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Memória seletiva: como é o ser “ribeironense” na Freguesia? Das coisas lembradas pela gente da vila-sede

Quando, hoje, alguém narra fatos sobre sua existência na Freguesia do Ribeirão, escolhe para contar coisas que marcam uma experiência de vida na localidade ao longo dos anos, e, ao mesmo tempo, acredita estar falando do lugar, dizendo algo sobre como é este, ou, pelo menos, apontando nesse sentido. Memória e história, nessa perspectiva, não surgem como um par de oposições,57 ou melhor, elas fazem parte de uma mesma dinâmica de elaboração simbólica daquele/a que conta. Lembrança e herança (do passado, das tradições, das famílias

56 Embora seu Batuel não fosse da Freguesia, algumas pessoas da vila-sede, de certa forma, se

mobilizaram (por conversas e comentários entre si) no sentido de incentivar a vinda dele à comunidade em 2007, para que eu o ouvisse. Alguém (no caso, o referido senhor) “saberia” me contar sobre escravos, afinal, como disse um morador: “Aqui no Ribeirão [Freguesia] é o único lugar que não se ouve falar de escravos”. De fato, hoje, moradores de mais idade (entre 60 e 80 anos) das famílias aqui examinadas, quando muito, sabem dizer que os avós ou bisavós falavam no assunto referindo-se a antepassados seus, porém não se trata de um relato corrente como este do seu Batuel Apolônio, acima transcrito. Voltarei ao tema em ocasião conveniente neste estudo.

57 Em seu artigo Entre memória e história: a problemática dos lugares, Pierre Nora (1993)

afirma que ambas, memória e história, estão “longe de serem sinônimos”, opondo-se uma à outra: “A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado” (NORA, 1993, p. 9).

locais etc.) aparecem relacionadas por um mesmo registro: o de quem é “do Ribeirão”,58 e “sabe” contar porque viu, e aí vive e viveu o que

narra, e, como “viu”, diz “a verdade”. A história é isso. E a memória também. Essa compreensão que parece óbvia – as pessoas falam sobre aquilo que sua memória alcança no tempo e no espaço59 –, no entanto, indica que importa aos/às moradores/as do Ribeirão uma história aí vivida, desde a qual se torna possível uma relação de intimidade ou mesmo identificação com o lugar. Assim, ao falar de si, alguém fala da Freguesia do Ribeirão, e vice-versa. Os moradores da sede distrital parecem mais interessados em narrar os eventos que atualizam essa relação com a “comunidade”, algo que eles reconhecem como “desde sempre”. Ivonira Julieta da Silva, nascida na Freguesia do Ribeirão, hoje com 73 anos de idade, lembra que a vida da sua família foi de muito trabalho e muita pobreza. Recorda que o pai trabalhava na “Aviação”, segundo a moradora, antigo nome da Base Aérea, fazendo “serviços diversos, de tudo um pouco”. Quanto à sua mãe:

Uma luta... [a mãe sempre trabalhou] nas casas de gente que tinha dinheiro, né, porque nós não tínhamos nada. Então, a minha mãe apanhava café, lavava roupa... A renda [de bilro] nós deixávamos pra fazer à noite, nós não fazíamos renda à tarde [a moradora aprendeu a fazer renda com a sua mãe “desde sete anos de idade”]. A gente foi criada assim, né, a vida do pessoal do Ribeirão foi tudo assim, né? (Ivonira Julieta da Silva, informação verbal em 24 de setembro de 2012).

Mas é preciso notar que, se “a vida do pessoal do Ribeirão” foi “tudo” assim, tal como afirma a referida moradora, os “pontos de referência que estruturam” (POLLAK, 1989) a memória (coletiva) da “comunidade” local, muitas vezes, não são exatamente os mesmos

58 Sobre as diversas referências feitas pelos moradores ao nome do distrito e, particularmente,

ao da sua vila-sede, ver segundo capítulo da tese.

