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Na progressão para a insuficiência cardíaca os cardiomiócitos sofrem um conjunto de alterações que conduzem a uma perda progressiva de função. Entre estas destacam-se a maior expressão das isoformas  das cadeias pesadas de miosina, a perda progressiva de miofilamentos contrácteis, as alterações nas proteínas do citosqueleto, as alterações das proteínas reguladores do acoplamento excitação-contracção e cinética do cálcio e a dessensibilização das vias de sinalização do sistema simpático-adrenérgico (Dhalla et al. 2009; Lehnart et al. 2009). No entanto, mais recentemente, para além destas alterações clássicas de remodelagem miocárdica, reconhece-se um papel fundamental de perturbações metabólicas. Nos estádios mais avançados da insuficiência cardíaca o miocárdio apresenta uma redução do seu conteúdo de trifosfato de adenosina e converte de forma ineficiente energia em trabalho mecânico, em boa parte pela perturbação do metabolismo oxidativo (Ingwall 2009; Ormerod et al. 2008) e pelo desvio

metabólico que favorece a glicólise em detrimento da oxidação de ácidos gordos (Davila-Roman et al. 2002). Embora esta questão seja controversa, é opinião quase consensual que a disfunção metabólica está envolvida causalmente na disfunção e remodelagem miocitárias (Stanley et al. 2005). Assim sendo, novas armas terapêuticas que tenham como alvo a regulação do metabolismo poderão ter um impacto considerável no prognóstico da insuficiência cardíaca, uma vez que actuarão por intermédio de vias moleculares distintas das dos fármacos actualmente em uso, sem efeito inotrópico negativo (Bristow 2000). Como mera curiosidade, relatos históricos descreveram uma melhoria sintomática na insuficiência cardíaca após ingestão de açúcar de cana (Goulston 1911). Estes mecanismos têm sido fundamentalmente investigados na insuficiência cardíaca esquerda, mas tudo leva a crer que sejam também relevantes na insuficiência cardíaca direita e hipertensão pulmonar.

No miocárdio saudável, o aporte constante do oxigénio é fundamental para o metabolismo energético, mais precisamente para a fosforilação oxidativa, que é responsável por cerca de 90% da produção de trifosfato de adenosina (Ventura-Clapier et al. 2004). Vários substratos energéticos, como ácidos gordos, glícidos e lactato podem ser metabolizados pelo ciclo do ácido tricarboxílico miocárdico gerando equivalentes redutores (Bing et al. 1954). A produção de trifosfato de adenosina adapta-se ao consumo e às necessidades, de acordo com o trabalho desenvolvido pelo miocárdio, podendo a actividade mitocondrial aumentar cerca de 90% (Mootha et al. 1997). Usualmente, no miocárdio adulto, em condições de repouso a -oxidação de ácidos gordos é responsável por até 60 a 90% da produção de trifosfato de adenosina, enquanto que a oxidação do piruvato e lactato oriundos da glicólise são responsáveis pelos restantes 10 a 40% (Wisneski et al. 1985), no entanto, os corações do feto e recém-nascido, hipóxicos, dependem mais da glicólise anaeróbia, uma vez que os sistemas enzimáticos responsáveis pela oxidação de ácidos gordos têm maturação tardia (Ostadal et al. 1999). Normalmente, na presença de ácidos gordos é inibida a glicólise no miocárdio adulto, de acordo com a concepção original de Randle (Garland et al. 1963). De facto, a oxidação de ácidos gordos aumenta as razões acetil-CoA/CoA livre e NADH/NAD+, o que activa a cínase da desidrogénase do piruvato, que, por sua vez, fosforila e , desta forma, inibe a desidrogénase do piruvato. Durante o metabolismo glicolítico, a glicose-6-fosfato produz duas moléculas de trifosfato de adenosina e é convertida em piruvato. O complexo enzimático da desidrogénase do piruvato é responsável pelo passo limitante da glicólise aeróbia, a descarboxilação oxidativa irreversível do piruvato em acetil-CoA e a internalização desta na mitocôndria (Stanley et al. 2005). Caso não haja internalização na mitocôndria, o piruvato é convertido em lactato no citoplasma (glicólise não-oxidativa ou anaeróbia). O miocárdio saudável é capaz de adaptar-se rapidamente não só às

exigências metabólicas mas também à disponibilidade de substratos, o que depende de mecanismos de regulação enzimática alostéricos, acção de metabolitos reguladores e uma reciprocidade efectiva entre os substratos. Por exemplo, sempre que os níveis plasmáticos de corpos cetónicos se elevam, como sucede na insuficiência cardíaca, estes são extraídos e oxidados, em detrimento de outros substratos (Lommi et al. 1998).

No entanto, com a progressão da patologia cardiovascular ocorrem alterações sustentadas na expressão e actividade enzimáticas, sob a coordenação de factores de transcrição como o factor de transcrição indutível pela hipoxia, que acentua o metabolismo glicolítico (Semenza 2000), e o receptor dos peroxissomas activado por estímulos proliferativos, que estimula a fosforilação oxidativa de ácidos gordos e inibe a glicólise (Finck 2007; Gulick et al. 1994). Na progressão da insuficiência cardíaca está inequivocamente demonstrada uma menor actividade do receptor dos peroxissomas activado por estímulos proliferativos e um desvio metabólico correspondente, favorecendo a glicólise em detrimento da oxidação de ácidos gordos (Barger et al. 2000; Garnier et al. 2003). Todavia, o significado biológico desta adaptação ainda não é consensual. Se por um lado, a glicólise é mais eficiente em termos de produção de trifosfato de adenosina em função do consumo de oxigénio, o que satisfaz as necessidades energéticas acrescidas do miocárdio hipertrofiado e insuficiente (Burkhoff et al. 1991; Stanley et al. 2005), sendo a eficiência menor na presença de concentrações elevadas de ácidos gordos uma vez que estes induzem algum grau de desacoplamento da fosforilação oxidativa, por intermédio de proteínas desacopladoras (Schrauwen et al. 2003), por outro lado o metabolismo de ácidos gordos gera maior número de moléculas de trifosfato de adenosina (van Bilsen et al. 2009) e o desenvolvimento de trabalho mecânico é extremamente dependente dos ácidos gordos em doentes com insuficiência cardíaca (Tuunanen et al. 2006). Também quanto ao papel do receptor dos peroxissomas activado por estímulos proliferativos, há evidências contraditórias, a nível experimental a sua activação tanto agravou a disfunção contráctil e a hipertrofia (Young et al. 2001) como as inibiu (Ogata et al. 2002), o que poderá dever-se a diferenças nos modelos experimentais e espécies ou estirpes de animais estudadas.

Outra alteração metabólica típica na progressão da insuficiência cardíaca é o desenvolvimento de insulino-resistência (Mamas et al. 2010). Esta constitui um factor preditor independente de mau prognóstico (Doehner et al. 2005). Embora não sejam claros os mecanismos que ligam a insulino-resistência à insuficiência cardíaca, acredita-se que o tecido adiposo e o vasto leque de citocinas e mediadores bioactivos que este produz possam constituir o elo fundamental (Berg e Scherer 2005). Destacando-se o papel de adipocinas e citocinas inflamatórias (Wisniacki et al. 2005).