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1. Crédito, microcrédito e capitalismo: breve análise de suas

1.1 Considerações sobre o crédito: história, conceitos, teorias

1.1.6 Microcrédito: teorias em debate

A reflexão sobre a crise capitalista contemporânea tem levado intelectuais e forças sociais a se manifestarem sob “sinais ideológicos” opostos: o da busca da superação do sistema e o da busca da preservação do sistema (MICK, 2004). Tal oposição também se reproduz no conjunto das teorias que cercam a política de microcrédito, em suas diferentes abordagens: de um lado, a “popularização do crédito” concretizada por meio de Programas e Instituições de microcrédito vem sendo apontada como um dos mecanismos utilizados no combate à pobreza, em especial nos países menos desenvolvidos. Por outro lado, tal política é vista como mais uma forma de inserir o contingente pobre da população nas práticas do capitalismo liberal.

O combate à pobreza via expansão do crédito também é visto sob diferentes ângulos e nem todas as instituições que operam o microcrédito, conforme discutido por Mick (2004), partem da mesma concepção. A proposta de expandir o crédito às populações pobres do planeta, capitaneada pelo Banco Mundial, tem como objetivo estender os méritos da economia de mercado às diferentes partes do mundo. Outras instituições apoiadas por Governos e organizações de esquerda buscam integrar projetos de desenvolvimento econômico e social e concebem o crédito como um elemento que auxilia na busca dos meios de subsistência indispensáveis aos beneficiados, desde que o crédito não seja considerado “um fim em si mesmo”, mas associado a projetos de educação e desenvolvimento comunitário, conforme discutido por Santos (2005, p. 50).

A concessão do Prêmio Nobel da Paz em 2006, ao professor Muhammad Yunus, idealizador mais expressivo da política de extensão ao crédito para a população de baixa renda, e difusor dessa metodologia no mundo a partir de sua experiência no Grameen Bank, de Bangladesh, acirrou ainda mais as discussões em torno do microcrédito: Carlos Gómez Gil, da Universidade de Alicante, em artigo “on line” publicado em Elcorreodigital.com, em 01.11.2006, defende que o caminho para a

superação da pobreza não pode dar-se pela via do endividamento. Parte do princípio de que o microcrédito atua, antes, como uma extensão do mercado bancário entre os setores mais pobres da população, tornando esses pobres responsáveis pela sua própria situação, e encobrindo, assim, as verdadeiras causas da pobreza e do subdesenvolvimento no mundo. Considera ainda uma forma de desviar a responsabilidade do Estado no desenvolvimento social básico da população e de transferir essa responsabilidade para os cidadãos tornando-os responsáveis pela sua sobrevivência, anulando, assim, o papel que os Estados, os governos e a comunidade Internacional desempenham no desenvolvimento dos mais pobres. A pretensa capacidade instrumental do microcrédito para combater a pobreza, do seu ponto de vista, estaria mais voltada a esvaziar as responsabilidades políticas e institucionais que existem na sua manutenção, do que oferecer transformações substanciais que melhorem o acesso a bens públicos globais para os menos favorecidos, e aumentem o compromisso ativo de governos e países mais ricos com a sua eliminação.

Carlos Ballesteros García, da Universidad Pontifícia Comillas argumenta em artigo publicado em 20.12.2006 que, se o Microcrédito pode ser considerado uma ferramenta a mais no combate a pobreza global, também não é menos certo que não se trata de um instrumento que visa combater as causas da desigualdade e da injustiça, mas sim que atua sobre suas conseqüências. Desde esse ponto de vista, pode-se considerar o microcrédito como o paradigma de cooperação ao desenvolvimento de base neoliberal, pouco importando as instituições ou personalidades que apóiam essa ferramenta. Trata-se de uma solução individual para aquele que é considerado “empreendedor”, aquele que arrisca. Além de não alterar a estrutura do sistema consumista, insere novos consumidores, fortalecendo ainda mais o mercado.

