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Mestre Rafael Magnata: patrimônio, razão e os sentidos de “morrer à

PARTE I: Da ginga: O Registro

2. Os conceitos de patrimônio na visão dos mestres

2.4. Mestre Rafael Magnata: patrimônio, razão e os sentidos de “morrer à

A gente fala, mas não tem a dimensão de que isto tem (a patrimonialização), o que significa ser tão perseguido e hoje ser tão reconhecido? Agente fala. Faz uma trajetória emocional. Mas o que diz isto na razão? O que isto pode dizer na razão? Mestre Rafael Magnata131

Como descrito até aqui a construção do conceito de patrimônio do capoeira relacionam-se trajetórias do capoeira com o Estado, a noção de propriedade e as potencialidades transformadoras da prática para o praticante com seu patrimônio. A categoria de patrimônio é construída de forma dicotômica; a própria trajetória e linhagem, as “memórias não-vividas” da escravidão e criminalização, a um entendimento desta como “docilização”. A Capoeira é patrimônio do capoeirista por o constituir e transformar. A Capoeira aceita-se enquadrar ao conceito de cultura, a patrimonialização prescinde de tal enquadramento e razão.

Os significados simbólicos “de ser tão perseguido e hoje tão reconhecido” são compreendidos entre a capoeiragem como reparação do Estado, a aceitação plena do registro significa também render-se ao Estado e ressignificá-lo em sua trajetória de perseguidor. Compreendida esta trajetória da Capoeira como de superação, capaz de transitar entre crime e cultura e agora elevada patrimônio nacional e da humanidade. O reconhecimento e difusão da Capoeira eram anunciados por Mestre Bimba e Mestre Pastinha, mas tomadas como uma profecia distante para os capoeiristas que viveram a perseguição e hoje admiram-se com as previsões certeiras dos antigos mestres, que morreram “à mingua”132. As mortes desvalidadas de Mestre Bimba e Mestre Pastinha são

130 Frase de Mestre Pastinha frequentemente utilizada como metáfora, síntese e analogia em situações distintas. 131 Idem ao 102.

132 Ver documentário “Fio da Memória, 1988-1991, Eduardo Coutinho, no qual Mestre Curió descreve a morte à mingua de Mestre Pastinha.

citadas recorrentemente, ambos gozavam de reconhecimento e prestígio na Bahia, que não se transfiguraram em ascensão social e financeira. As memórias de Pastinha cego num quarto escuro de um abrigo público e Bimba “esquecido” em Goiás transformaram a luta por reconhecimento em luta por direitos. Agora imbuídos nas razões esperadas da patrimonialização.

Nestor Garcia Canclini, em “A Sociedade sem Relato: Antropologia da Estética da Iminência” (2012), discute como a Unesco pretende elevar a patrimônio da humanidade manifestações de grupos subalternizados, discutindo o porquê de certos elementos se tornarem merecedores de tais títulos, mediante as recomendações da Organização, que segundo Canclini “incorrem como simulação”, ao amenizar a situação real dos bens e lhe parecem despropositadas ao consolidar um suposta unidade em tempos de globalização:

(...) Fingem que a sociedade não está dividida em classes, gêneros, etnias e regiões, ou sugerem que estas fraturas não tem importância diante da grandiosidade e respeito ostentado pelas obras patrimonializadas. Desinteressam-se pelo que é demonstrado por centenas de estudos sobre o lugar dos indígenas, das mulheres e dos pobres urbanos: a diversidade das memórias nacionais, a discriminação das memórias subalternas e seu arrasamento nas guerras e ditaduras (Canclini, 2012, p. 71).

Enquanto os objetivos da Unesco são de promover o reconhecimento de tais bens, como forma de mostrar a humanidade como única e responsável pela cultura material produzida, os mestres sabem de suas condições, são cientes de sua trajetória e esperam a atuação da patrimonialização justamente para a promoção de melhorias que não sejam simulacros. Os objetivos tanto da Unesco quanto do Iphan não se distanciam, no entanto oferecem primeiro o reconhecimento para a partir dele atuar, já os capoeiristas consideram que atuação precede o reconhecimento, assim como parece sugerir Canclini.

