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Os primeiros tempos da Capoeira como patrimônio nacional

PARTE I: Da ginga: O Registro

1. O registro da Roda de Capoeira e do Ofício de Mestre como Patrimônio Cultural

1.3. Os primeiros tempos da Capoeira como patrimônio nacional

que só "pensam em fazer ginásticas" rotulada de "capoeira" para que não tenhamos um final infeliz nesta Roda com os órgãos públicos e federais que agora querem GINGAR conosco”. Mestre Jerônimo62

Posteriormente ao registro iniciou-se a estruturação da salvaguarda pelo DPI, período em que, pelas narrativas e documentos consultados, os capoeiras pareciam ir às reuniões todos “com sacos de pedras”, negando-se a usar o corpo. Dada às características da Capoeira como bem de disseminação nacional, criou-se em julho de 2009, através da Portaria nº 4863, o Programa Pró-Capoeira, que envolvia a criação do Grupo de Trabalho Pró-Capoeira (GTPC), composto por capoeiristas, membros da Secretária Especial da Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e da Fundação Palmares, com objetivo de estruturar as bases do Programa Nacional de Salvaguarda e Incentivo à Capoeira (Programa Pró-Capoeira). As metas iniciais eram implementar o Cadastro Nacional de Capoeira, visando a identificação de capoeiristas e grupos; realização de encontros para determinar as ações de salvaguarda e o Plano Nacional de Capoeira, de acordo com o escopo do Programa Pro-Capoeira:

- Promover e difundir a capoeira no Brasil e no mundo com respeito à diversidade cultural presente em suas diferentes manifestações rituais, técnicas e estilísticas.

- Apoiar a transmissão dos conhecimentos tradicionais ligados à prática da capoeira; - Estabelecer critérios para o reconhecimento do notório saber dos mestres de capoeira

formados na tradição.

- Apoiar e fomentar a difusão da produção intelectual, acadêmica, cultural e audiovisual sobre a capoeira no Brasil e no mundo;

- Cadastrar mestres e estudiosos, praticantes, grupos, entidades e instituições públicas e privadas dedicadas à prática, ao estudo e ao ensino da capoeira no Brasil;

- Fomentar a criação de mecanismos de participação e de consulta às instituições e aos representantes de grupos e indivíduos praticantes de capoeira no Brasil, com vistas a organizar a regulamentação do exercício de atividades de ensino e de formação; - Incentivar a prática da capoeira como recurso cultural, lúdico, pedagógico e como

atividade física na rede pública e particular, em todos os níveis de ensino.

- Promover o intercâmbio entre praticantes e estudiosos da capoeira do Brasil e de outros países;

Aconteceram três encontros regionais, em 2010: em Pernambuco, no Rio de Janeiro e em Brasília. Capoeiristas e mestres foram selecionados a participar de acordo

62 Em e-mail para o grupo criado por ocasião do Pró-Capoeira.

63 Portaria N.48, de criação do Grupo de Trabalho Pró-Capoeira, 22 de julho de 2009. Disponível em:

com a sua representatividade notória em sua região de atuação, de acordo com texto da técnica do Iphan Natália Brayner, publicado no pelo Iphan e no Portal da Capoeira64:

(...) na importância tácita e inquestionável da pessoa convidada, no tempo de atuação, no reconhecimento coletivo, na importância como formadora e transmissora de saberes e, ainda, no seu gênero. Também procurou a garantir a representatividade dos vários segmentos praticantes da capoeira.

Os Grupos de Trabalho foram divididos em eixos temáticos: Capoeira e Educação; Capoeira, Identidade e Diversidade; Capoeira e Políticas de Fomento; Capoeira, Esporte e Lazer; Capoeira, Profissionalização e Internacionalização e Capoeira e Desenvolvimento Sustentável. As discussões foram posteriormente sistematizadas em Áreas Temáticas, Situações Problema e Soluções Sugeridas, a leitura destes evidenciam questões construídas de acordo com aspectos regionais, demandas e controvérsias recorrentes ainda hoje, após sete anos, nota-se pouco avanço em relação a elas.