As discussões pautadas nessa corrente chamam a atenção para o componente ideológico que permeia a proposta do empreendedorismo, centrada nas capacidades individuais e empreendedoras dos sujeitos como saída para a superação dos problemas causados pelo desemprego e aumento da pobreza, e que induz a pensar que sob o capitalismo todos têm as mesmas oportunidades, basta empreender. Com recursos próprios ou com uma pequena ajuda, no caso, dada pelo

microcrédito, todos podem ter êxito e sair da pobreza, o que de certa forma implica em conceber que as limitações estão nas pessoas e não no sistema.

No mundo capitalista, a apologia da competição, como observa Singer (2002, P.8), “chama a atenção apenas para os vencedores”; a sina dos perdedores é ficar na penumbra. Aqueles que fracassaram precisam continuar competindo, mas ”[...] os ganhadores acumulam vantagens e os perdedores acumulam desvantagens nas competições futuras” (p.8), o que resulta em mais desigualdade. Observa que um empresário que vai a falência perde o seu capital e também o acesso ao crédito no banco, o que reduz suas possibilidades de reerguer-se. Da mesma forma, como sustenta García (2006), o microcrédito inserido na economia de mercado é para aqueles que obtêm êxito em seus empreendimentos e segue a mesma lógica do sistema, ele próprio gerador de desigualdades.

Na concepção de Yunus (2006), é possível combater a pobreza através de uma ótica de mercado, mas é preciso “ver as pessoas de modo diferente” (p.9) e conceber um novo modelo de sociedade coerente com essa nova visão. Sua concepção de pobreza vai além da visão conservadora, construída, em geral, de ”imagens em negativo” (LEITE, 2006, p.12-13), ou seja, de um olhar sobre os sujeitos que compõem esse universo a partir do que lhes falta e “não como são, de fato”, sujeitos que vivem, trabalham, agem em relação aos problemas que os cercam, buscam solucioná-los, pensam e representam os diversos campos da vida em sociedade. Yunus considera que os pobres, embora desprovidos dos meios indispensáveis à manutenção de suas vidas, são portadores de potencialidades que os permitem sobreviverem, e o acesso ao crédito é um dos meios que possibilita o desenvolvimento dessas potencialidades. Essa visão de Yunus sobre os pobres também encontra respaldo no conceito de “positividade concreta” discutido por Sarti (2005) que concebe a categoria “pobre” como categoria moral, o que abre caminho, segundo a autora, “para que a condição de pobre comporte valores positivos” (p.12), e os pobres sejam vistos como sujeitos de direitos.

A discussão sobre diferentes formas de conceber os pobres nos remete a uma questão de natureza teórica acerca das “representações sociais”. Consideramos que o entendimento dessa questão constitui-se em instrumento de fundamental importância no campo das políticas públicas sociais, uma vez que permite afastar

determinadas visões até certo ponto “funcionalistas”39, que em geral permeiam o planejamento e as práticas dessas políticas. Via de regra, elas são pensadas e implementadas por sujeitos que não compartilham a mesma realidade social para as quais elas são formuladas. Em geral, são pensadas de forma vertical, a partir de diferentes discursos sobre o “outro”, e das “representações sociais” que se tem sobre o “outro”. Nessa perspectiva, tendem a se distanciarem da realidade. O aprofundamento da reflexão em torno desse “olhar” sobre “o outro” torna-se fundamental para que o planejamento e a implementação de tais políticas não se constituam em meros reflexos dos valores e das visões de mundo dos que atuam nesse campo, determinando e selecionando o que deve ser implementado, sem uma garantia mínima de que tais instrumentos alcancem os resultados desejados.

