• Nenhum resultado encontrado

Predisposição musical, motivação e desenvolvimento cognitivo na capoeira

CAPÍTULO 4 MÚSICA, CULTURA E EDUCAÇÃO NA CAPOEIRA DE

4.1 Cultura musical e educação em Mestre João Pequeno de Pastinha

4.1.2 Predisposição musical, motivação e desenvolvimento cognitivo na capoeira

Anteriormente, concluiu-se que aspectos da cultura musical da capoeira levam a um paralelo com pontos enumerados por Sloboda sobre habilidade musical, sendo possível afirmar que existe uma cultura musical da capoeira, assim como é possível afirmar que um dos fatores de motivação na capoeira está em tocar e cantar, fazer parte do coletivo, em tornar-se parte do todo, e que a oportunidade de ocupar os lugares mais disputados da bateria contribui no aprendizado musical, bem como o feedback do mestre é imediato quando o aluno se destaca na música. Por fim só o treino leva à

expertise, como em qualquer cultura musical. Neste extrato, são enumerados pontos

sobre motivação e predisposição musical no ambiente estudado.

Estudos sobre motivação são encontrados na área da cognição musical, também chamada psicologia cognitiva da música. De acordo com Bzunec, a raís etmológica da palavra vem do verbo latino movere, que origina o substantive motivun, isto é, motivação é um elemento que gera uma ação, que move a pessoa na realização de uma função específica (BZUNEC apud ILARI, ARAÚJO, 2010, p. 111), podendo ser entendida como um conjunto de fatores que auxiliam e asseguram ao ser humano a persistência e o direcionamento da atenção para atividades realizadas.

Ficar “hipnotizado” durante concerto ou show musical é um dos fatores de motivação que levam pessoas a procurar instrução para o aprendizado musical. Fatores de motivação musical também podem aparecer em lares com instrumentos musicais e pais musicistas, no ambiente escolar, e quando não há a formalidade de uma disciplina oficial na escola, entre os pares, ou em manifestações da cultura oral. Diante da desigual realidade das escolas brasileiras, entre os Estados e entre escolas públicas e privadas, é possível afirmar que o ensino de música no Brasil em geral nunca foi prioridade do Estado, sendo resultados de esforços de educadores musicais engajados até chegarmos a Lei 11769/08. Do canto orfeônico à educação artística, o espaço da educação musical não foi definido de acordo com as demandas e representações sociais adequadas.

Portanto se uma parcela muito pequena da população tem acesso a escolas particulares de música ou conservatórios, pressupõe-se que atividades de práticas musicais populares, infiltradas no seio das comunidades, como capoeira, bumba boi e reisado, possuem elementos comuns de motivação musical que desencadeiam processos de ensino/aprendizagem de música. Lembrando do que diz Sloboda sobre o aprendizado

musical começar muito cedo, e pesquisas mostrarem que bebes já tem percepção musical desde o quarto mês de gestação, baseadas em respostas/reações comportamentais como virar a cabeça, ritmo de sucção, batimentos cardíacos, isto é, percebem mudanças entre estímulos musicais e têm predisposição/preferência a padrões consonantes, e que este quadro leva alguns pesquisadores a afirmar que este sentido é uma predisposição inata a música (SLOBODA, 2008). Porém é necessário lembrar também que Sloboda afirma que o que promove e qualifica o desenvolvimento musical é a cultura, isto é, a habilidade musical constrói-se com base em tendências inatas, mas é adquirida através da interação com o meio musical, ou seja, o desenvolvimento cognitivo é explicado com base na aquisição de novas habilidades (SLOBODA, 2008). .

A predisposição musical inata, no entanto, não é um requisito prévio para aprender música no ambiente de capoeira estudado. Todos os alunos são incentivados ao fazer musical e recebem tratamento igual em relação ao ensino da música, não importando se já tem ou não acumulado experiências musicais anteriores ou inatas. Um fator que deve ser considerado é a hereditariedade, uma vez que filhos e filhas de mestres de capoeira desenvolvem com eficácia o aprendizado musical da capoeira muito cedo, certamente por dedicarem mais tempo ao acompanhar o mestre em suas atividades. É garantido nas aulas oportunidades a todos os alunos de treinar todos os instrumentos e o canto, assim como todos os alunos devem passar pelo treino da bateria (conjunto musical da capoeira), mesmo os que não demonstrem tanta habilidade. De acordo com o interesse do aluno, o mestre, treinel ou professor direciona o aprendizado. Assim como na cultura musical letrada, é de acordo com o treino e a dedicação que alunos adquirem habilidades de cantar, habilidades de tocar os instrumentos, habilidades de cantar e tocar ao mesmo tempo, habilidades de improvisar e até mesmo de criar versos em cações já existentes ou a criação de ladainhas (como já mencionado, canção solo que é executada no início de cada roda, uma espécie de oração inicial).