O Programa Pró-Capoeira foi uma iniciativa ousada, sem precedentes em sua extensão como ação participativa para salvaguarda, ao tentar abarcar e dar conta de todo território brasileiro. O infausto das reuniões do Programa deveu-se às dificuldades de execução, em função da própria amplitude. As críticas surgiram por parte dos não convocados, ao mesmo momento em que os participantes já do primeiro encontro do Nordeste, em Recife em 08, 09 e 10 de setembro de 2010, se angustiaram com o formato e o direcionamento das discussões, diante de uma suposta incapacidade dos consultores contratados. Pedro Abib, Pedrão de João Grande, enuncia a comunicação de sua indignação com a reunião do Nordeste com o seguinte texto65:

Como sabem, a capoeira foi elevada à condição de Patrimônio da Cultura Brasileira pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), mas esse processo tem gerado vários problemas. Um dos desdobramentos, é a discussão chamada por esse órgão a nível nacional, para discutir as POLÍTICAS DE SALVAGUARDA da Capoeira, ou seja, as ações a nível governamental que deverão garantir a preservação da capoeira enquanto patrimônio nacional, denominadas PRÓ-CAPOEIRA.

64 Disponível em: http://portalcapoeira.com/antigo/Noticias-Atualidades/esclarecimentos-programa-pro-capoeira-iphan, acessado em 24 de março de 2017.

65 Disponível em: https://groups.google.com/forum/#!msg/papoeira/P3YFNO0QESs/TgbN-27FLNsJ, acessado em 02 de setembro de 2016.

Dez dias depois do primeiro encontro no Recife, os capoeiristas baianos se reuniram em assembleia e escreveram o Manifesto da Bahia66, publicado pela

capoeiragem baiana em 27 de outubro de 2010.

Figura 06: Manifesto da Bahia, postado no blog Militância e Capoeira, em 11 de outubro de 2010.

Mestre Duda Carvalho explicou, no blog Capoeira e Militância, as motivações do manifesto. Segundo ele houve despreparo do Iphan e comportamento previsível dos capoeiras diante do Estado, sugerindo que os resultados seriam ruins também no Rio e em Brasília:

66 Ver: https://www.youtube.com/watch?v=3hV7SAGNYOc, acessado em 02 de setembro de 2016. Em 27 de outubro de 2010, Salvador: “as comunidades de capoeira Angola, regional e de rua se concentraram na Praça Piedade para mostrar indignação e protesto. Indignação pelos encaminhamentos definidos em Recife, dentre os quais os mais chocantes dizem respeito a: “padronização e formalização da capoeira como esporte olímpico” e a associação da formação dos capoeiristas às instituições de ensino superior. Por outro lado o protesto se refere a forma como o programa pró-capoeira vem realizando a consulta popular. Como foi apresentando no texto anterior, a seleção dos convidados, os textos tendenciosos, a ausência de uma plenária final, dentre outros” Mestre Duda Carvalho, disponível em: http://militanciaecapoeira.blogspot.com.br/, acessado em 02 de setembro de 2016.

Até aqui poderemos levantar uma desconfiança, comportamento previsível nos capoeiras, principalmente em relação ao governo que elaborou como primeira iniciativa de política pública em relação a capoeira, a criminalização. A suspeita que levanto é consequente da seguinte associação: critérios de seleção de consultores insuficiente para o contexto; não divulgação dos resultados da seleção dos consultores; seleção de representantes da comunidade de capoeira sem o devido preparo para as discussões propostas; representação insuficiente e desqualificada nos GT´s; textos de cunho tendencioso, creio que não seja necessário muito esforço para entendermos porque os resultados propostos nos GT´s causaram tamanha inquietação e revolta na comunidade de capoeira que se importa com os assuntos tratados no âmbito de políticas públicas67.

O manifesto foi lançado um dia antes da reunião do Sul-Sudeste, no Rio de Janeiro e lá repercutiu, pautando a reunião “por muita confusão, ninguém se entendeu lá”, segundo Mestre Silveira (PR/SP/PR), convocado do Paraná. Os capoeiras paulistas foram investidos de ressentimentos porque a Capoeira de São Paulo não foi incluída no dossiê de registro.

Estas reações adversas tiveram tais proporções diante de uma incompreensão do instrumento de registro, da forma como ele se apresentou como imposição aos capoeiras, com ações que lhes pareceram distorcidas e distantes dos seus anseios, pautadas pela morosidade das políticas de Estado e métodos distintos dos seus. O que para Arendt caracterizaria como uma “política de compaixão”, morosa, sem ações, discussões anteriores e tensões posteriores.