A construção do modelo Grameen de microcrédito, contudo, mescla elementos teóricos progressistas e conservadores: parte da visão liberal, de economia de mercado e da liberdade dos indivíduos de fazerem escolhas, mas se volta para a dimensão social, de estímulo à solidariedade entre pessoas e grupos. Reconhece que a economia de mercado, tal como está organizada, “favorece aos poderosos” e não oferece solução para os males da sociedade, mas que é possível tirar proveito desse sistema para reduzir a pobreza, o que segundo o próprio Yunus tem suscitado muita controvérsia. Tal postura é vista como forma de implantar o capitalismo entre os pobres e reduzir as esperanças de revolução, na medida em que esvazia “os pobres de seu desespero”, minando seu potencial de luta por questões políticas mais amplas. Yunus reconhece que é difícil rotular o Grameen em termos políticos, bem como defini-lo como público ou privado: no campo político, argumenta que o seu caráter social “permite ao Grameen reivindicar um lugar à esquerda”; quanto à natureza da instituição, considera que se situa em um campo completamente novo, que convencionou chamar de “setor privado orientado para a consciência social” (p.265).

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No sentido da teoria elaborada por Malinowski - funcionalismo - baseado no modelo das ciências da natureza: o indivíduo sente um certo número de necessidades, e cada cultura tem como função satisfazer à sua maneira essas necessidades fundamentais, criando instituições, fornecendo respostas coletivas organizadas, soluções que permitem atender a essas necessidades (LAPLANTINE, 2005).

Jacques Mick (2004), em seu estudo realizado sobre a Instituição Comunitária de Crédito Portosol, discute o microcrédito a partir dos paradigmas liberal e emancipatório e constata que “o microcrédito é promovido ora como uma saída capitalista para os dramas do capitalismo, ora como uma ferramenta para acelerar o funcionamento de atividades econômicas alternativas” (p.62). Observa que no primeiro caso está pautado numa mistificação do mercado, cuja idéia central é a de que “os pobres podem pagar para sair da pobreza” (p.62). Do ponto de vista liberal, os microfinanciamentos proporcionariam a geração de micronegócios que encontrariam seu espaço nas “franjas do sistema dominado por megacorporações transnacionais” (p.62). O combate à pobreza via microcréditos se apresentaria, então, sob o paradigma liberal, como um elemento compensatório às desigualdades geradas pelo próprio sistema capitalista que concentra a renda e exclui mão-de- obra. A compreensão do autor é a de que os empreendimentos financiados pelo microcrédito raramente conseguem integrar-se, “de forma espontânea, a processos de produção e comercialização mais amplos”. Logo, a desigualdade provocada pelo capitalismo, do seu ponto de vista, não seria compensada pelo suporte dado pelas microfinanças “a esse capitalismo-dos-pobres” (p.62), pois ele, “apesar do suporte do crédito” (p.63), permanece marginal. Observa que o crédito produtivo, quando desprovido de práticas solidárias, pode levar à concorrência e ao individualismo, ou seja, reproduzir entre os pobres os traços culturais característicos do capitalismo. Sob o paradigma emancipatório, sua discussão concentra-se em torno das experiências de instituições microfinanceiras integradas a projetos de desenvolvimento econômico e social que adotam modelos de crédito popular voltados ao suporte de projetos de desenvolvimento alternativo, que se situam para além da extensão dos méritos da economia de mercado à população de baixa renda, experiências estas que no Brasil recebe a denominação de “economia solidária”.

A solidariedade na economia, conforme discutido por Singer (2002, p.9), “só pode se realizar se ela for organizada igualitariamente pelos que se associam para produzir, comerciar, consumir ou poupar”. Numa concepção totalmente oposta à das formas capitalistas, a economia solidária propõe “a associação entre os iguais em vez do contrato entre os desiguais” (p.9). Mas para que haja igualdade entre os membros

