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Oralidade, ancestralidade e comunidade; valores civilizatórios afro-brasileiros

CAPÍTULO 1 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

1.1. Cultura e educação na música de tradição oral da capoeira

1.1.2 Oralidade, ancestralidade e comunidade; valores civilizatórios afro-brasileiros

Outros conceitos que dialogam com o tema da presente pesquisa foram bem explicitados pelas duas teses que serviram de referência, de Candusso e Araújo, primeiramente por Araújo (2004) que destacou Oralidade, Ancestralidade e

Comunidade como pilares da práxis educacional da capoeira. Sobre ancestralidade, diz

Araújo:

(...) ancestralidade, neste estudo, extrapola qualquer entendimento sobre descendência biológica e/ou étnica. Tomamos este termo como referência a dois importantes entendimentos: o primeiro sobre a presença do Mestre Pastinha como matriz de uma descendência cujas reflexões estruturam os códigos de pertencimento e resistência cultural, promovendo também a valorização da sua memória. O segundo entendimento diz respeito aos vínculos entre a capoeira e o candomblé/umbanda, como referência de pertencimento e não como atividade, já que não existe uma implicação que torne obrigatória aos praticantes da capoeira sua iniciação nestas religiões, e vice-versa. Neste entendimento adota-se a ambiência de uma africanidade pautada no convívio com o sagrado, com o sobrenatural, o mistério, estando em pauta a temática da identidade, de forma complexa (ARAÚJO, p. 14, 2004).

Sobre o segundo e terceiro termo, comunidade e oralidade, Araújo diz:

Já o uso do termo comunidade orienta a nossa compreensão de grupo formado por um ou mais líderes, podendo também estar distribuídos em cidades e culturas distintas, mas que partilham os mesmos códigos de pertencimento e símbolos de identidade. Como oralidade, apresentamos a principal via de repasse do conhecimento que, embora podendo variar nas estruturas individuais de relacionamento (mestre/discípulo) e/ou coletiva de envolvimento (mestre/discípulos e, estes entre si), corresponde à valorização de uma técnica de educação tradicional africana (ARAÚJO, p. 14, 2004).

Em seguida, em 2009, Candusso apresentou em sua tese uma lista de ‘valores civilizatórios afro-brasileiros’9, incluindo os três pontos destacados por Araújo e acrescentando outros, sendo eles:

1) Circularidade. Processos educacionais afro-brasileiros ocorrem na roda. O tempo é cíclico;

9 De acordo com autora, estes valores foram primeiramente nomeados desta forma no programa“A Cor da Cultura”, promovido pelo Canal Futura, que publicou uma série de três livros sob a coordenação de Brandão (2006) onde, entre vários assuntos, foi tratada a questão dos valores civilizatórios afro- brasileiros

2) Musicalidade. Manifestações culturais de matriz africana são mais que fenômenos acústicos, estando vinculados à dança, movimento, língua, religião, isto é, a música como agente socializador e transmissora de valores; 3) Ludicidade. O sistema educativo de muitas sociedades africanas acontece

através de jogos e brincadeiras, que também servem para aprender as regras do convívio social.

4) Corporeidade. O corpo coletivo é sagrado e mantenedor dos valores herdados das sociedades africanas ligado à comunidade, contrapondo-se ao corpo individual considerado pelos colonizadores meramente como força trabalho. 5) Cooperativismo/Comunitarismo. Viver em comunidade, enquanto regras de

convivências e socialização e enquanto maneiras de compartilhar a vida com os outros membros do grupo

6) Oralidade. A tradição oral tem fundamental importância no processo educativo, através de provérbios, charadas, jogos de palavras, histórias, mitos, lendas, também para estabelecer regras quanto à moralidade, aos rituais e sanções para quem for infringi-las

7) Memória. visual, familiar, memória histórica, memória mítica, principal fonte de informação e ligação com o passado.

8) Ancestralidade. Remete aos mortos veneráveis, à família, aldeia, quilombo, da

cidade, do reino ou império, e a reverência às forces cósmicas que governam o universo, a natureza.