Em outubro de 2010, o Iphan pediu direito de resposta ao Portal da Capoeira68, lançou uma nota e respondeu aos e-mails do grupo de trabalho, para rebater e comentar o manifesto e responder às críticas. Informa-se o caráter recente, a possibilidade de ações futuras e a prontidão para o diálogo para mudanças das ações, destaca que a participação de todos os mestres “mostrou-se tarefa irrealizável” e presta esclarecimentos: “O Iphan esclarece ao público que o Programa Pró-Capoeira, ao contrário do que é afirmado, equivocadamente, em alguns fóruns de discussão, não é orientado pela “bandeira da Capoeira como processo exclusivamente desporto-competitivo-olímpico69”. Desde então, o Iphan com certa regularidade e frequência emite pareceres reafirmando a contrariedade a projetos de unificação e esportização. Ainda em 201070, o Iphan lançou o Edital para o

67 Disponível em: http://militanciaecapoeira.blogspot.com.br/, acessado em 02 de setembro de 2016.

68 Disponível em: http://portalcapoeira.com/antigo/Noticias-Atualidades/esclarecimentos-programa-pro-capoeira-iphan, acessado em: 02 de setembro de 2016.

69Provavelmente, o surgimento “emaranhado” tenha relações com o Projeto de Lei 031/2009, que pretende regulamentar a profissão de capoeirista e sujeitá-los aos conselhos de educação física, tema debatido amplamente desde 2009 e que ainda gera polêmicas e desavenças entre os capoeiristas, divididos em prós e contrários a esta regulamentação, por considerarem como um processo de submissão que acabaria com as formas de transmissão tradicionais e por conseguinte com a figura do mestre.

70Vídeo produzido na ocasião do Prêmio “Iê: Viva Meu Mestre”, disponível em: ttps: //www.youtube.com/watch?v=0cTNixW1Qa0, em 24 de junho de 2015.

“Prêmio Viva Meu Mestre” Cem mestres foram premiados, com pouco mais de 10 mil reais71, atendendo aos seguintes critérios: “Mestres ou Mestras com idade igual ou

superior a 55 anos, cuja trajetória de vida tenha contribuído de maneira fundamental para a transmissão e continuidade da Capoeira no Brasil (...) de qualquer vertente ou estilo com reconhecida experiência e conhecimento nos saberes e fazeres da Capoeira”.

Os mestres de Capoeira entrevistados, ou em suas falas, consideraram o Prêmio Viva Meu Mestre uma boa iniciativa e lamentam a descontinuidade da ação. Alguns mestres premiados, como Mestre Sergipe72 e Mestre Macaco Santana73, relembram deste momento de forma descontraída, contando a desconfiança que tinham com relação ao recebimento do prêmio, ao ceder numeração de documentos conforme exigia o edital, dizem que até então nunca tinham recebido nada do Governo e só tinham sido perseguidos pelo Estado. Mestre Sergipe brinca que no mês seguinte esperou receber o mesmo valor. Para Mestre Bigo74, aluno de Mestre Pastinha, o prêmio foi uma “ajuda” que recebeu do Governo: “Minha filha, esta foi a única vez que o governo me ajudou e eu investi tudo de volta na Capoeira”.

O Pró-Capoeira passou a ser política da Fundação Palmares, separando-se das ações de salvaguarda com a descentralização das ações para as superintendências estaduais do Iphan, em 2012. O Memorando 005/1275 de 13 de março de 2012, assinado pela então Diretora do DPI, Célia Corsino, e remetido aos superintendentes estaduais, reitera a descentralização da salvaguarda da Capoeira em função do plano anual de trabalho, e em segundo lugar salienta:

A capoeira é um bem registrado de abrangência nacional. Dessa forma, o DPI recomenda o desenvolvimento de ações voltadas para mobilização dos capoeiristas – como encontros, reuniões, seminários etc. – e, principalmente, para o mapeamento e identificação do universo da capoeira em cada Estado da Federação. Minas Gerais, Pernambuco e Mato Grosso já estão trabalhando nesse sentido.

71 O total do Prêmio era de R$15.000, 00 com as deduções de imposto de renda, aproximadamente R$10.800, 00, de acordo com Edital.

72 Durante a realização da segunda etapa estadual do III CNUC no Paraná.

73 Em apresentação oral no evento “Iê: Viva Meu Mestre, Ananias Pedra 90”, realizado pelo Mestre Kunta Kintê, em São José dos Pinhais, em novembro de 2015.

74 Em entrevista concedida no Evento “Abril pra Angola”, de 2015, realizado pelo Mestre Meinha (SP), em São Paulo –SP. 75 Anexo 06: Memorando 005/12, descentralização da salvaguarda da Capoeira para as superintendências estaduais.

A solução da descentralização não resolveu os conflitos, mas os dissolveu entre superintendências e cada uma delas criou estruturas próprias para resolvê-los, ou não, devido às situações desiguais de salvaguarda nos estados76.