O coro, chamado pelos estudos acadêmicos de coro responsorial, é uma característica da cultura musical estudada. Para Mestre Pastinha, é um dever do capoeirista reponder o coro, sendo até proibido a quem estiver na bateria não respondê- lo, de acordo com um trecho em seus manuscritos, citado anteriormente42. Cabe ao

42DECANIO FILHO, 1997, p.35: são encontradas referências pontuais à musicalidade, por exemplo quando ele diz que deu ao centro mestres de canto e mestres de bateria, assim como há uma passagem

mestre ou aos treineis responsáveis avaliar quais alunos estão aptos para ocupar os lugares da bateria para os dias de festa (roda). Se nas aulas um aluno se destaca na prática do canto ou na execução de instrumento, ele é direcionado para fazer parte da bateria da roda de capoeira, ocupando uma posição de destaque, como um fator de motivação, isto é, um bom desempenho musical é sinônimo de ganhar a aprovação do mestre. Outro fator de motivação está em fazer parte do coletivo. Ao participar da bateria os alunos experimentam a sensação de reger os movimentos corporais, e atualizam seus repertórios. Portanto, ao afirmar que, se o aluno de capoeira tem um bom desempenho musical durante as aulas, ele é direcionado para fazer parte da bateria da capoeira nas rodas, sendo fator de motivação, isto implica que tal aluno certamente continuará a investir mais intenção e dedicação à parte musical da capoeira, desenvolvendo-se a cada dia mais.

A musicalidade da capoeira pode contribuir no desenvolvimento cognitivo, o que é detalhadamente analisado por Pangolin. Em artigo publicado no Portal Capoeira, destaca que o trabalho musical da capoeira proporciona o ajustamento rítmico do aluno, correlacionando noções de tempo/espaço, favorecendo assim o equilíbrio emocional e relações com outros colegas a partir do ritmo do outro e de si mesmo (PANGOLIN, 2006). O autor comenta que a partir da utilização dos instrumentos de capoeira, e seus manuseios, o aluno percebe implicações de gestos finos, relacionados à objetos, o que contribui para o desenvolvimento de outras habilidades, como a escrita. O autor aponta ainda que as letras das cantigas de capoeira são impregnadas de ditos populares e parábolas que traduzem posturas morais, cívicas e afetivas. O autor afirma ainda que as relações interpessoais na capoeira carregam símbolos ritualísticos que reforçam o sentido de produção coletiva para o coletivo com uma relação de ensino/aprendizagem horizontalizada que só funciona a partir da participação democrática dos envolvidos na ação, sendo uma das lições da capoeira o aprender fazendo, ou seja, a não dicotomização da ação prática do aprendizado teórico, apontando para uma relação democrática entre educandos e educadores, fortalecendo a zona de desenvolvimento proximal de Vigótski (PANGOLIN, 2006). O autor sublinha

sobre a musicalidade, que reproduzo a seguir: “saber cantar e responder: é dever de todos os capoeiristas, não é defeito não saber cantar, mas é defeito não saber responder pelo menos o coro, é proibido na bateria pessoas que não respondem ao coro”

que este processo de construção do conhecimento é permeado por uma forte relação de respeito mútuo, parceria, coletividade, irmandade, tendo efeito benéfico em casos de introspecção, hiperatividade, melhorando a autoestima, elementos que potencializam ações para a construção de uma pedagogia social, que tem em sua essência que a escola não deve ser um lugar apenas para ensinar conteúdos e sim para ser educadora de um povo. Além das dimensões destacadas por Pangolin, o ensino de música na capoeira também está ligado a outros ganhos cognitivos mais especificamente ligados a musicalidade.

Pessoas que não tinham qualquer experiência musical como executantes de música, senão como ouvintes, ao ingressar na capoeira são praticamente obrigados a fazer parte do conjunto musical, ganhando habilidades cognitivas específicas musicais, como responder o coro, tocar instrumentos musicais, e de tocar e cantar ao mesmo tempo, acompanhando o conjunto musical.