9) Religiosidade. No sentido de ritualidade

10) Energia Vital (Axé)10 torna possível o processo vital, mas enquanto força não aparece espontaneamente: deve ser transmitida (CANDUSSO, 2009)

A esses valores destacados pelas duas pesquisadoras, somo ainda mais dois: respeito e autonomia. Na cultura musical da capoeira o respeito está presente não apenas nas relações interpessoais, entre os colegas, mas também na relação mestre e discípulo, existe respeito ao tempo de aprendizagem de cada aluno, respeito às individualidades de cada aluno, sem qualquer tentativa de homogenização, pelo contrário, somando as diferenças para um todo ricamente diversificado. O respeito também está presente na relação do aluno para com o mestre, construído de maneira

natural, sem imposições. A autonomia está presente principalmente no aprendizado musical, na medida em que é o aluno quem escolhe qual instrumento pegar pela primeira vez, é o aluno que administra sua evolução, pela livre iniciativa. O mestre fala pouco e observa muito. Esses valores encontram correspodência nos dizeres sobre os manuscritos de Pastinha de Decânio, em 1997: “A capoeira baiana é, sobretudo, um modo de viver, uma filosofia baseada na liberdade individual, na alegria, no respeito, na cooperação, na camaradagem, no espírito comunitário, integrando assim o homem na sociedade” (DECANIO FILHO, 1997, p.10).

Nesta tese foi imprescindível, para completar o quadro de referências, considerar fontes êmicas, isto é, de dentro do contexto estudado. Entre elas está o livro Capoeira

Angola, cuja autoria é atribuída a Mestre Pastinha11, um dos primeiros registros escritos sobre a capoeira angola, de 1964, com gravuras e anotações do mestre, no qual há comentários sobre o surgimento da capoeira e sobre seu conjunto musical. Também o documento Manuscritos e ilustrações de Pastinha, com data original de 1960, editado por Decânio Filho em 1997. Outra é o livro Uma Vida de Capoeira, uma produção independente, editado e financiado pelo professor doutor da UNESP, Luiz Augusto Normanha Lima, produzido a partir de manuscritos que uma aluna fez ouvindo o Mestre João Pequeno, conservando a forma em que o manuscrito foi escrito, como uma espécie de autobiografia deste Mestre. Por fim, para completar o quadro de referências, ainda dentro de uma perspectiva êmica, os trabalhos de Pedro Abib, professor doutor da FACED-UFBA, principalmente os textos publicados no Portal Capoeira (portalcapoeira.com), na editoria ‘Crônicas da Capoeiragem’ e o texto produzido para sua tese, que deu origem à publicação com temática capoeira e educação12 Outras

11 A autoria deste livro foi problematizada pela professora doutora Rosângela Araújo, que chama a atenção para a diferença de linguagem presente no livro e os manuscritos de Pastinha, por exemplo. A professora sugere que o livro não foi escrito pelo próprio Pastinha, segundo Araújo (2015), provavelmente alguém do universo acadêmico ouviu depoimentos do mestre e escreveu o livro, atribuindo a ele a autoria. Esta prática é recorrente no âmbito da cultura popular, foi o que aconteceu com o livro Uma vida de Capoeira, de autoria atribuída a Mestre João Pequeno, foi escrito a partir de depoimentos de uma aluna. Para referências bibliográficas, ambas obras foram citadas com os autores atribuídos.

12 Capoeira Angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda. Campinas: Tese-Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, 2004

referências citadas completam o quadro bibliográfico de música, cultura e educação na capoeira de Mestre João Pequeno de Pastinha.

Vale lembrar que além das referências acima enumeradas, outros trabalhos como artigos e comunicações orais em congressos, foram usados como referências no texto de acordo com a necessidade. E não menos importantes que os registros escritos, os depoimentos de chamados “livros vivos”, personagens que contribuíram com esta pesquisa, como o aluno de Pastinha, Mestre Boca Rica.