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Mestre Pastinha e o Centro Esportivo de Capoeira

CAPÍTULO 3 A ACADEMIA DE MESTRE JOÃO PEQUENO DE PASTINHA

3.1 Mestre Pastinha e o Centro Esportivo de Capoeira

Para compreender como ocorrem processos de ensino aprendizagem de música na academia de Mestre João Pequeno é preciso inicialmente conhecer um personagem que o antecede: Mestre Pastinha. Vicente Ferreira, (1889-1981) foi um capoeirista do começo do século XX, um dos responsáveis por organizar em academia a capoeira que era jogada nas ruas, fundando o Centro Esportivo de Capoeira Angola, CECA, em 1941, em Salvador, BA. De acordo com Decânio Filho, Pastinha foi o primeiro a se preocupar com bases filosóficas, éticas e educacionais da capoeira (DECANIO FILHO, 1997). Pastinha dedicou sua vida ao ensino da capoeira e formou entre outros, Mestre João Pequeno. Este adota o nome de João Pequeno de Pastinha, após a morte deste, tornando- se um dos mais importantes nomes relacionados ao legado de Mestre Pastinha. Faleceu em dezembro de 2011, prestes a completar 93 anos.

Os registros sobre a fundação do CECA foram anotados a punho neste manuscrito originalmente intitulado de ‘Quando as pernas fazem miserê’, datado de 1960, o mesmo que foi editado em 1997 por Decânio Filho. Nele são encontradas anotações de cantigas de capoeira, gravuras de movimentações, depoimentos e pensamentos de Pastinha. Compartilho anotações do próprio Pastinha editadas por Decânio Filho, nos chamados Manuscritos e ilustrações de Pastinha:

1. Sobre a Fundação do Centro Esportivo de Capoeira Angola : "em 23 de fevereiro de 1941. Fui a esse locar como prometera a Aberrêr, e com suspresa o Snr. Armósinho dono da quela capoeira, apertando-me a mão disse-me: Há muito que o esperava para lhe entregar esta capoeira para o senhor mestrar. Eu ainda tentei me esquivar disculpando, porem, toumando a palavra o Snr. Antonio Maré: Disse-me: não há jeito, não Pastinha, é você mesmo quem vai mestrar isto a qui. Como os camaradas dero-me o seu apoio, aceito."

(...) "em 23 de fevereiro de 1941. No Jingibirra fim da linha Liberdade, la que naceu este Centro; porque? foi Pastinha quem deu o nome de "Centro Esportivo de Capoeira Angola". Fundadores: Amosinho, este era o dono do grupo, os que lhe seguiam , Aberrêr, Antonio Maré, Daniel Noronha, Onça Preta, Livino Diogo, Olampio, Zeir, Vitor H.D., Alemão filho de Maré, Domingo de. Mlhães, Beraldo Izaque dos Santos; Pinião José Chibata, Ricardo B. dos Santos."

(...) "Eu sempre pronto quando me procuravam, estava em minha casa, um Domingo, quando dois camaradas me convidou para ir ver um terreno da Fabrica de Sabonete Sicool no Bigode, e la levantei a capoeira, e o Centro entrou no rumo, que Pastinha pensava levar a capoèira, ao seu presioso valor; com o ausilio dos moradores, e todos estiveram ao meu lado animando-me para este disideratum. A primeiras camisas foram feitas no Bigode, em cores preta, e marelo. tendo como primeiro Presidente o Snr. Athaydio Caldeira, o segundo, o Snr. Aurelydio Caldeira."

(...)"Eu sempre tive em mente que a capoeira persisava de um generoso intrutôr, com a presencia minha, apontei o destino de levar ao futuro, assumir deversa atitude: Pelo àmôr ao esporte; e a luta constitui caminho para a devina realização e recebeu o nome× Centro esportivo de capoeira× Angola como patrimonio sagrado."

