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2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.3 A metonímia

Parece que diante do brio que a metáfora produz nos pesquisadores cognitivistas, a metonímia sempre parece relegada ao segundo plano, exceto por alguns estudiosos que eventualmente a tomam como objeto principal, é o caso de Barcelona (2000), de Dirven e Pörings (2003) e alguns outros. Conforme mencionado em seções anteriores, a representatividade da metáfora confunde-se com a própria disciplina da poética e da retórica, e, nessas disciplinas, a preterição da metonímia (ou talvez sua menor proeminência) já fora percebida até em vertentes estruturalistas, tal nos informa Jakobson quando compara análises de poesias românticas e realistas, que: “Não é por acaso que as estruturas metonímicas são menos exploradas que o campo da metáfora” (JAKOBSON, 2008, p. 156).

Ao conceber-se um elemento qualquer em virtude de sua relação contígua com outro, costuma-se caracterizar tal processo como um conceito metonímico. Dentre os diversos exemplos mencionados em Lakoff e Johnson (1980), algumas metonímias podem ser recuperadas aqui, veja-se: A PARTE PELO TODO (“há muitas cabeças boas na universidade” =

gente inteligente), O CONTROLADOR PELO CONTROLADO (“Napoleão perdeu em Waterloo” =

soldados de Napoleão), O LUGAR PELA INSTITUIÇÃO (“o Palácio do Planalto não se

pronunciou sobre o fato” = presidência). Na particularidade dos conceitos emocionais, Kövecses (2008, p. 133) assegura que é bastante comum a ocorrência de uma metonímia de

21 “We have no choice in this. Because of the way neural connections are formed during the period of conflation,

caráter geral EFEITO DA EMOÇÃO PELA EMOÇÃO, que possibilita a identificação de

metonímias mais específicas – PEITO ERGUIDO POR ORGULHO, QUEDA NA TEMPERATURA CORPORAL POR MEDO, EXPRESSÃO FACIAL POR TRISTEZA etc.

Sob os parâmetros sociocognitivos, por epítome, a definição de metonímia apresenta- se melhor no próximo excerto, ao asseverar que:

A metonímia conceptual é um processo cognitivo em que uma entidade conceptual, o veículo, fornece acesso a outra entidade conceptual, o alvo, no interior de um mesmo domínio conceptual ou MCI22. Na metonímia, tanto a entidade veículo quanto a entidade alvo são elementos de um mesmo domínio conceptual.23 (KÖVECSES, 2010, p. 324)

No entanto, a fronteira entre onde acaba a metonímia e onde inicia a metáfora costuma gerar debates nem sempre conclusivos. Quando Radden (2000, p. 93) se perguntava “quão metonímicas são as metáforas?” e sugeria-nos uma base experiencial comum, havia umas quatro décadas já se afirmava que, em estudos poéticos, “[...] onde a similaridade se superpõe à contigüidade, toda metonímia é ligeiramente, metafórica e toda metáfora tem um matiz metonímico” (JAKOBSON, 2008, p. 149) – o que não reduz os resultados mais abrangentes da linguística cognitiva. Essa percepção nem sempre é tão hermética, às vezes identifica-se uma interação entre a metáfora e a metonímia numa expressão linguística que esteja ancorada na concomitância de ambas, a metafonímia (GOOSSENS, 1995).

São dois os tipos de interação “metafonímicas” prenunciados em Barcelona (2003): a metáfora com motivação metonímica e a metonímia com base metafórica. Conceitos como os de “expectativa” e de “ansiedade” tendem a aproximar-se do primeiro tipo, em que a metáfora motiva-se por reações fisiológicas ou efeitos produzidos no corpo, EXPECTATIVA É FARDO

(“suportar a angústia de uma longa expectativa”24). A “raiva” também comunga nesse tipo de interação, exemplificando-se na metáfora RAIVA É O CALOR DE UM FLUIDO EM UM CONTÊINER (“você fez meu sangue ferver”), identificada em Lakoff e Kövecses (1987, p. 198). Tendo tantos exemplos verificados, Barcelona (2003) não se isenta em declarar que “a consequência desta pesquisa pode levar ao reconhecimento da metonímia como uma estratégia cognitiva mais básica que a metáfora”25 (BARCELONA, 2003, p. 243-4).