de uma sociedade, os que participam da atividade econômica devem cooperar entre si em vez de competir. O autor sustenta que essa proposta não foge às regras da divisão social do trabalho entre empresas e dentro das empresas, em que cada um desempenha uma atividade especializada e um produto só tem utilidade quando complementado pelo produto de outras atividades. Singer discute a economia solidária a partir do cooperativismo. Em sua análise sobre o crédito, discute o modelo do Grameen e o associa, sob determinados aspectos, às cooperativas de crédito, na medida em que o Banco tem como acionistas seus próprios depositantes e mutuários, o que se configuraria um novo modelo de cooperativa; e os milhares de Centros que o mantém poderiam ser equiparados às cooperativas primárias de crédito. Reconhece, contudo, as diferenças metodológicas entre os modelos. No que se refere aos programas de microcrédito no Brasil, embora considere o crédito como necessário à economia solidária, não deposita confiança nas instituições que pretendem aplicar aqui o modelo do Grameen. Observa que elas estão “muito mais próximas dos bancos convencionais que do antibanco de Bangladesh”, na medida em que essas experiências são, em geral, ”desenvolvidas por bancários e financiadas por banqueiros” (p.83).

Ainda do ponto de vista do desenvolvimento alternativo, Santos (2005, p.50) considera que o microcrédito, em muitos casos, pode ter uma influência direta no nível de vida das pessoas, no sentido de que providencia meios de subsistência que são indispensáveis para os beneficiários, desde que integrado a projetos mais amplos de desenvolvimento econômico e social. Faz uma crítica às organizações que implementam programas de microcrédito, e aos seus defensores, que “encaram os créditos como um fim em si mesmos”, numa clara alusão às premissas do Banco Mundial, e não consideram qualquer possibilidade de associar a concessão dos serviços financeiros aos pobres a projetos de construção de poder comunitário. Ressalta que o microcrédito, nessa visão “utilitarista e estreita”, aparece como única alternativa para incorporar essa parcela da população de forma “marginal”, “individual” e “precária” ao capitalismo e às políticas neoliberais que marginalizam os pobres (p.50), e não os vê como sujeitos portadores de valores positivos e interessados em se organizarem, ou seja, em sua “positividade concreta” conforme discutido acima (grifos da autora).

O debate sobre as microfinanças, é, sem dúvida, amplo, e se estende sob diferentes pontos de vista. As discussões acerca da expansão do microcrédito, uma das modalidades da microfinança, giram em torno das transformações do capitalismo e de sua inserção sob as bases do neoliberalismo. Surge, portanto, como “alternativa” aos problemas gerados pelo próprio sistema. Porém, é preciso perguntar-se: alternativa para quem? Com o expressivo aumento da pobreza e um mercado financeiro voltado para os grandes negócios torna-se difícil à população pobre desenvolver atividades produtivas. Desse ponto de vista, o microcrédito apresentar- se-ia como saída para alavancar pequenos negócios e gerar postos de ocupação e renda para a parcela menos favorecida da população trabalhadora. Porém, o alcance de suas ações, conforme discutido acima, é restrito, periférico e os micronegócios raramente conseguem integrar-se “a processos de produção e comercialização mais amplos”, capazes de proporcionarem mudanças significativas na estrutura econômica e social que possibilitariam uma redução dos níveis de pobreza em escala mais ampla. Dessa perspectiva, apresentar-se-ia como construção complementar à reestruturação e manutenção do próprio sistema. Contudo, foge ao alcance deste estudo formular conclusões gerais que contemplem toda a gama de experiências microfinanceiras desenvolvidas no país. O debate teórico em torno das microfinanças, no âmbito desta pesquisa, constitui uma base para a análise do Programa Nossocrédito, com vistas a compreender melhor a natureza dessa política e a sua aproximação com a realidade social e cultural na qual se insere.

Na esteira do empreendedorismo, ideologia que cada vez mais se consolida, o microcrédito ganhou o mundo e passou por várias adaptações. Vem sendo implementado sob diferentes desenhos institucionais, dentre muitos, o da política de microcrédito implantada no Espírito Santo em 2003, objeto de estudo desta pesquisa, cuja descrição e análise compõem os capítulos seguintes da presente dissertação.