59 Falando sobre o tema da “perda da identidade” [açoriana] na tese de doutorado de Sérgio

Luiz Ferreira – um nativo de Santo Antônio de Lisboa –, o professor Nereu lembrava: “[...] Ele aborda, justamente, procurando identificar a perda da ligação. [...] O tempo foi quase 250 anos, agora que nós estamos conversando sobre isso. Ora, quem é que se lembra de 250 anos atrás, de seus antepassados? Poucas pessoas. Especialmente as pessoas que não se dedicavam a estudo, não tinham documentos escritos, não tinham registros ou qualquer fonte referencial, perdem totalmente [a ligação com os antepassados]. [...]” (Nereu do Vale Pereira, informação verbal em 31 de julho de 2012).

acionados pelas pessoas (individualmente) quando estas partem da sua história de família, por exemplo, no lugar.60 Mais problemático ainda se

torna esse exercício de relembrar fatos e eventos da vida local como uma “história de açorianos” dependendo de quem a conta, ou melhor, quando e se a conta. Talvez por isso alguma gente da vila-sede tenha resistido tanto – como foi o caso da Ivonira – a “dar entrevista”, embora eu tenha explicado a ela (e aos demais) que se trataria tão somente de uma conversa informal. Alguns até diziam de antemão que “não sabiam de nada”. Não obstante as complexas questões que envolvem o esforço de uma pessoa, dentre tantas outras reunidas como coletividade, para apontar acontecimentos importantes (pra quem? pra quê?) na vida “do Ribeirão” – sejam narrações sobre açorianos ou famílias locais –, quando indagados sobre alguma história da Freguesia no passado, as referências imediatamente acionadas são aquelas que vinculam pessoas e famílias como sendo do lugar e pelos laços de parentesco na sede distrital, como supramencionado. De todo modo, na esteira de Michael Pollak (1989), poder-se-ia salientar:

[...] não se trata mais de lidar com os fatos sociais como coisas [Durkheim], mas de analisar como os fatos sociais se tornam coisas, como e por quem eles são solidificados e dotados de duração e estabilidade. Aplicada à memória coletiva, essa abordagem irá se interessar portanto pelos processos e atores que intervêm no trabalho de constituição e de formalização das memórias. Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à “memória oficial”, no caso a memória nacional. [...] O que está em jogo na memória é também o sentido da

60 Seguindo Michael Pollak (1989, p. 9), no caso, entendo a memória como uma “operação

coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar”, a qual “se integra em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc.” Sobre tal operação, o autor ressalta que o passado serve como referência para a coesão de grupos e instituições assim constituídos como sociedade, definindo “seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas também as oposições irredutíveis” (ver também POLLAK, 1992; SÁ, 2005).

identidade individual e do grupo. (POLLAK, 1989, p. 4-10, grifo do autor).61

A “experiência” (vivida) na Freguesia do Ribeirão hoje

Agora, na Freguesia, a ligação que permanece viva é, pois, esta que os situa hoje na localidade como um/a nativo/a do Ribeirão: o ser da Freguesia do Ribeirão é o que faz a diferença para quem conta uma história. Não é sem razão que a dona Anita tenha iniciado uma conversa dizendo: “Eu sou moradora do Ribeirão, nasci aqui e aqui me criei...”, como foi mencionado acima. Certa vez, outra moradora, conversando comigo à presença de seu marido, quando este tentava entrar na nossa conversa, ela logo dizia: “Ele [o marido] não sabe de nada, ele não está sabendo de nada, porque eu que sei contar, porque ele está aqui há poucos anos... Faz 28 anos que ele está aqui. Eu sei contar tudo, a verdade, né?” Foi igualmente nessa perspectiva que as falas do seu Agenor e do seu Alécio, acima citadas, mostravam as histórias vividas dos moradores no lugar. E, ao fazê-lo, diziam algo sobre a própria Freguesia do Ribeirão. Ora, a autoridade de relatar fatos sobre um passado e um presente na Freguesia é dada por esta relação nativa com a localidade. E mais: aí, coisas (o lugar, a natureza, o mar etc.) e pessoas (a “comunidade”) misturam-se, como se fossem feitas de uma mesma substância. Quando o filho mais velho da dona Anita me viu retornando à Freguesia nos momentos iniciais da minha pesquisa na sede distrital, não hesitou em perguntar: “Bebesse água do Ribeirão?” Este tema da água (beber água do Ribeirão), tão interessante à minha tese, será retomado mais adiante.

61 De acordo com Jacques Le Goff (2003, p. 466): “A memória coletiva sofreu grandes

transformações com a constituição das ciências sociais e desempenha um papel importante na interdisciplinaridade que tende a instalar-se entre elas” (numa abordagem histórica, ver o ensaio do autor sobre o conceito de memória nas ciências humanas, destacadamente na história e na antropologia: LE GOFF, 2003, 419-476). De fato, as discussões e os debates contemporâneos em torno do assunto memória são interessantes e têm muitas facetas, como mostra, por exemplo, Michael Pollak (1989, p. 3-15) ao refletir sobre “memória, esquecimento, silêncio” (ver também POLLAK, 1992; SÁ, 2005, entre outros). Aqui, não vou aprofundar as questões acerca dessa discussão atual, por entender que isso exigiria outro plano de trabalho (por exemplo, CAVIGNAC; VALENÇA, 2005) que extrapola o propósito do meu estudo, tal como procuro conduzi-lo. É, porém, oportuno lembrar que o tema da memória é interessante à perspectiva adotada nesta tese, e que ele vai encontrar no quarto capítulo desta alguns pontos fundamentais da descrição etnográfica, que permitem refletir sobre a memória para as/nas relações de parentesco locais.

Por outro lado, os eventos passados de uma história escrita (datada) que lembraria a colonização açoriana no Ribeirão – tal como foi descrita antes, história acionada algumas vezes, pelos moradores, para caracterizar o tipo tradicional da comunidade ou a sua longa existência – não são nem mais e nem menos que suas próprias histórias, eles (os eventos passados) seriam uma história diferente daquela narrada pelas pessoas hoje. Em todo caso, uma história de açorianos no Ribeirão da Ilha, em particular, na Freguesia (a sede distrital) não é, em geral, contada. Isso pode ter a ver com o fato de que as pessoas esquecem mesmo acontecimentos longínquos e não documentados e/ou escritos. Mas, no caso da Freguesia, parece relacionado ainda mais àquilo (o contexto) que se escolhe para contar, ou com as coisas que realmente importam aos moradores, i.e., a experiência vivida na Freguesia do Ribeirão atualmente, e àquilo que se é agora na perspectiva das famílias locais e de seus antepassados recentes (duas ou três gerações). À pergunta como e por que se escolhe na vila-sede (?), é possível assinalar algumas formas narrativas recorrentes das pessoas do lugar (ou sua indicação de moradores com quem se poderia falar para obter uma “história do Ribeirão”) quanto ao que Michael Pollak (1989, p. 9-12) chama de “enquadramento da memória”, 62 cujas funções mais

importantes seriam a coesão interna de um grupo e a defesa do que este tem em comum. Ou seja, “o trabalho de enquadramento da memória se alimenta do material fornecido pela história” (POLLAK, 1989, p. 9). E a história (e memória) a que acessam os moradores da vila-sede tem a ver, muito mais, com o modo como as famílias se organizam enquanto “comunidade”.

62 Efetivamente, o debate proposto por Pollak tem, por assim dizer, uma maior proporção,

revelando também a complexidade do fenômeno da memória pelas diversas questões que estariam em jogo nesse caso, como o que se depreenderia, seguindo o autor, das pesquisas históricas “atuais” quanto ao tema das disputas pela memória, por exemplo, em que seria preciso balizar as funções e os significados de aspectos como os “silêncios”, os “não-ditos”, os “esquecimentos”, enfim, “a memória em disputa” que mostra os conflitos e as concorrências pela mesma. Nessa perspectiva, a propósito de “um quadro de referências e de pontos de referência” (que estruturam a memória), o autor afirma: “É portanto absolutamente adequado falar, como faz Henry Rousso, em memória enquadrada, um termo mais específico do que memória coletiva. [...] Nas lembranças mais próximas, aquelas de que guardamos recordações pessoais, os pontos de referência geralmente apresentados nas discussões são, como mostrou Dominique Veillon, de ordem sensorial: o barulho, os cheiros, as cores” (POLLAK, 1989, p. 9- 11). Ora, observadas as devidas implicações às quais o referido pesquisador procura chegar com diversos exemplos sobre “memórias coletivas” (nacionais), parece interessante pensar que, por meio da história oral, por exemplo, um estudo das “memórias individuais” poderia mostrar “as tensões e contradições” presentes entre uma “imagem oficial do passado” e as lembranças pessoais de alguém nesse caso.