22 Modelo Cognitivo Idealizado. Consulte a seção sobre frames e MCIs neste capítulo.

23 “Conceptual metonymy is a cognitive process in which one conceptual entity, the vehicle, provides mental

access to another conceptual entity, the target, within the same conceptual domain, or ICM. In metonymy, both

the vehicle entity and target entity are elements of one and the same conceptual domain.

24 Exemplo contido no corpus desta pesquisa (ver capítulo 4).

25 “The outcome of this research might lead to the recognition of metonymy as a more basic cognitive strategy

A metonímia alcança áreas formalistas da linguística na proposta de uma “gramática metonímica” (metonymic grammar), formulada em Langacker (2009). Nessa proposta o linguista reafirma a postura adotada em Langacker (1998), a de que a vagueza e a indeterminação são os elementos mais comuns nas relações gramaticais, inclusive, sobrepondo-se ao elemento da determinação. Em seu parecer,

a gramática, noutros termos, é basicamente metonímica, no sentido de que a informação, explicitamente provida por meios convencionais, não estabelece por si mesma as conexões precisas apreendidas pelo falante e pelo ouvinte no uso de uma expressão26 (LANGACKER, 2009, p. 46)

Complementando o que ocorre na semântica de frames (FILLMORE, 2006), em que o significado decorre das relações entre as palavras numa categoria conceptual específica, Langacker (2009, p. 46) defende que o código linguístico envia-nos a uma “vizinhança” significativa na qual temos que encontrar o “endereço correto” por outros meios. Os “outros meios” dependem, em grande parte, do raciocínio metonímico. A justificativa ilustra-se na Figura 1, que representa a teoria sintática clássica em (1-a) e a realidade cognitiva em (1-b), possuindo áreas cruciais para o significado demarcadas em cinza.

Figura 1 - Determinação vs. indeterminação (na gramática metonímica)

Fonte: Langacker (2009, p. 46)

O argumento da gramática metonímica desenvolve-se por um tipo de “discrepância perfilamento/zona-ativa”, cuja configuração revela um esforço de contiguidade em sentenças como a (7), pela qual o predicado sugerido na relação trajector/landmark leva a uma situação em que o landmark ativa uma zona, que por contiguidade revela uma “estrutura mesclada” no significado final produzido, passando a focalizar o “pounds” (o peso da coisa) na zona ativa de “book” (a coisa em si).

26 “Grammar, in other words, is basically metonymic, in the sense that the information explicitly provided by

conventional means does not itself establish the precise connections apprehended by the speaker and hearer in

(7) I have to review this book, which weighs 5 pounds [Tenho que rever este livro, que pesa 5 libras] (LANGACKER, 2009, p. 52).

As relações entre entidades complexas (e/ou coletivas) são mais um ponto em que a metonímia desempenha um forte papel. Na visão de Langacker (2009), elas são uma fonte importante de indeterminação, pois as relações podem perfilar os elementos internos do trajector complexo, ou a coletividade no todo, ou a relação entre os elementos internos da coletividade. Nos casos em que o landmark também retrate outra entidade complexa, as relações possíveis do trajector multiplicam-se nas relações possíveis do landmark. As associações AS PARTES PELO TODO e O TODO PELAS PARTES são exemplificadas na sentença

“a flock of geese {was/were} flying overhead” [“um bando de gansos {estava/estavam} voando”] e representadas na Figura 2, em que: os círculos menores representam os elementos isoladamente, a elipse é a compreensão dos elementos em conjunto, e o círculo maior é tomado como uma entidade única coletiva. Em (2-a), o perfil no “todo” leva o movimento das subpartes; em (2-b), o perfil no movimento das subpartes leva o movimento da entidade coletiva.

Figura 2 - Construal unitário vs. contrual múltiplo (na gramática metonímica)

Fonte: Langacker (2009, p. 59)

Diante de tantas possibilidades investigativas e diante da frequente combinação da metonímia com outros fenômenos analíticos, o efeito metonímico pode ser algumas vezes negligenciado pelos pesquisadores da linguística. Mesmo sem o desejo de negligenciá-lo, devido à ênfase na metáfora ser a pretensão geral, esta pesquisa o mantém como coadjuvante à medida que se demonstre visível nos exemplos do corpus e alcance algumas relevâncias episódicas.