(...)"Nunca tomei conhecimento dos que não estão com-migo, sim, porque a capoeira não me é previlejios, o Centro é para todos que visitar, jogar, fazer parte... "

(...)"eu digo aos mestres que inponho por educação, explicações e bons sentimento porque não sou o melhor, não sou o mestre numero um, comigo tenho bons observadores e bons capoeiristas, e outros que estão na rezerva, e apoia o Centro como academia..." (PASTINHA apud DECANIO FILHO, 1997)

Nesta congregação, associaram-se os maiores capoeiristas da época, entre eles, Mestre João Grande, Mestre Boca Rica e Mestre João Pequeno. Apesar do atual reconhecimento da figura de Pastinha como um dos mais importantes guardiões da capoeira angola, ele faleceu em 1981, cego e em condições sociais precárias. Na época da escola de Mestre Pastinha, os elementos de ensino/aprendizagem da capoeira angola eram quase exclusivamente orais. A edição de um livro, Capoeira Angola, em 1964, no qual é atribuída a autoria a Mestre Pastinha29, é um dos primeiros registros escritos sobre a prática. Nele são encontrados depoimentos sobre a origem da capoeira, sobre o conjunto musical, e são sistematizados sequências de golpes. Nesta obra há uma interessante representação de Arranjo Musical para Conjunto, com representações com notação ocidental para um jogo de capoeira.

FIG. 8 Arranjo Musical para Conjunto (PASTINHA, 1964, p. 44)

29 Lembrando que a autoria deste livro foi problematizada, como já mencionado, pela professora doutora Rosângela Araújo, que chama a atenção para a diferença de linguagem presente no livro e os manuscritos de Pastinha, por exemplo. A professora sugere que o livro não foi escrito pelo próprio Pastinha, segundo Araújo (2015), provavelmente alguém do universo acadêmico ouviu depoimentos do mestre e escreveu o livro, atribuindo a ele a autoria. Esta prática é recorrente no âmbito da cultura popular, foi o que aconteceu com o livro Uma vida de Capoeira, de autoria atribuída a Mestre João Pequeno, foi escrito a partir de depoimentos de uma aluna. Para referências bibliográficas, ambas obras foram citadas com os autores atribuídos.

A partitura apresentada em Capoeira Angola é como a de música de câmara, uma sequência de pentagramas, cada um adequado para um instrumento, que inicia com a seguinte explicação:

O arranjo musical que apresentamos neste livro dá uma visão fundamental de como são executados os vários instrumentos que entram no conjunto rítmico da capoeira angola. As batidas e os repiques podem variar muito, dentro do ritmo seguido do jogo de capoeira (PASTINHA, 1964, p. 44)

Em seguida, há uma alusão àquele que possivelmente foi o responsável por assessorar o mestre nesta tarefa de realizar uma transcrição em notação musical tradicional dos elementos musicais da sua capoeira, o Professor Calmenero.

Vejamos as instruções do prof. Calmenero para a execução do arranjo que se encontra a seguir. Embora a tonalidade do arranjo seja dó maior poderá ser outra mais aguda ou mais grave na dependência das vozes dos cantores. O berimbau deve ser afinado para que a diferença entre o som da corda livre e o som obtido por encurtamento da mesma, por intermédio da moeda de cobre aplicada contra o arame, seja um tom de diferença. Assim, poderá ser Dó-ré, si-dó sustenido, ré-mi, fá-sol. A afinação do berimbau se consegue suspendendo ou abaixando o barbante que liga a caixa de ressonância (cabaça) ao arame ou corda sonora (PASTINHA, 1964, p.44)

No diagrama, lê-se na parte superior jogo de angola-jogo lento, a qual se segue um primeiro pentagrama em compasso binário 2 por 4, quatro compassos de pausas de mínimas, escrito embaixo do pentagrama sostenuto – veja as instruções ao lado. Ao lado deste outro pentagrama com o título canto côro e embaixo Arranjo do prof.