No caso, por exemplo, indicar os nomes do seu Agenor, do seu Alécio e da dona Anita como pessoas “que sabem contar tudo” sobre “o Ribeirão” significa reconhecer que “a verdade” (ou outra verdade) existe segundo critérios que se alinham à maneira como as famílias do lugar concebem as suas relações e nelas se identificam como comunidade.63 Melhor dizendo, uma identificação que é feita não por meio de uma origem açoriana – ainda que esta não seja totalmente negada, ou, seja eventualmente lembrada –, mas, sim, por meio da relação com o lugar – o Ribeirão –, com as famílias aí constituídas e com tudo o mais que isso signifique na Freguesia do Ribeirão hoje, inclusive as “disputas” (POLLAK, 1989) pelas memórias. Enfim, contar “a verdade” desde um ponto de vista de alguém que tem por referência a história vivida (e narrada) das famílias, muitas vezes, implica em lembrar o que não foi dito e/ou esquecer o que terá sido dito (e escrito) até então. Nesse sentido, porque é “ribeironense”, aquele/a que narra não se confunde com o ser açoriano. Ao indicar o nome do seu Alécio, para este falar sobre o Ribeirão, o amigo Agenor dizia: “Ele tem tudo isso [as coisas do Ribeirão] escrito”. E quando eu também busquei uma referência mencionando o “livro do professor Nereu”, assim recomendado por vários moradores, seu Agenor logo explicava:

O Alécio tem muita coisa escrita aqui da comunidade. Ele sabe, ele é inteligente... [...] O Nereu mora aqui no Ribeirão da Ilha, ele sabe um monte de coisa, porque contaram pra ele, ele escreveu. Mas o Nereu não foi ribeironense, o Nereu foi da cidade, não foi ribeironense. Ribeironense foi, sim, a comadre Nilza, ribeironense, que está com 88 anos; o seu Alécio, que está com 79 anos, é ribeironense; eu sou ribeironense, nasci aqui no Ribeirão. Quem nasceu aqui é que sabe de algumas coisas, tá? (Agenor Firmino da Silva, informação verbal em 11 de novembro de 2007).

Se o clima de açorianidade na Freguesia do Ribeirão aparece em certas situações para caracterizar este como um lugar antigo, histórico e

63 Não é menos importante a advertência de Michael Pollak (1989) quanto a um “trabalho” que

seria feito para enquadrar a memória: “Se o controle da memória se estende aqui à escolha de testemunhas autorizadas, ele é efetuado nas organizações mais formais pelo acesso dos pesquisadores aos arquivos e pelo emprego de ‘historiadores da casa’” (POLLAK, 1989, p. 10, grifo do autor).

de tradição, pelas histórias em prosa narradas por moradores/as nativos/as destacam-se uma “comunidade” ribeironense, pessoas ribeironenses e famílias “do Ribeirão”. Essa especificidade local – o ser ribeironense –, aqui, é compreendida na perspectiva dos moradores da Freguesia, pelo modo como estes contam suas histórias hoje. Uma compreensão que se espera ver no desenvolvimento deste e dos demais capítulos da tese. Mas, e a história de ontem? Ou melhor, como a açorianidade64 entra na história escrita mais recente do Distrito de Ribeirão da Ilha? Acima, viu-se o registro documental de diferentes estudiosos sobre a presença de açorianos na Ilha de Santa Catarina no século XVIII. Agora, há um contexto histórico que ajuda a entender o que a historiadora Maria Bernadete Ramos Flores (1997) chama de “a seleção das tradições” para explicar “a invenção da açorianidade” em Santa Catarina, assunto que mostra, em particular, a dimensão política das escolhas feitas por historiadores catarinenses e outros intelectuais ao promoverem – como História – uma herança açoriana no sul do Brasil.

