de perigo a espreita; temos que estar alertas quando saímos (...) Na comunidade podemos relaxar – estamos seguros, não há perigos ocultos em cantos escuros”.78

O pertencimento à comunidade João Cândido e Chico Mendes é expresso em palavras: “nós”, “a gente”, e remete a um vocabulário e a uma memória coletiva que ressaltam um modo de ser, de pensar e de lembrar de uma coletividade79, o que pode ser encontrado, por exemplo, nos nomes das ocupações e brigadas, que semelhante às do MST, homenageiam e encontram inspiração em personagens históricos como João Cândido, Chico Mendes, Zumbi dos Palmares, Dandara e Anita Garibaldi. Contudo, entendemos que o pertencimento e a identidade não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, mostrando-se negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a identidade”. 80 A complexidade dessa construção identitária e a vinculação àquelas comunidades torna-se ainda mais complexa se pensarmos que a identidade de sem-teto é elaborada desde o início com a intenção de ser provisória. Nossos colaboradores que se identificam como sem-teto, e mesmo os que não apresentam essa identidade mas também estão em busca de uma casa, desejam a identidade de “morador”, de cidadão integrado na cidade. A identidade de sem-teto é vista como um caminho para mobilizar a opinião pública, o Terceiro Setor e o Estado para um debate sobre a crise urbana, que possui na questão da moradia uma de suas pautas mais urgentes. O que acontece quando essa demanda é satisfeita, quando as pessoas deixam a identidade de sem-teto para assumir a de morador e de cidadão integrado?

77 O conceito de Mais-valia foi explorado por Karl Marx na obra O Capital, livro 1, v. 1, especialmente na terceira e

quarta parte.

78 BAUMAN, Zigmunt. COMUNIDADE. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p.7-8. 79 Ribeiro, ibidem, p. 194.

Primeiramente cabe enfatizar que essa demanda nunca é completamente satisfeita, pois se trata de um problema estrutural que não pode ser solucionado sem alterar posições historicamente definidas de poder – o que só seria feito de modo integral com a substituição do bloco hegemônico vigente. Em segundo lugar, devemos pensar o problema por pelo menos dois ângulos: o que significa a posse de uma casa para aqueles que lutaram para isso; e o que significa a posse de uma casa para os Movimentos Sociais que a tem como pauta de seus projetos. Qual o sentido de ter uma casa para os primeiros? Quais as conseqüências disso para o segundo?