Calmenero. Ao todo são doze pentagramas, sendo seis de cada lado, dispostos em duas

colunas. Em seguida são destacadas algumas orientações para interpretar a notação que ele atribui ao professor Calmenero, da ordem da manulação do instrumento:

A letra ‘S’ significa que o pandeiro deve ser sacudido simplesmente para emitir as sonoridades de seus discos metálicos. A letra ‘B’ indica a batida sobre a pele do mesmo. Para o atabaque a letra B representa a batida e ‘AF’ indica que o som deve ser delicadamente abafado. ‘Atrit” significa o movimento do atrito e deslizamento da vareta sobre os sulcos formados na extensão do reco-reco. “G” e “A” representam os sons grave e agudo correspondentes aos ramos maior e menor do agogô. Os sons se obtém batendo com uma aste metálica sobre os ramos afunilados do instrumento (PASTINHA, 1964, p.44)

A canção contida no chamado arranjo musical é apresentada nesta obra da seguinte forma:

Solista: Valha me Deus , camarada Côro: E valha-me Deus, camarada Solista: E para de beber, camarada Côro: e pare de beber, camarada

O texto reforça, ainda, que de acordo com a habilidade de improvisar dos cantadores, a cantiga pode ganhar outros versos, por exemplo:

Solista: E para de beber, camarada Côro: e pare de beber, camarada Solista: E ele é mandigueiro, camarada

Côro: ele é mandigueiro, camarada

Sobre a melodia, há uma passagem no mesmo livro que diz que as melodias que estamos acostumados a ouvir nas demonstrações de capoeira angola são genuinamente populares sem maiores preocupações de métrica e rima mas, traduzindo em seus versos os sentimentos da alma do capoeirista e do povo (PASTINHA, 1964, p.41)

O autor aponta que os instrumentos que compõem o conjunto são berimbau, pandeiro, reco-reco, agogô, atabaque, chocalho, e que o berimbau é o instrumento principal e indispensável. Em seguida apresenta uma descrição detalhada do manuseio e da constituição do berimbau:

É constituído de uma vara de madeira resistente, aproximadamente com 1,50 m de comprimento, mantendo em tensão um arame de aço. Possui uma caixa de ressonância formada por uma cabaça unida ao arame por meio de um barbante. As batidas de uma vareta de madeira, à semelhança de uma batuta de maestro, sobre a parte inferior da corda sonora produz um som que pode ser mais agudo encurtando, momentâneamente, a extensão vibratória do arame de aço aplicando, contra o mesmo uma moeda de cobre que é mantida pelo tocador, entre os dedos polegar e indicador da mão esquerda. A mão direita segura a vareta com os dedos polegar, indicador e médio, restando os dedos mínimo e anelar para manter fixo por intermédio de uma pequenina alça, o Caxixi, uma delicada cestinha de vime com sementes secas em seu interior, funcionando pelos movimentos das mãos como um pequenino chocalho. A caixa de ressonância, formada por uma cabaça, aumenta ou diminui a intensidade do som afastando ou aplicando contra o abdomem a abertura do mesmo(PASTINHA, 1964, p.40)

Certamente essas páginas do livro Capoeira Angola têm uma linguagem que dificilmente seria a linguagem do próprio Mestre Pastinha, se comparado aos registros

dos manuscritos. Porém, há de se considerar que se o texto foi escrito a partir de depoimentos do mestre, constituem-se legítimas representações de ensino/aprendizagem de música da capoeira angola que acontecia no Centro Esportivo de Capoeira Angola na época, apoiadas ainda por um professor que transcreveu as práticas em notação musical. Resguardadas as polêmicas sobre a autoria, podem ser consideradas as primeiras sistematizações para transmissão desta cultura musical.

Outra publicação emblemática de Pastinha, os já citados Os Manuscritos e

Ilustrações de Pastinha, organizado por Decânio Filho em 1997, com anotações a

punho, manuscritos de letras de cantigas e gravuras de movimentos de capoeira feitos por Pastinha, também são representações não orais da transmissão desta arte popular. Certamente, as anotações e ilustrações eram a melhor maneira de descrever e registrar a capoeira da época.

No manuscrito comentado editado por Decânio como “A herança de Pastinha”, há uma alusão ao que pode ser uma referência ao ensino de cultura musical, quando Pastinha usa os termos mestres de cantos e mestres de bateria: “Pastinha deu ao centro de capoeira, mestres de campos, mestres de cantos, mestres de bateria, mestres de treinos, arquivistas, mestre fiscal, contra-mestre” (DECANIO FILHO, 1997, p. 13).

A seguir, reproduzo duas páginas do material, a capa, e duas páginas com uma gravura e anotações de punho retiradas do manuscrito: