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Tendo em conta o tema da tese, o nosso método de trabalho será, necessariamente, o comparativismo. Isto significa que é necessário procurar os pontos de contacto na obra romanesca eciana e machadiana, o que implica traçar pontes entre os dois romancistas, vendo onde são semelhantes. De facto, o comparativismo não é só um estudo de influências. Tanto Eça como Machado seguiram a mesma ideologia estética, tornando natural a existência de analogias entre eles. Porém, o método comparativista passa também pela análise das diferenças presentes entre obras ou autores: aspeto lógico, uma vez que o comparativismo não pode apenas partir de uma demanda artificial (e parcial) de paralelismos literários, quando a literatura é também feita de diferenças, isto é, de idiossincrasias de cada escritor. De outra forma, chegaríamos a resultados falaciosos, pois não pode haver apenas similitudes entre escritores 89 . O

comparativismo pressupõe a existência e a prática de uma atitude de cotejo, que, no nosso caso, consistirá em pôr lado a lado a visão da mulher nos romances queirosianos e machadianos e analisar como cada autor o faz dentro da sua própria narrativa.

Há toda a legitimidade em aproximar um romancista português e um brasileiro, na medida em que o comparativismo, como afirma Charles Bernheimer:

89 Cf. Helena Carvalhão Buescu, ―Literatura Comparada e Teoria da Literatura: Relações e Fronteiras‖, in

Helena Buescu, João Ferreira Duarte e Manuel Gusmão (org.), Floresta Encantada: novos caminhos da

literatura comparada, Lisboa, Dom Quixote, 2001, pp. 83-96. Nestas páginas a autora reflete sobre a

procura das semelhanças e das diferenças no cotejo de obras literárias de acordo com os parâmetros do método comparativo.

19 […] envolve hoje comparações entre produções artísticas geralmente estudadas

por disciplinas diferentes; entre várias construções culturais dessas disciplinas; entre tradições culturais do Ocidente, tanto populares como eruditas, e as de culturas não ocidentais; entre produções culturais de povos colonizados, dos tempos do pré- e pós-contacto; entre construções de sexualidade definidas como femininas e como masculinas, ou entre construções de sexualidade definidas como hétero ou homo; entre modos raciais e étnicos de significação; entre definições hermenêuticas de sentido e análise materialistas dos seus modos de produção e circulação e muito mais.90

Contudo, a adoção da crítica comparativa é arriscada, pois há sempre a tentação de escolher a via fácil, que consistiria na elaboração de duas teses, ou seja, em que o capítulo inicial seria dedicado à visão da mulher na obra queirosiana, o segundo capítulo, à visão da mulher dentro do romance machadiano e, o terceiro capítulo, ao estudo comparatista dos dois autores. E nesse caso haveria apenas uma verdadeira comparação entre a visão da mulher em Eça e Machado só aconteceria num terço da tese. Por conseguinte, ainda que, por uma questão metodológica procedamos a uma leitura inicial do conjunto dos romances de cada autor em separado, isto não irá redundar numa divisão artificial das conclusões, tal como expostas acima. Assim, a comparação da visão da mulher em Eça de Queirós e em Machado de Assis será uma constante ao longo de toda a tese. De facto, existe, como afirmam Francis Claudon e Karen Haddad-Wotling:

[…] uma regra absoluta em literatura comparada: o assunto de dissertação deve ser tratado recorrendo a exemplos tirados simultaneamente de todas as obras do programa. Se o programa comporta cinco obras, será necessário que cada subdivisão se apoie, na sua demonstração, sobre as cinco obras simultaneamente.91

Os capítulos não serão, deste modo, definidos em função dos autores, mas segundo os objetivos que nos propomos alcançar. Isto é, no primeiro capítulo, analisaremos os reflexos contextuais nas obras romanescas ecianas e machadianas. No segundo capítulo faremos a identificação designativa das personagens femininas queirosianas e machadianas em ligação com os respetivos papéis sociais e relevo diegético, de modo a prosseguir com base nessa identificação clara toda a posterior análise da visão subjetal e objetal das personagens femininas romanescas de Eça e Machado, ou seja, os capítulos três e quatro respetivamente. Nesses capítulos procuraremos analisar numa perspetiva comparativista as formas empregues pelos dois autores para introduzir a visão da mulher, o espaço narrativo dado à visão da mulher o alcance dessa visão ou seja, quais os aspetos focados nas personagens femininas. No último capítulo, verificaremos as opções autorais dentro de cada romance por figuras femininas redondas ou por planas a existência ou não de uma permanência da visão subjetal da mulher ao longo da obra

90 Cf. Charles Bernheimer, ―O Relatório Bernheimer, 1993. Literatura comparada na transição do século‖,

Maria Helena Serôdio (trad.), in Ibidem, p. 20.

91 Cf. Francis Claudon e Karen Haddad-Wotling, Elementos de Literatura Comparada – Teorias e Métodos da

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romanesca eciana e machadiana. No sentido objetal, verificaremos se existe uma evolução ou permanência da visão do narrador e das outras personagens sobre as femininas.

