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REFLEXÕES SOBRE A LEITURA EM HISTÓRIA ORAL

Antes de começar a análise das narrativas lidas no capítulo anterior, gostaria de apresentar algumas reflexões sobre a leitura, a interpretação em história oral. Acredito que essas reflexões preliminares poderão esclarecer o tipo de leitura que farei a seguir e seu por que.

Como pudemos observar nas Considerações sobre os Procedimentos e nas Considerações sobre o Corpus Documental, o trabalho de Textualização e Transcriação das entrevistas conferem a elas o status de texto. De acordo com Eco47, todo texto, seja ele definido como estritamente literário ou comunicacional, é um estímulo que provoca uma resposta no leitor, e esta resposta, por sua vez, poder se dar de diferentes modos, revelar interpretações diferentes. Para o autor, em um de seus diálogos com Barthes48, o texto não é o “papel impresso”, a simples materialidade, ou o conjunto de signos, mas um “objeto” que a interpretação constrói na tentativa circular de validar-se naquilo que constitui.

O texto da história oral, elaborado a partir das experiências, da memória, dos desejos, das necessidades, das fantasias, das estratégias de contar de cada colaborador, é polifônico. Traz consigo não apenas a voz do narrador, mas por meio dela e através dela, as que ouviu em sua vida: a de seus antepassados, a de seus contemporâneos, e não só a voz, mas a forma de dizer, o jeito de dizer, o sotaque, as expressões, as gírias, as múltiplas temporalidades, imagens e fragmentos de imagens, olhares e visões de mundo, sons, impressões, crenças, interpretações, sensos éticos e estéticos. Esse texto é, portanto, aberto e multidimensional. Para ir além de suas dimensões visíveis, explícitas, é preciso mais de um movimento, de um desdobramento, de uma lógica, de um autor, de uma direção49.Para que fosse possível fazermos uma única leitura dessas narrações, seria preciso que elas fossem “planas”, “rasas”, e não um hipertexto. Que pensássemos no “singular” em vez do “plural”, que existisse uma única verdade, uma única realidade, uma única natureza, um único deus, ou seja, que nós não nos desvencilhássemos de nosso jeito ocidentalizado de ver o mundo.

É importante compreender que em um texto multidimensional, seus múltiplos elementos estão interligados por meio da leitura. De acordo com Caldas

“[...] um texto multidimensional conecta seus múltiplos elementos através da leitura, mas essas conexões não são objetivas, reais, palpáveis: não pertencem à narrativa, mas à

47 ECO, Umberto. OS LIMITES DA INTERPRETAÇÃO. São Paulo, Perspectiva, 1995. 48 BARTHES, Roland. CRÍTICA E VERDADE. São Paulo: Perspectiva, 1996.

leitura, a interpretação. É a leitura que multiplica e faz fluir o texto [...] sendo leitura viva, ele é possibilidade de fluir em múltiplas dimensões”50.

Estas múltiplas dimensões são características do texto de historia oral, e, por conseguinte, devem ser enfrentadas. Ao contrário do que muitos pensam, perceber um texto como aberto, polifônico, carregado de virtualidades, passível de infinitas interpretações, não significa que ele não possua limites e não coloque limites para sua leitura, assim como dizer que um texto é potencialmente sem fim não significa que todo o ato de interpretação possa ter um final venturoso. De acordo com Eco, “até mesmo o desconstrucionista mais radical aceita a idéia de que existem interpretações clamorosamente inaceitáveis”. 51

O fato de um texto aberto, possibilitar um número infinito de leituras, não quer dizer que aquele que vai interpretá-lo possa fazer “qualquer leitura”, ou possa, por exemplo, fazê-lo dizer o que não diz, afirmar idéias que não sustenta em sua forma geral ou que lhe seriam contrárias. Os textos costumam dizer mais do que seus autores pretenderam/pensaram, e menos do que os leitores, com suas paixões, gostariam que eles dissessem. Frente a isso, algumas atitudes parecem necessárias quando nos propomos a fazer uma leitura/interpretação/análise coerente de um texto de história oral, a saber:

a) Tentar compreendê-lo como um todo, se concentrar nele, em seu significado social, em sua lógica interna e na mensagem que transmite.

b) Entender que é um elaborado não para um único destinatário, mas para uma coletividade. O colaborador que narra suas experiências sabe que sua história será lida/ouvida/conhecida/apreciada/interpretada por muitos em espaços diversos, e ele deseja isso, não narra apenas por narrar, não elabora discursivamente suas experiências para deixá- las ocultas, mas para registrar sua memória e a de seu grupo, sua história, seus ensinamentos, sua cultura, portanto, podemos imaginar que dentre todos os possíveis leitores que ele imagina que tomarão conhecimento de suas experiências, tenha elegido pelo menos um modelo, um “leitor ideal” para quem narra. Descobrir quem/como é o leitor ideal de cada narrativa pode ser uma estratégia interessante para uma boa interpretação.

c) Por último, é necessário seguir as pistas e sugestões que o texto nos dá, mergulhar, experimentar/perseguir/testar idéias, metáforas, imagens, ver até onde elas vão e se são pertinentes, desdobrá-lo, relacioná-lo, cruzá-lo com outros textos, com seus pares, com os que vieram antes e depois dele, seguir seus fluxos, fruir.

O conjunto dos textos constituídos nesta pesquisa, e dos textos constituídos por outros, das teorias existentes, me colocaram em um impasse: de onde partir? Das teorias testadas, criticadas, aceitas pela Academia ou das histórias de vida das famílias que colaboraram comigo neste estudo. Decidi partir das histórias de vida de meus colaboradores, do que essas histórias dizem por que não quero que elas sejam vistas como um “acessório” da pesquisa, um “ornamento” ou algo que serve apenas para “exemplificar o que as teorias dizem”. Não se trata de uma aversão ao teórico - reconheço sua relevância- mas de um posicionamento ético, de uma escolha de valorizar a experiência de vida daqueles que trabalharam comigo ao longo de três anos e que permitiram que esse trabalho fosse feito desse modo. Depois de “tomar coragem”, de fazer essa escolha, me vi diante do conjunto das narrativas e a pergunta que fiz foi: o que essas narrativas dizem individualmente e coletivamente? O que elas trazem para a história? Na tentativa de responder a essas questões passamos a esboçar nossa leitura