Contornos da memória e da história açoriana em Santa Catarina

Havia 200 anos que açorianos e madeirenses tinham sido trazidos para Santa Catarina, no âmbito de um empreendimento colonizador planejado da coroa portuguesa. Era, então, o ano de 1948. Em Santa Catarina, houve ampla comemoração desta data: o bicentenário da colonização açoriana no Estado. A programação dos eventos comemorativos girava em torno do Primeiro Congresso de História

Catarinense. Ou melhor, ela correspondia a duas partes: 1) festas

comemorativas, realizadas em fevereiro daquele ano; 2) e o próprio congresso de história, que aconteceu em outubro do referido ano. As comemorações mobilizaram muitas pessoas, entre autoridades civis, militares e religiosas, políticos e intelectuais, bem como o povo em geral. Todos eram convidados a prestigiar as mais diversas solenidades

64 Segundo Eugênio Pascele Lacerda (2003), o termo açorianidade tem sua origem na década

de 1930, quando o escritor português Vitorino Nemézio procurava traduzir, à época, “um esforço sistemático e permanente de intelectuais e organizações políticas açorianas para fixar, no imaginário nacional português, um espaço da diferença constitutivo da identidade cultural das populações do Arquipélago” (LACERDA, 2003, p. 10-11). O autor afirma, ainda, que esta “categoria de apelo identitário” teria sido incorporada por diferentes esferas globais e locais ao longo do século XX, aproximando, intercambiando e valorizando a cultura açoriana em várias partes do mundo, como um “mote unificador” entre os Açores, as comunidades de emigrantes e seus descendentes.

– com músicas, discursos, hino nacional português, pedra fundamental do monumento ao Segundo Centenário, exposição das sobrevivências culturais etc. –, tornando a data de chegada de açorianos e madeirenses ao sul do Brasil um marco histórico merecedor de honras e aplausos:

Assim, cada detalhe da faina colonizadora era enfatizado: o árduo trabalho da agricultura; o desenvolvimento de artes e ofícios, como a cerâmica, o engenho de farinha de mandioca, o tecido feito em tear doméstico, a renda de bilro etc.; a dedicação à pesca de subsistência ou à pesca da baleia em alto-mar; a defesa militar; o trabalho recrutado para as obras públicas; a sedimentação da língua, da cultura, da religião, das instituições de origem portuguesa. Diziam que os açorianos construíram um pedaço de Brasil no sul do continente americano. (FLORES, 2000, p. 71-72).

Parte fundamental desse ano célebre, o primeiro congresso de história em Santa Catarina tinha por objetivo afirmar a importância dos açorianos na colonização de Santa Catarina, enaltecendo, junto com as demais formas de celebração (acima lembradas), a presença luso- açoriana no Brasil, procurando mostrar para todo o país a brasilidade do Estado catarinense (FLORES, 1997, p. 114-115).65 Houve, portanto, um esforço conjunto no sentido de despertar para uma açorianidade que estaria nas origens da gente de Santa Catarina, cujos sinais se fariam presentes também na vida diária do povo catarinense: “Com nova roupagem, várias práticas do passado de 200 anos sobreviviam como tradição e como atividade cotidiana” (FLORES, 2000, p. 73). A historiadora interpreta as comemorações do bicentenário como “um fenômeno de criação de memória”, em que “um grupo de investigadores empenhara-se para tirar do esquecimento a história do povoamento açoriano” (FLORES, 2000, p. 73-74). De fato, esta seria uma efetiva

65 Maria Bernadete Ramos Flores refere-se a várias personalidades (intelectuais e políticos)

participantes desse congresso comemorativo, cujas reflexões firmavam valores positivos da colonização açoriana em Santa Catarina. Além das figuras catarinenses, a historiadora cita Manuel de Paiva Boléo, professor da Universidade de Coimbra, que esteve presente ao evento, e, ao retornar a Portugal, publicou um relatório sobre o mesmo. Quanto ao congresso, lembrava o intelectual português: “[...] constituiu uma necessidade no Estado de Santa Catarina, onde a cultura luso-brasileira perigosamente enfrentou a cultura alemã. A finalidade suprema, embora não expressa, era a de mostrar para os outros Estados da União a brasilidade de Santa Catarina” (BOLÉO, 1950 apud FLORES, 1997, p. 115).

institucionalização da açorianidade que estaria na constituição da sociedade catarinense e florianopolitana.66 Assim, os açorianos do

século XVIII seriam: “[...] o principal e o mais expressivo contingente humano que construiu a base da gente ‘barriga-verde’” (PEREIRA, N. 2003, p. 11-12, grifos do autor).

É preciso lembrar, aqui, que o estado de Santa Catarina é descrito por muitos autores, sobretudo depois do primeiro congresso de história catarinense (1948), supracitado, como “um mosaico étnico-cultural”