Para interpretar as continuidades, Canclini diz que o patrimônio pretende a “eximinência”, em oposição a “iminência” das manifestações artísticas, que Dumoillè (2014) sugere ser inerente à prática da Capoeira. Desta forma Capoeira e patrimônio também estariam em oposição. Para encontrarem-se o patrimônio precisa fazer o que a Capoeira não faz ou não fez, como concluiu Canclini: “A tarefa da arte não é dar um relato à sociedade para organizar a sua diversidade, mas valorizar o iminente onde o dissenso é possível” (2012, p. 246). Com isto podemos compreender que neste sentido, mas que um pedir perdão, ter compaixão ou se reparar, o Estado precisa atuar onde e como a Capoeira não foi capaz de atuar, sem torná-la “eximinente”, mas a

complementando com políticas continuadas que lhes mostrem a razão do patrimônio e as virtudes de tais reconhecimentos num plano material, de direitos, concreto e não imaterial.

O que Mestre Rafael Magnata classifica como “trajetória emocional” coloca-se como entendimento do simbolismo da patrimonialização, em oposição a “razão”, evidenciando para os capoeiristas quais são as diferenças entre as categorias de patrimônio e cultura. Ou seja, o aspecto simbólico do registro é tomado como cultura, anexado à trajetória torna-se emocional, oferece redenção ao Estado. “Mas o que diz isto na razão? O que isto pode dizer na razão?”

Marshall Sahlins no livro “Cultura e Razão Prática” retoma as discussões das escolas antropológicas, evolucionismo, funcionalismo e culturalismo para demonstrar como as culturas não operam unicamente motivadas por finalidades expressas, mesmo que simbólicas. A roda de Capoeira em si poderia ser analisada a partir de um modelo simbólico e funcional, seus códigos ritualísticos e movimentos são associados a explicações congêneres às funcionais. As ações do Estado são compreendidas como de causa e efeito. Os capoeiras sabem da importância da sua linhagem, consideram emocionalmente a trajetória, tem a Capoeira como seu patrimônio e esperam do Estado algo além de valorização e redenção. Esperam a reparação pelos mestres que morreram “à mingua”, pela escravidão e criminalização e por todo patrimônio apropriado historicamente dos africanos no Brasil. Sahlins (2003) sugere que as dinâmicas culturais são motivadas por simbolismos arbitrários, nem sempre racionalizados. E neste argumento conseguimos compreender onde cultura e patrimônio diferenciam-se para o capoeira e consolidam-se como mundos distintos, pois ao declarar um bem como patrimônio o constitui de forma racionalizada como tal e esta assimilação parte de objetivos dos quais se espera finalidade, que não apenas simbólica. Assim o registro não foi prontamente aceito para os capoeiras, que constroem a categoria de patrimônio em oposição à categoria de cultura, portanto espera-se a razão e finalidade que a cultura não precisa ter ou não é racionalizada.

Diante do pouco sentido que o conceito de salvaguarda faz quando entendida como “resgate”, da inoperância do registro ser tomado como ato jurídico, a busca por uma motivação para além da simbólica da patrimonialização, sugere um entendimento da reparação do Estado e a negação da compaixão. Então, esta compreensão da razão ainda seria um porvir, onde de fato a nação reconhecesse o valor da Capoeira como importante

elemento de constituição de brasilidade e da história ampliado da Capoeira fora dos meios capoeirísticos e acadêmicos. Com a ocupação de espaços públicos, como museus e centros de referências, onde as memórias do não-vivido fossem publicizadas como relatos da história da diáspora negra no Brasil; em escolas onde a Capoeira fosse mais que uma prática física, e sim um elemento de constituição de nossas identidades e resistências negras, propiciando a descriminalização social da Capoeira e do capoeira, os reconhecendo como importante elemento cultural de inserção e transformação social e na conquista por políticas públicas de reparação. A razão do Registro está na ação. Em não mais “morrer à mingua”.