A nossa tese implica uma leitura bastante atenta do corpus romanesco em análise, mas não seguiremos apenas um método imanentista, como era apanágio do formalismo russo, pois a temática por nós escolhida envolve fatores semiótico-contextuais. De facto, o estudo comparativista da visão da mulher na obra romanesca de Eça de Queirós e de Machado de Assis levanta desde logo a questão da representação ficcional da mulher – entidade ontológica do real social, uma pessoa e um género, isto é, ressalta desde logo a dicotomia pessoa/personagem, que será objeto de explicitação ainda na introdução.

Diga-se, desde já, que os conceitos de pessoa e personagem, ainda que se distingam, não se desvinculam, tendo em conta que múltiplas personagens apostam na representatividade antropomórfica e figurativa, buscando uma ilusão do real. Como afirma Michel Zéraffa:

[…] n‘est pas séparer. En faisant une distinction entre «personne» et «personnage» nous avons cru devoir obéir à un impératif méthologique, mais qui correspond à la réalité du roman […]. Nous voulions d‘abord réduire l‘ambiguïté qui s‘attache aux deux termes lorsqu‘il s‘agit du théâtre, du cinéma e du roman, car dans ces domaines nous parlons communément du personnage comme d‘une personne.92

Porém, quer se fale de pessoa ou de personagem de um romance é necessário ter em conta o seu papel social e axiológico, o que nos conduz à sociologia da literatura e à sociocrítica. Temos de ter em conta a sociologia da literatura, porque a nossa temática implica a análise do contexto social que envolveu a criação romanesca eciana e machadiana das figuras femininas. Afirma Isabel Pires de Lima:

[…] a obra literária, não sendo um produto exclusivamente individual, que um psicologismo simplista seria suficiente para explicar, também não é produto exclusivamente colectivo, que um sociologismo, igualmente simplista e cego, faria compreender. Ao afirmar-se que a obra literária é um fenómeno social, não se está a negar a presença do universo psico-afectivo, do eu, da especificidade pessoal daquele que a gera […], está-se apenas afirmar a existência de determinantes do processo histórico e de estruturas socioculturais, presentes no texto, através da vivência do autor e do leitor. Se quisermos, autor e leitor são condicionados e condicionantes.93

De facto, a forma como um tema literário é tratado varia, como afirma Elizabeth Fox- Genovese, ―de acordo com o texto, a cultura, e o contexto histórico.‖94 Lucien Goldmann, nos

anos 60 do século XX, fez a ligação do romance com a sociedade no famoso Pour une Sociologie du Roman, onde afirma o seguinte:

92 Cf. Michel Zeraffa, Personne et Personnage. Le Romanesque des Années 1920 aux Annés 1950, Paris,

Klincsieck, 2ª tirage, 1971, p. 11.

93 Cf. Isabel Pires de Lima, As Máscaras do desengano – Para uma abordagem sociológica de «Os Maias» de

Eça de Queirós, Lisboa, Caminho, 1987, p. 18.

94 Cf. Elizabeth Fox–Genovese, ―Entre Elitismo e Populismo: Para onde vai a Literatura Comparada?‖, Maria

21 […] la forme romanesque nous paraît être en effet la transposition sur le plan

littéraire de la vie quotidienne dans la société individualiste née de la production pour le marché. Il existe une homologie rigoureuse entre la forme littéraire du roman, […] et la relation quotidienne des hommes avec les biens en général, et par extension, des hommes avec les autres hommes, dans une société productrice pour le marché.95

Sucede que esta sociologia do romance goldmanniana se enquadra no espírito da sociologia da literatura definida por Robert Escarpit em finais da década anterior. E essa área científica preocupa-se em estudar o contexto social em que a obra literária é criada, circula e é rececionada96. Ora, esta não é propriamente a perspetiva metodológica que mais nos interessa

para desenvolvermos a nossa temática, pois o que queremos é o melhor método para analisar a forma como a sociedade está espelhada na visão feminina dos romances queirosiano e machadiano. No entanto, há uma perspetiva dentro da sociologia da literatura que corresponde aos nossos desideratos, designada por sociocrítica, que, como esclarece Pierre Zima, ―[…] la sociologie du texte s‘intéresse à la question de savoir comment des problèmes sociaux et des intérêts de groupe sont articulés sur les plans sémantique, syntaxique et narratif.‖97 Uma vez

que o texto romanesco será o nosso objeto de estudo, ligando os conceitos personagens

femininas e mulheres, torna-se lógica a nossa escolha metodológica suplementar pela

sociocrítica.

Por último, convém referir o percurso metodológico escolhido para tentar levar a nossa tese a bom porto. Primeiro, começaremos por ler a bibliografia passiva e geral sobre os aspetos mais teóricos. Em segundo lugar, iremos ler os romances, começando pelos de Machado de Assis e indo depois aos de Eça. A leitura da bibliografia teórica abrirá, assim, perspetivas novas na nossa leitura do corpus romanesco em causa. A ordem de leitura segue um critério cronológico, isto é, começaremos pelo primeiro romance machadiano, Ressurreição (1872), e terminaremos com o último romance de Eça de Queirós, O Conde d’Abranhos (1925), publicado já postumamente. Esta opção deve-se ao facto de só assim conseguirmos alcançar o nosso último objetivo, verificar se existe uma evolução ou permanência da visão da mulher nos romances de cada autor e podermos comparar esse percurso entre os dois autores. Após a leitura dos romances, passaremos à leitura da bibliografia específica que irá auxiliar a escrita de cada capítulo.

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